Existe uma certa necessidade de “jogar seguro” no espaço AAA que me dá uma gigantesca vontade de esquecer essa “categoria de jogos” por uns bons anos. Algo pequeno faz sucesso, é incrementado a um jogo de grande calibre e lentamente ele faz tudo girar em volta de uma certa mecânica até extrair a última gota. Ao longo dos últimos quatro anos vimos séries se reinventarem com essas decisões. Assassin’s Creed tomou um ar mais voltado para o RPG em si do que a ação e o combate que o caracterizavam. Também vimos séries como Far Cry regredirem, da imprevisibilidade causada por um design focado em dar as ferramentas e liberdade como em Far Cry 2, para o raso e bizarro “apolítico” Far Cry 5. Desde o seu reboot, a franquia Tomb Raider está em um estranho limbo. Flerta com essas tentativas de outros desenvolvedores, mas sempre se estabaca. Shadow of The Tomb Raider (Steam / PlayStation 4 / Xbox One) aumenta ainda mais essa discrepância.
Alguns dias antes de escrever esse artigo eu assisti ao segundo episódio da terceira temporada de Peaky Blinders — uma série da BBC protagonizada por Cillian Murphy e ambientada nos anos 20. Quando terminou, eu estava meio zonzo. A série em si é boa, mas aquele episódio em específico não tinha nada em foco. Eram cenas em cima de cenas que só se conectavam pelos personagens principais — quando isso. Não havia um motivador, não havia um desejo claro; parecia que tudo havia sido jogado na tela e que se dane, sabe? Levanto essa comparação pois é assim que me senti com a história de Shadow of the Tomb Raider. Joga o que tem na tela, ou melhor, no papel, e vê o que funciona dentro dos padrões da série. Os fãs reclamaram que a Lara era muito violenta no anterior? Então corta. Tinha muita ação? Corta também. Faltaram mais momentos de emoção e sentimentalismo? Põe em dobro.
Convenhamos, Lara nunca foi uma personagem com um perfil bem definido — salvo pelo assassinato do seu pai — e, ao invés da Crystal Dynamics e da Eidos Montreal trabalharem em cima disso, eles repetem o mesmo dramalhão a cada episódio. Todo acampamento que você encontrava em Rise of the Tomb Raider te entregava um monólogo de seu pai, e Lara respondendo de alguma forma, como se eternamente presa ao passado.
Essa perda — essa necessidade de se provar que até então não é explicada — continua na sequência. É o combustível que faz Lara tomar decisões arriscadas e, muitas vezes, estúpidas. Entretanto, quem é essa pessoa que não conheço? Ela entra em uma metamorfose que, ao invés de vir de sua história e dos eventos ao seu redor, parece vir simplesmente dos caprichos e devaneios dos roteiristas. De todas as (terríveis) ações causadas por ela, e das emoções que as seguiam ou caracterizavam, a única que deu um semblante de quem ela é foi raiva, seguido de algo que parecia um sentimento de culpa misturado com alívio, ao ver Jonah — o seu acompanhante de viagem — vivo.
Pera, Jonah? Não é aquele personagem que faz algumas pontas tanto no primeiro quanto no segundo jogo? Era para ele ser importante? Fique tranquilo pois cenas — dignas do melhor dramalhão Mexicano — ajudam a construir a amizade de Lara e Jonah. Você fica “Pera, mas como assim, como eles eram próximos?” Cinco minutos depois e essa narrativa é destoada. O ciclo se repete, se expande também para os personagens secundários, como por exemplo os membros da tribo que defende a cidade “secreta” de Paititi, e que julgam Lara a salvadora do universo, mesmo sendo basicamente a culpada por eles estarem à beira da destruição. Uma catástrofe.
Na mesma linha, Shadow of the Tomb Raider também apresenta uma grande indecisão; o jogo não decide se adapta a sua história para as suas áreas ou as suas áreas para a sua história, um problema que surgiu em Rise of the Tomb Raider, mas é exacerbado ainda mais na sequência. Quando penso em Lara “perdida” na selva, penso em áreas de vegetação densa e com uma certa dificuldade de se situar, mas isso nunca acontece. Do minuto inicial até os créditos rolarem, o jogo não sabe quando soltar a sua mão — mesmo com as tais opções de remover guias ou dicas para adivinhar para onde ir — e com isso traz a sensação de que é um longo, imenso, e tortuoso tutorial. Esse efeito continua a se proliferar na medida em que você percebe que o mapa em si não só traz uma falsa densidade, mas também não consegue justificar a sua presença e a forma na qual é construído.
Para explicar isso preciso retornar ao mapa do reboot da série. Apesar de trazer inúmeras falhas em questão de conteúdo — falta de tumbas de desafio, ênfase na ação e tantas outras coisas — o impressionante foco da Crystal Dynamics em transformar a ilha em uma entidade “viva”, em algo tangível, era louvável. Todos os caminhos davam, de uma forma ou outra, em um ponto específico da ilha. Ou seja, você sentia que progressivamente a explorava e mapeava os seus segredos. Em uma comparação um pouco esdrúxula — e exagerada — é possível traçar paralelos entre algo como um metroidvania moderno ou até mesmo Dark Souls (no quesito de level design) e o reboot de Tomb Raider. Shadow of the Tomb Raider, por outro lado, mais aparenta um conjunto imenso de fases presas por arames e cordas. Você entra em uma nova área, descobre um templo, olha para o mapa e se pergunta “como que diabos esse templo está aqui”? Depois você esbarra em outro templo que parece dividir o mesmo espaço físico do templo em que você tinha entrado antes, e fica mais confuso ainda. Pera, que, como, onde?
