Quando você olha para um mapa de batalha da Segunda Guerra Mundial, você consegue entender que cada um daqueles comandos militares era composto por milhares de soldados? E que muitos deles – a maioria até – não voltaram para casa, padecendo nos campos de batalha que se estenderam da França até o Pacífico? Essa foi uma das primeiras dificuldades que eu tive ao começar a jogar wargames – o imenso abstracionismo aliado ao cruel e analítico “realismo” que eram impostos, e não é uma sensação tão diferente do que é possível sentir em Steel Division 2 (Steam).
Antes de começar a falar o que torna Steel Division 2 tão importante, é necessário documentar o que se entende por abstração e “realismo” dentro de um jogo de estratégia desse calibre. Similar a um wargame de maior porte como War in the East ou The Operational Art of War IV, a Eugen Systems está interessada em enxergar e demonstrar a guerra por um lado analítico; recriar da melhor forma — dentro das suas próprias limitações — tudo o que envolveu uma batalha ou campanha específica da Segunda Guerra Mundial. Em detrimento disso, há um gigantesco conceito de abstração que é inerente a qualquer jogo de estratégia; afinal, não é possível demonstrar cada faceta de uma batalha sem uma sobrecarga de informações. Já o realismo que digo vêm na forma da variedade e precisão na quantidade de unidades presentes, todas (se não, quase todas) equivalentes às divisões, batalhões e grupos que estiveram presentes no conflito.
Mas também é preciso apontar que a busca de “realismo extremo” dentro de um jogo é uma utopia. Não existe, por exemplo, uma completa simulação do atraso de ordens, linhas de suprimento e logística, e a complexidade que uma campanha gigantesca como foi a Operação Bagration insinua. Além do que, para isso se tornar real, também é preciso levar em conta a comunicação da época – muitas vezes os quartéis generais tinham um conhecimento limitado do que acontecia em campo de batalha, vendo os ganhos e perdas de um confronto muitas horas depois, quando o caos já havia se assentado e as informações vindas do frente foram passadas dentro do comando hierárquico das forças armadas e refletidas no mapa de campanha. Nada disso exatamente resulta em um jogo mais engajador. E no fundo Steel Division 2, queira ele ou não, ainda é isso: um jogo, e nada mais do que isso. Não é uma ferramenta analítica (e nem busca ser), e tampouco deve ser considerado como um testamento histórico da campanha que levou a União Soviética aos portões de Berlim.
O prefácio acima é necessário para Steel Division 2 mais do que para Steel Division: Normandy ’44 por conta do seu principal atrativo e maior alteração na sequência: o modo Army General. O novo estilo de “campanha” tenta recriar em uma escala 1:1 a primeira fase da operação Bagration, o levante soviético iniciado em 22 de junho de 1944 e estendido até o final da guerra, resultando na tomada de Berlim pelo exército soviético. É um conceito fantástico para um wargame — e um que também já foi explorado por certos games (The Operational Art of War IV, War in the East), nestes com um grau ainda maior de abstração, com turnos que equivalem a sete dias e hexágonos que determinam que cada unidade presente ali cobre um raio de 5km.
Nesse aspecto a campanha da Eugen é consideravelmente reduzida pela Eugen em favor de um detalhismo ainda mais minucioso: ao se focar nas primeiras investidas da União Soviética em território controlado pelas tropas do Eixo, ela permite a criação de situações de maior tensão, turnos que se separam entre “manhã e tarde”, um sistema robustos de reforços e detalhes assustadores sobre o terreno da região.
Alguns podem ter até uma certa noção de como a operação tomou forma: “O grupo de exércitos do Exército Vermelho” realizou um meticuloso ataque em todos os frontes do “Grupo de Exércitos Centro” do Eixo e, na medida em que tomaram território — junto com o levante de Varsóvia e a desestabilização da Alemanha Nazista devido à pressão também do frente ocidental e os constantes bombardeios realizados pelos Aliados — levaram a uma grande desorganização das unidades e frentes de batalha. Reforços se tornaram lentamente, progressivamente escassos até 1945, linhas de suprimento foram cortadas e o conhecimento da própria União Soviética do terreno em que trilhava era superior ao da Alemanha. É preciso apontar também que há uma grande pré-disposição, muita dessa vindo do gigantesco material gerado pela “cultura pop” e que distorce inúmeros aspectos da Segunda Guerra Mundial, de acreditar que ainda em 1944 a União Soviética era composta quase unicamente de um exército “despreparado” e a Alemanha Nazista e seus aliados continuavam a ser essa temível “máquina de guerra”, sendo que a própria operação viu o uso das unidades mais poderosas da União Soviética, a introdução em massa do T-34/85 — um dos mais potentes tanques do país — além do acúmulo de experiência dos generais após a invasão em 1941, o cerco a Stalingrado, Leningrado e a eventual retomada dessas cidades.
