“Eu quero jogar Scorn, mas eu não quero escrever sobre Scorn”, disse um amigo quando eu mencionei o quão empolgado estava pelo jogo não só como um backer do Kickstarter, mas depois de ver vídeos, trailers, e tantas outras apresentações. Após completá-lo no PC (Steam / Xbox Series S e X), eu entendo em parte o que ele quis dizer.
Para uns, “Scorn” não vai ser nada mais do que um jogo de exploração / sobrevivência com elementos frustrantes e uma história que não vai a “lugar algum”. Para outros, um jogo onde o seu maior potencial está no aspecto visual e grotesco do misto de body horror, transumanismo e uma história que dá pinceladas gerais mas não entrega as respostas de mão beijada.
É verdade que “Scorn” é peculiar, mas não por conta destes aspectos. No que diz respeito a jogabilidade, eu concordo que o combate podia ser melhorado em algumas áreas e também o sistema de checkpoint – agora corrigido em uma atualização na data da publicação desta matéria – era frustrante. Por outro lado, estes aspectos são o que tornam “Scorn” o que ele é.
Eu vejo a recepção de “Scorn” relativamente similar ao que aconteceu com “Cyberpunk 2077” mas em uma escala muitíssimo menor e com um diferente foco. Nós tendemos a olhar para “grandes produções” – termo aqui usado para definir jogos com visuais estonteantes – e esperar algo tangível, focado em todos os públicos, tentando abocanhar a maior quantidade de “consumidores” possível.
A esfera de jogos de terror também foi impactada por isto, vide a mudança de alguns puzzles em Resident Evil 2 Remake, sem contar a terrível adaptação de Resident Evil 3. Ainda que ambos os jogos retenham a essência do que é “Resident Evil”, nenhum deles seguiu minuciosamente a receita criada nos anos 90 – e nem deveria. Entretanto, eu continuo vendo muitas partes deles como oportunidades perdidas, queria mais áreas exploráveis, o retorno de certas lutas e por aí vai.
Até mesmo o próprio “Amnesia”, um jogo que está longe de ser uma “grande produção” teve sua complexidade reduzido em “Amnesia: Rebirth”. Os quebra-cabeças mais cabeludos foram trocados por uma história mais linear e fácil de digerir para o público. Jogos que não seguem essa tendência acabam no escanteio, escondido entre pilhas e mais pilhas de lançamentos em sites de jogos independentes como o itchio e não recebendo o devido reconhecimento – o que é uma grande pena.
Portanto, é impossível não notar que “Scorn” também é impactado por isto até certo ponto, mas o design que o norteia é antítese dessa nova leva de jogos de terror. Ele pode ter longos corredores quase labirínticos, mas os corredores servem um propósito que vão além de te deixar confuso. Eles estão ali para reforçar a ambientação hostil e decadente que o jogo retrata com tamanha eficácia.
Os monstros, igualmente hostis, estão ali para te atormentar, para te matar. “Scorn” não quer ser gentil com você, ele quer que você apodreça junto com o resto de seu mundo. O combate de fato podia ter sido melhor trabalhado, mas isso não diminui o fato que “Scorn” quer que você o evite o máximo possível, mesmo que não fale isso com palavras.
A ausência de palavras também é outro ponto importantíssimo de “Scorn”. A decisão da Ebb Software de não segurar a sua mão salvo em raríssimos momentos me enche de alegria, ainda mais depois de cobrir e jogar uma leva de jogos dolorosamente segmentados em tutoriais.
Qual é o seu propósito em “Scorn”? Quem você é? O que você fez para chegar na instalação onde grande parte da história se desenrola? Algumas peças do quebra-cabeça são decifradas ao longo da história, mas nada definitivo.
Certos momentos marcantes do jogo me lembram bastante muitas conversas que tive com amigos, amigas e outras pessoas próximas sobre finais de filmes. “Ué, já acabou” ou “Acabou assim mesmo?” como se uma produção precisasse sempre ter uma conclusão definitiva. Caso isso não ocorra, as pessoas irão extrair – ou ao menos tentar – significados de elementos mundanos, enxergar o invisível no visível.
Não posso deixar de mencionar aqui que “Scorn” é marcado por simbologias, algumas delas claras e que vão muito além da mera inspiração em H. R. Giger e Zdzisław Beksiński. Mas sinto que muitas delas estão ali para que cada um possa extrair a sua própria noção do que aconteceu em seu mundo e não ser guiado por teorias “definitivas” que certamente irão aparecer nas próximas semanas ou meses – seja por meio de ensaios, artigos ou vídeos.
Na mesma moeda, essa simbologia, a ausência de palavras e o fato de o jogo não querer segurar a sua mão também são os seus maiores problemas. Eu aprecio os esforços da Ebb Software, mas a forma que certas cenas e locais foram produzidos mostram muito bem como o impacto do “ser mais acessível para um público abrangente” e o medo de que isso prejudique as vendas acaba machucando mais a essência do jogo.
Sua hora inicial é formada por um longo e, relativamente “complexo” quebra-cabeça, mas em nenhum outro ponto da jornada esse momento é replicado com a mesma intensidade. A maior dificuldade que você vai ter é achar algum objeto / item e colocá-lo no local certo.
Parece que a Ebb Software queria fazer mais com os quebra-cabeças, mas se sentiu restringida pelo próprio mercado e as expectativas dos jogadores. “E se não conseguirem passar dessa parte? Acho que deveríamos colocar algo mais ‘fácil’ aqui” é a interpretação que tive de muitos dos seus quebra-cabeças. Outra cena de significante importância – que não vou mencionar por questões de spoiler – reforça apenas que o combate não era para ser o foco do jogo, ao menos não na intensidade que ele é.
Por isso que eu digo que “Scorn” é um jogo peculiar. Ele por si só é um paradoxo. Um reflexo de uma indústria extremamente rígida em suas estruturas e outra indústria que luta para explorar novas fronteiras — algumas já exploradas por desenvolvedores independentes — mas que cada vez mais pisa em ovos para não perder o que é o mais importante de tudo: o lucro.
Me pergunto se há em algum lugar uma versão de “Scorn” mais voltada para a exploração, em solucionar quebra-cabeças mais envolvidos do que mover objetos, de oferecer um mundo para o jogador, deixá-lo explorar e mais nada. Faria tanto sucesso quanto a versão final? Considerando o quão divisiva ela é, não sei.
O que sei é que, independentemente do seu grau de interesse, você deve dar uma chance para “Scorn”. Vão existir muitos momentos que podem — e talvez vão — te frustrar, a ausência de uma direção é essencial para que ele seja tão eficaz em propiciar a sua atmosfera opressora. O aspecto “ame ou odeie” nunca irá embora, e isto é algo que tanto a Ebb Software quanto a comunidade precisam aceitar.
Ora, eu mesmo amo e odeio “Scorn”, eu queria que ele fosse um jogo diferente do que eu recebi – como tão bem apontei nos últimos parágrafos. Mas ele comete mais acertos do que erros, e mesmo nos seus pontos mais baixos, foi uma experiência que eu quero guardar com bastante carinho. Sabe lá quando teremos outro jogo do mesmo calibre.
Scorn
Total - 8.5
8.5
Ora fantástico, ora frustrante, Scorn é um paradoxo. A Ebb Software criou um jogo fantástico onde o desejo de explorar novas áreas é contínuo, mas que ainda é restringido por como o “mercado de jogos” entende que os atuais jogos de terror devem funcionar. Mesmo que decepcione em áreas como combate e a facilidade de seus quebra-cabeças, ele vai te marcar de uma forma ou outra. Recomendadíssimo.