A comparação também é muito válida até mesmo ao olhar para Rise of the Tomb Raider, especialmente a instalação soviética e as subsequentes áreas, onde as primeiras quatro horas do jogo acontecem. A área, que serve como um tutorial, te ensina as mecânicas básicas —como usar o arco-e-flecha para amarrar cordas entre postes, escalar, etc —mas te deixa livre para vasculhá-la a seu bel prazer. Tumbas de desafio, por exemplo, já são vistas por lá e são um misto entre um tanto de combate — que ainda é o ponto mais fraco de Rise of the Tomb Raider — e exploração e solução de quebra-cabeças.
Em contrapartida, as áreas iniciais de Shadow of the Tomb Raider —além de serem tematicamente bem similares ao que a Crystal Dynamics fez em Rise, como se a Eidos Montreal estivesse com um imenso receio de se desvencilhar do caminho já traçado pela antiga desenvolvedora — denotam a maior fraqueza do jogo: ele simplesmente não foi feito para ser apreciado puramente pela exploração.
Se Rise of the Tomb Raider é 70% combate e 30% exploração, Shadow of the Tomb Raider é o inverso. No papel isso soaria perfeito, pois esta sempre foi a essência de Tomb Raider; porém, os jogos anteriores tinham um design claramente inspirado nesse conceito. Havia um grau de desafio e consequentemente frustração quando se errava um pulo, quando se caia nos espinhos por não iniciar um pulo precisamente na ponta de uma plataforma. Falhas acontecem em Shadow? Claro, mas não por conta desses motivos; muitas das falhas são sequências preparadas previamente, estáticas, como uma parede que desmorona e te pega de surpresa. E esses elementos são usados e reutilizados com tamanha frequência em Shadow — de fato, tanto nele quanto nos seus antecessores —que fica de certa forma “manjado”. Você sabe que aquela parede ou pedaço de madeira, que está claramente podre, vai desmoronar e te dar um leve susto. Lá pela quinta vez não tem mais susto; você já está preparado. O que resta então? Escalar paredes, pular de um canto para o outro com as mecânicas de movimento mais simplistas possíveis e — se você der muita sorte — achar uma tumba de desafio com um quebra cabeça que exija um mínimo de mínimo de raciocínio. Abro um parêntese aqui, pois existem tumbas de fato muito boas, e são o ponto alto do jogo.
O que falta no aspecto exploratório não é complexidade — você não precisa de controles “complexos” para efetuar pulos mirabolantes —mas sim saber intercalar os controles básicos com outras mecânicas, situações ou momentos de tensão que tirem esse elemento de “mesmice” de Shadow of the Tomb Raider.
Ironicamente, nem mesmo o combate — que imaginaria usar ao menos a base de Rise of the Tomb Raider para se safar de críticas — escapa. A “novidade” é a capacidade de Lara se sujar de lama para não ser detectada pelos inimigos. Novamente, um conceito interessante, porém mal executado devido à facilidade que se tem de eliminar qualquer soldado ou oponente por métodos mais tradicionais, eliminando a necessidade de tentar uma aproximação furtiva. Quando o jogo não promove uma variedade de estilos, ou ao menos me instiga a testá-los, para que eu vou me dar ao trabalho? Pra ganhar uns pontos de experiência a mais na já estonteantemente inútil “árvore de habilidades”? Aliás, esta última mecânica é um outro bom exemplo de outro componente “da moda” na indústria “AAA”, naquela dança do jogar seguro, e que em Shadow of the Tomb Raider acaba por ser mal incorporada e mal implementada. Novamente, o importante aqui é demonstrar que Lara tem uma nova habilidade, por mais fútil que ela seja em sua implementação.
O que me incomoda nisso tudo é que, nos momentos onde a jogabilidade se encaixa — como uma das tumbas de desafio onde eu tive que alinhar uma série de espelhos, algo com um “twist” na fórmula de ordenar objetos em uma sala feita com maestria e variedade — e nas “setpieces”, a iluminação e os visuais de Shadow of the Tomb Raider são particularmente espetaculares. E não é que tudo ao redor desses momentos seja ruim; o problema é que raramente cooperam para fazer o jogador se sentir engajado, interessado no que vem a seguir, ou intrigado quanto ao próximo plot twist (previsível) da história, qual a próxima tumba (repetitiva) que encontrará, ou qual o próximo combate que terá pela frente (praticamente igual ao anterior).
A realidade do jogo, no entanto, foi outra. Se desse sorte, muita sorte, haveria um novo tipo de inimigo. Parava de jogar por algumas horas para não entrar no modo automático — aquele modo que você sequer presta atenção no que ocorre na tela e se foca só no próximo objetivo, como um atributo ou característica que tendo a limitar a Action RPGs como Diablo e seus derivados.
Se você me acompanha há um tempo, deve achar que eu sou como uma vitrola que está com a agulha quebrada com o que eu vou acabar de escrever: nem todo jogo precisa inovar, ou reinventar a roda, ou qualquer coisa. Não esperava, jamais esperei isso de Shadow of the Tomb Raider. Dele eu espero um jogo polido, que saiba alternar entre situações que vão de caóticas a tranquilas, e que fortaleça a relação com os jogos anteriores, ou ao menos trabalhe em cima da base deles. O que vejo aqui não é isso; é um jogo sem foco, que apesar de ser o terceiro da série, ainda não é capaz de entender como trazer ambientes ou situações variadas o suficiente para manter alguém engajado. Que essa seja por enquanto a última aventura de Lara Croft, pois ela precisa de umas boas, longas — muito longas — férias.
Shadow of the Tomb Raider
Total - 6
6
Um enredo que não engata, personagens feitos de papel machê, mecânicas superficiais e situações que não apresentam variedade na jogabilidade fazem com que Shadow of the Tomb Raider seja o jogo mais fraco da nova trilogia. É hora de umas boas férias, Srta Croft.