Outro ponto de suma importância é que as características geográficas do Leste Europeu raramente são usadas com tamanha precisão em um jogo. A única empresa fora a Eugen que ousou tentar tornar o terreno um componente essencial da campanha foi a Graviteam, com a sua série Graviteam Tactics, que também tem a sua bela dose de complexidade. Acontece que, por mais que você entenda e compreenda as unidades, você precisa saber — por exemplo — que grande parte da primeira fase da operação Bagration ocorreu em planícies, florestas ou regiões ligeiramente montanhosas. Também que não havia linhas de transporte tão bem definidas como aconteceu no teatro do Oeste Europeu. A maioria das tropas se movimentavam por estradas de terra, e as principais rodovias eram perigosas demais para as tropas soviéticas usarem como método principal de movimentação (o que começou a aumentar na medida em que eles tomaram território do Eixo). [Para mais detalhes sobre a campanha, recomendo a leitura de Operation Bagration: The Destruction of Army Group Centre June-July 1944, Operation Bagration, 23 June-29 August 1944. The Rout of The German Forces In Belorussia e Battle for White Russia: The Destruction of Army Group Centre, June 1944]
Conceitualmente, o que o Army General queria era pegar todos esses elementos e dá-los na mão do jogador para que eles fossem considerados na hora de movimentar tropas; era para ter sido o módulo mais “revolucionário” que a Eugen já havia criado até então. E eu pessoalmente acredito que é, se não fosse por um fato: ele é assustadoramente obtuso.
A razão pela qual citei jogos como The Operational Art of War ou War in the East – wargames com uma comunidade de nicho formada por entusiastas – é que ambos os jogos não possuem um tutorial competente. Isso nunca foi um grande problema para a comunidade, pois normalmente quem joga esse gênero tem isso em mente, e o manual que os acompanha tipicamente é mais do que o suficiente para responder as dúvidas. Isto é, se você tiver paciência de folhear 200 ou mais páginas de conceitos complexos. Steel Division 2, por outro lado, não só carece de um tutorial, como o manual dele já estava defasado antes mesmo do lançamento (pois usa imagens da versão beta) e é hospedado diretamente do site da Eugen, ao invés de ser disponibilizado em um PDF dentro da pasta do jogo – o que já é horrível para a preservação de jogos.
O que redobra a dificuldade é que nem mesmo conceitos mais básicos são demonstrados via tooltips competentes. Abandonei inúmeras campanhas do modo Army General por conta de pequenos detalhes que faziam uma total diferença na minha campanha. Unidades motorizadas, por exemplo, têm uma velocidade média de X km/h quando em uma estrada de terra, Y km/h quando em uma estrada asfaltada e Z km/h quando fora de qualquer via. O que soa como um detalhe na realidade tem um grande impacto nas próprias batalhas do jogo – visto que uma unidade, ao ser considerada para uma batalha, pode não chegar a tempo de reforçar a linha de frente, fazendo com que você perca sem mesmo entender o motivo.
Esse é um dos defeitos que eu continuo a ver nos jogos da Eugen desde Wargame – a teimosia da desenvolvedora em não prover um tutorial decente, esquecendo que o seu público não é a comunidade de wargamers, puramente formada por entusiastas que aturam qualquer tipo de complexidade pois é isso que torna os wargames tão fascinantes. Ela também é (majoritariamente) formada por fãs de estratégia em tempo real no geral, muitos deles vindo de Company of Heroes 2, Starcraft 2, ou até Total War, três jogos com tutoriais relativamente competentes e com uma escala de detalhismo bem menor do que o que a Eugen propõe em Steel Division 2. Eu não ficaria surpreso se a maioria das pessoas desistisse de jogar o game nos primeiros turnos do Army General; eu mesmo quase desisti, mas no fundo eu sabia que era só uma questão de ajustar a minha mentalidade até os conceitos mais abstratos e de níveis operacionais (tempo de movimentação de tropas, linhas de suprimento) terem a chance de se interligar com a camada tática do jogo. Isso demora muito para ocorrer, mas quando ocorre é que eu enxergo o tamanho da pedra preciosa em seu estado bruto que é Steel Division 2.
