A chuva bate no retrovisor do carro, o trânsito está caótico, o celular não para de tocar. É a sua ex-esposa. “Onde está Stela?”, “Eu não sei, mas eu vou encontrá-la”, diz o protagonista Daniel. A música se torna sombria. Você já sabe que está diante de um jogo de terror, não poderia ser mais óbvio.
No texto de anúncio do lançamento de Someday You’ll Return (Steam), Jan Kavan – um dos três desenvolvedores da CBE Software – comenta o quão difícil, ou até impossível, é fazer um jogo “indie” no escopo do que consideramos um “AAA” hoje em dia. De fato eu diria que é impossível, mas é por isso que eu gosto tanto de jogos independentes; eles não precisam se adequar às regras da indústria. Quando um deles tenta, que é o caso da desenvolvedora, algo tem de ceder para que isso aconteça.
A história gira em torno de Daniel, um homem que abandona tudo para ir atrás de sua filha Stela que, supostamente, desapareceu na floresta da Morávia. A introdução é a típica de um adventure com temática de terror. Curta, cheia de tensão e perguntas sem resposta. Daniel chega na floresta e é recebido por uma idosa com um sotaque britânico (não me pergunte o motivo), que cita um poema e te deixa ainda mais confuso. Clichês atrás de clichês.
O uso de clichês em si não me incomoda; afinal, encontrar uma obra que não tenha um ou dois é uma tarefa mais difícil do que tentar fazer um jogo “AAA” com os recursos de uma equipe pequena. Porém, os clichês vão além do que se espera de Someday You’ll Return, eles moldam o jogo, o protagonista e aqueles com quem ele interage, como uma bizarra colagem de temas que eu já vi serem debatidos muitas e muitas vezes dentro da esfera de jogos. Algumas vezes com mais sucesso, outras com menos.
Um dos temas, que eu não posso deixar de abordar aqui, é o de culpa. Sim, é mais um desses jogos, e eu fiquei estupefato em descobrir isto. Até então a minha visão sobre Someday You’ll Return era a de uma desenvolvedora que queria incorporar as lendas e mitologias da República Checa. Eles estão presentes, mas na sua maioria como elementos secundários – uma placa que conta a história da floresta que foi inspiração para o jogo, uma breve história que você encontra em um baú abandonado, pequenos toques que não aprofundam a temática central do jogo.
Trabalhar em cima da ideia de “culpa” é difícil; nos últimos 20 e tantos anos eu vi pouquíssimos jogos que não fossem pedantes para o jogador ou para o protagonista. Silent Hill 2, SOMA, Unavowed, Disco Elysium, para citar alguns. Someday You’ll Return poderia ter lidado melhor com a temática, mas parte disso está ligada ao então mencionado ato de “ceder” para incorporar o espírito de um “AAA” em um jogo independente.
A atuação de Daniel não é convincente; mais que isso, ela é inconsistente ao ponto de me deixar irritado. Mais ou menos na metade da história você esbarra com uma garota chamada Lea; ela diz não ter visto Stela, mas diz saber onde mora a “besta” – um dos monstros que te atazana durante a história. Ela te direciona para um castelo (outro ponto onde a realidade da história da República Checa cria uma leve ligação com a história do jogo). Ao voltar de lá, Lea não está mais no local onde você combinou de se encontrar com ela, voltando a aparecer minutos depois. Neste ponto Daniel explode de raiva e é agressivo com a garota.
Há todo um pano de fundo para causar isso – que não mencionarei devido a spoilers – mas mesmo sabendo dos motivos, a impressão é de um ator que lê as suas linhas com o menor entusiasmo possível e depois explode. É um “8 ou 80” tão intenso que me pegou de surpresa, e até a forma como ele explode com a garota não é muito bem dirigido. O evento serviu para alimentar e apontar os outros defeitos que Someday You’ll Return carrega.