Jogar as batalhas no modo Army General foi o que instigou a minha pergunta no começo do artigo; ao invés de grupos aleatórios ou criados por você, você só joga com uma das divisões ou batalhões que realmente estavam presentes na operação. Uma ordem de batalha meticulosamente pesquisada (outra amostra da preocupação da Eugen Systems em representar da melhor forma o teatro do Leste Europeu) só reforça a ideia de que o Army General quer não só ser visto como uma mera distração, mas também como um “apoio” para compreender a Operação Bagration. Com os batalhões pré-selecionados, Steel Division 2 te força a criar uma certa “relação” com eles. Você aprende seus pontos fracos e fortes, como manejá-las em combate, qual a prioridade com que você deve enviar as tropas. Você acaba – de um ponto de vista analítico – praticamente íntimo com aquele objeto de estudo. Claro que ele nunca vai, nem busca repor um bom livro sobre o assunto; por isso mais uma vez recomendo buscar materiais de apoio para ler enquanto joga Steel Division 2.
Pois, novamente, apesar de toda essa minuciosidade e preparação, a base que constitui Steel Division 2 (em um nível tático) ainda é um jogo e seu propósito é engajar o jogador com questionamentos e fazê-lo tomar decisões cautelosas ou precipitadas. As batalhas que você irá travar no modo Army General são constituídas de situações tanto históricas como anistóricas. Para mim isso só as torna mais interessantes; é quase como a união de Total War com uma ambientação da Segunda Guerra Mundial.
Até o próprio combate tático – que até então era o ponto-chave de diferenciação de Steel Division 2 para outros jogos de estratégia da Segunda Guerra Mundial – é ligeiramente diferente no modo Army General. Tipicamente você tende a receber cerca de 50 a 100 pontos em uma quantidade específica de tempo; esse número é consideravelmente reduzido (assim como o custo das unidades), e o tempo de recebimentos deles aumentado consideravelmente. Isso tudo para “simular” a noção de que reforços podem demorar a chegar no mapa.
Como o restante do Army General – o que não deve ser nenhuma surpresa a essa altura – nada disso é explicado propriamente, mas em contrapartida eu já tinha batido tanto a cabeça na parede, dado murro em ponta de faca para aprender o restante, que esse foi o menor dos meus problemas. Ainda assim é uma maneira interessantíssima de simular o efeito; houve batalhas onde eu sofri com decisões tardias e pouco calculadas, tive que controlar parte do meu mapa apenas com unidades de infantaria enquanto esperava – torcia – para que a artilharia ou tanques chegassem a tempo para eu reforçar os meus ranques e formar uma frente de defesa mais poderosa.
É aqui que a noção de um jogo de estratégia ter mais de 600 unidades, um número quase ridículo de absurdo, tem a sua justificação. Antes eu via muito esse número como algo propagandista, servindo mais como incentivo para você gastar mais tempo no jogo (decifrando o maldito construtor de decks) do que outra coisa. Agora há um incentivo para entender; um grupo de soldados soviéticos armado com rifles SVT40 tem um alcance maior do que um grupo com PPSh41, mas tem uma taxa de disparo mais lenta. Tudo isso gera uma maior credibilidade e profundidade tanto para o Army General como para o restante do jogo, que merece um texto completamente separado.
Afinal, Steel Division 2 no fundo se trata de dois jogos em um, e entender a complexidade e os nuances de cada um deles requer o dobro de esforço. Pouco do que é aprendido puramente no modo Army General se traduz para as batalhas históricas, o modo skirmish ou o multiplayer (dessa vez com lobbies melhores e um netcode menos incômodo).
A principal distinção vem exatamente do construtor de decks, uma das marcas registradas da Eugen desde a época de R.U.S.E.. Aprendê-lo é um exercício contínuo por conta da quantidade de unidades presentes, a enormidade de combinações disponíveis, e a contínua falta de um material de apoio competente. Esse é o segundo maior empecilho de Steel Division (e da Eugen no geral): acredito que não há como tornar o construtor de decks algo moderadamente intuitivo. Existe uma opção para preenchê-lo automaticamente, mas de que vale se você não sabe o que as unidades fazem?
Como apontei em meu preview, a fatoração do terreno do leste europeu – com suas planícies, morros e traços de florestas – também torna as batalhas mais caóticas. Tanques se destacam mais do que em Normandy ’44, a artilharia se torna ainda mais útil para quebrar a linha de frente do inimigo (mesmo com um excelente debuff na versão final), e o microgerenciamento é triplicado pela quantidade de tropas na tela.
Se algo, esse é o pior remanescente de R.U.S.E. e de Wargame ainda em Steel Division 2. Por mais que eu queira assumir que, sim eu melhorei e uma hora eu me acostumei ao ritmo frenético do jogo, ainda deviam existir mais ferramentas que pudessem fazer o gerenciamento das unidades algo mais fácil. Uma certa automação além do comando de Hunt (que faz com que as unidades avancem, mas cancelem a ação assim que avistarem um inimigo) é necessária. Esse é um problema que também pode ser encontrado em versões mais novas de Close Combat – especialmente Close Combat 4 e 5. Ambos os jogos aumentaram o escopo dos mapas e não levaram em consideração as ferramentas para manejar tropas. Wargames como Command Ops 2 de certa forma “solucionaram” o problema ao considerar que toda unidade que avistar ou engajar um inimigo em combate imediatamente entra em modo defensivo — afinal, é parte da natureza humana. Nenhuma tropa vai esperar ser trucidada pelo inimigo para então buscar proteção. E é um pequeno detalhe que poderia fazer uma imensa diferença na hora de movimentar infantarias e tanques.
Ainda é cedo demais, porém, para determinar o quão “saudável” estará o multiplayer – na realidade eu acredito que nunca existirá um momento perfeito para definir isso, pela própria natureza de Steel Division 2. Ele não é a mesma coisa que Company of Heroes 2 ou qualquer outro jogo de estratégia. Ele não se atrela a um metagame evolutivo, ele é demasiadamente assimétrico devido a sua natureza mais “realista”. Você pode argumentar por horas e mais horas a diferença entre um Panther V e um T-34/85, mas a realidade é que cada um desses tanques vai atuar melhor em condições diferentes e a tentativa de balanceá-los só vai acabar removendo a própria “identidade” de Steel Division.
O que me leva à segunda questão primordial sobre a nova empreitada da Eugen: Qual é o seu propósito, exatamente? Seria alterar esse metagame, buscar o balanceamento para partidas multiplayer ou skirmish algo “divertido?” Veja bem, eu não acredito que todos os jogos devem ser considerados unicamente sob a luz de “é divertido ou não” — afinal, esse é o termo mais subjetivo que existe nessa indústria. Eu posso me divertir vendo os meus anões em Dwarf Fortress serem massacrados por um dragão ou uma lesma gigante ao sem querer esbarrar na sua caverna; isso não equivale a isso ser divertido a todos.
O que eu vejo que Steel Division – e a Eugen no geral – almeja é alterar constantemente o Status quo dos jogos de estratégia. Em grande parte, eu acredito que ela não só consegue, como provê um dos melhores cenários de batalha em termos de gerar discussões interessantes, problemas difíceis de serem contornados e uma série de decisões que precisam ser pensadas e repensadas tanto a curto como a longo prazo. Isso para mim é a essência dos jogos de estratégia: saber criar essas questões e gerar interações em níveis micro e macro que sejam interessantes para o jogador.
Entretanto, eu não posso deixar de apontar que já está mais do que na hora da Eugen repensar o modo dela de introduzir novos jogadores à franquia. Tutoriais são mais do que necessários, ou no mínimo um bom manual, atualizado e disponível inclusive offline, e deviam fazer parte do pacote básico do jogo. Esse talvez possa ser o maior problema que impede Steel Division 2 de alcançar um público maior e mostrar efetivamente seu potencial e sua grandeza.
Steel Division 2 está ao lado de Total War: Three Kingdoms no aspecto de revitalizar os jogos de estratégia em grande escala: é complexo, denso, multifacetado e faz as perguntas certas na hora certa, e oferece respostas tão complexas quanto elas. Ele merece mais espaço, mais atenção da comunidade de estratégia em geral. Ele junta tantos elementos que não deveriam fazer sentido e os harmoniza como poucas vezes visto. Ele é um triunfo de design da Eugen e o resultado de anos de iteração em sistemas. A curva de aprendizado é terrivelmente assustadora? Sem sombra de dúvidas, mas as recompensas chegam em dobro.
Steel Division 2
Total - 8.5
8.5
Steel Division 2 faz as perguntas certas que acarretam consequências de curto e longo prazo, harmoniza uma camada operacional e tática que merece ser estuda por fãs e designers de jogos de estratégia. Todavia, a teimosia da Eugen em não oferecer ferramentas de aprendizado para as suas (extremamente) complexas mecânicas. Se não fosse por esse detalhe, talvez virasse o jogo de estratégia mais importante de 2019.