Ele tenta ser um adventure com conceitos mais “tradicionais” (puzzles complexos, exploração, não-linearidade) e ao mesmo tempo um terror psicológico. Os temas podem ser “parecidos”, mas também são bem distantes. Adventures tendem a dar algum tipo de “agência” para o jogador, o que pouco acontece em Someday You’ll Return. Jogos cuja temática de terror psicológico atua como a primeira esfera no seu design costumam guiar o jogador por uma série de eventos – lineares ou não – para contar uma história.
Entre a péssima atuação e a mitologia da República Checa como um elemento secundário, dá para ver o quanto a equipe da CBE Software luta para incorporar adventure e terror. Ela tenta quebrar o ritmo da jornada com pequenos mini-games, como coletar flores para criar poções, colecionáveis e ainda mais fatos “curiosos” sobre a região.
Os puzzles em si demonstram que a CBE Software ainda é uma fantástica desenvolvedora nessa frente, e me relembram o quanto eu gostei de seu jogo anterior, J.U.L.I.A.: Among the Stars. Todavia, os mais complexos foram inseridos quase como para “estufar” o tempo de jogo até que a próxima sequência linear, ou algum grande mistério, se desenrole sem muito esforço ou agência por parte do jogador.
Vejo isso ocorrer de um jeito doloroso no sétimo capítulo, com um puzzle daqueles de tirar papel e caneta para decifrar o que tinha de ser feito. Eu fiquei tão contente, mas tão contente ao encontrar a solução. O puzzle tinha tudo o que eu queria: uso da temática da região para transpor runas, uma imensa caverna a ser explorada em busca de pistas — um daqueles que você supera na paciência e perseverança. Tudo isso para cair em mais uma sequência semi-linear onde a terrível atuação de Daniel rouba a cena de tão terrível que é.
Lamento ver todo o esforço da CBE em criar uma floresta virtual tão próxima da realidade ser jogado no lixo. Já fiz bastantes trilhas, e Someday You’ll Return captura a sensação de tensão e medo do “desconhecido” só de se pensar em sair do caminho demarcado. A tensão se dissipava no momento que lembrava que nada ia acontecer; afinal, esse não era o foco do jogo.
Também não posso deixar de apontar, ainda mais para uma equipe minúscula, como os ambientes no geral são bem trabalhados. Fiquei embasbacado como a CBE Software os explora, distorce e manipula para contar a história. Mas é aquilo: de que adianta uma casa bela e bem mobiliada quando a fundação é mal feita e pode ceder a qualquer momento?
Daniel é uma caricatura de vários personagens que eu encontrei em jogos de terror. Emocionalmente perturbado, quebrado, com traumas passados e a já mencionada culpa. Não acredito que deva haver redenção para esse tipo de personagem, mas não acho que eles devam sofrer para sempre. Cabe ao roteirista ou à desenvolvedora trabalhá-lo para que a tragédia seja ao menos comovente. A real tragédia é que Someday You’ll Return só consegue criar um “psychological torture porn” que me dá asco para tentar justificá-lo.
Este, no fim, é o preço que se paga por criar um jogo independente com o escopo de um “AAA”; uma indústria saturada, derivativa e criativamente esgotada. Você vira uma cópia barata, descartável, feita para ser consumida e esquecida. Daniel poderia ser o protagonista de Close to The Sun, Layers of Fear 2, Outlast 2, e tantos outros. Sabe o que eu lembro desses jogos? Nada. Em breve devo esquecer também sobre Someday You’ll Return – acho até melhor para a minha sanidade.
Total
Total - 4
4
Muito fraco
Ao invés de usar a cultura, mitologia e lendas da República Checa como ponte para contar uma história de terror, Someday You’ll Return luta para incorporar adventure e terror psicológico. Junte isso com um protagonista medíocre, uma história que bate em temáticas saturadas na indústria, e o que resta é um belíssimo jogo que que pode – e vai – ser facilmente esquecido. É isso que ocorre quando você corre atrás de tendências voláteis como a própria indústria.