Assim que os créditos de Ruiner (PC, Xbox One, PlayStation 4) rolaram na tela fui tomado por uma completa sensação de apatia. O que foi construído, demonstrado ao meu redor havia atingido um ponto de perdição que eu sabia que era impossível de mudar. No fundo, o que eu fiz ao longo das oito horas de jogo não era muito diferente do que eu lutava contra.
Situado na metrópole de Rengkok durante o ano 2091, Ruiner pode ter todos os “clichês” de cyberpunk que você pode imaginar – uma população degenerada, o controle corporativo, a desumanização do ser. A forma como ele mostra e ao mesmo tempo esconde essa violência é o assustador. Diferente do adventure Observer, que muitas vezes oculta o real pavor da tecnologia e o avanço humano atrás de portas e mentes, Ruiner faz você se moldar a ele; abraçá-lo, torná-lo seu.
Nas suas primeiras fases tons neutros e azuis prevalecem no cenário. Era o começo de uma mudança. A violência existia, eu batia nos inimigos e os via esguicharem sangue como porcos sendo cortados no abatedouro. Eu tinha uma missão naquele momento, e aquela missão era clara. “Kill BOSS”. Não questionei o tom autoritário da mensagem, sequer pensei em quais seriam as suas implicações.
Quanto mais me aprofundava naquele universo, mais me sentia indiferente. Rengkok South — que funciona como um hub e como lar de degenerados e esquecidos — carregava tudo de errado que eu podia imaginar. “Eu aguardo seu sofrimento”, disse uma das “Irmãs da Desordem”, algo como um culto que provê salvação através do sofrimento. Seria este o meu próprio sofrimento, ou o sofrimento dos outros?
A implicação da mecânica atua como “quanto mais você morrer nas fases, mais te daremos ‘presentes’”, mas eu não necessariamente estava sofrendo, pois não estava ali presente nem em corpo nem em espírito. Eu não era aquele personagem, não existia uma ponte que me ligasse a ele. Ou eu concordava com um leve balanço da cabeça, ou eu dava com os ombros, ou acirrava o punho. Era aceitar Rengkok do jeito que era, fechar os olhos à realidade ou responder com a única ferramenta: violência.
Posso teimar e dizer que eu joguei Ruiner, mas creio que foi ele que “me jogou”. O silêncio do protagonista perante a injustiça social e a desigualdade, e a forma como ele via a violência como resposta para tudo era como ser somente mais uma peça em um imenso tabuleiro onde eu não conseguia ver as próximas jogadas.
Ser incapaz de prever o futuro é de onde Ruiner tira as ideias para o combate – reativo e inesperado. Poucos são os períodos que eu realmente tinha a noção do que acontecia na tela. Em partes é frustrante, pois não tem aquele refinamento e tempo de resposta preciso que eu vi em shooters como Nex Machina. Apesar de estar ciente dos defeitos, Ruiner não teria funcionado tão bem como funcionou para mim se esse fosse o caso.
A mudança da paz para o caos caos e violência acontece em instantes. Ora eu estava andando em meio aos corredores de uma fábrica recém evacuada e momentos depois eu era rodeado de inimigos. A única escapatória era vencer, sobreviver.
Você já jogou um jogo bastante a ponto de apenas seguir os passos aos quais já está acostumado? Pode ser que tenha acontecido em um action RPG como Diablo, ou um “grind” em um MMO. Ruiner faz isso propositalmente. Existe uma grande flexibilidade na maneira em que confronta os inimigos. Espadas, canhões laser, escudos temporários que rebatem balas. São sistemas que buscam minimizar o tempo de reação do jogador, fazê-lo agir antes de refletir. Afinal, você já sabe os passos dessa dança.
A falta do “pensar” cruzava a barreira das mecânicas para os cenários. A brutalidade aplicada aos ataques nos inimigos – e entenda-se por “inimigos” quem sonhar em cruzar a frente do protagonista – agora era escondida pelos tons vermelhos. O sangue se misturava com o cenário como uma mancha vergonhosa em uma cidade em decadência. E eu em partes estava contribuindo para prolongar aquele cenário de desigualdade.
Nós, como seres humanos, buscamos validação em meio ao caos, queremos acreditar que a nossa realidade é a realidade “correta” e que coexistir com outras é um ponto de incômodo e de discórdia. É como ver uma família desabrigada na rua e se afastar só para dizer a si mesmo por meio de gestos que aquilo não é algo que faz parte da sua existência nesse planeta. É não questionar a si mesmo se você prolongou a existência daquele cenário, indiretamente ou não.
Quando Ruiner se faz, de um ponto de vista de jogabilidade, difícil (e ele realmente é), não é puramente pelo sadismo da Reikon Games em impedir o avanço, mas para frustrar o jogador ao ponto de borrar a barreira entre esses dois pólos.
“Aqui temos uma grande corporação que tomou o controle de tudo”, apresenta “Ela”, uma coadjuvante sem nome que te acompanha durante a jornada de destruição. “Agora vá lá e os destrua, cachorrinho”. “Puppy”, como ela me chama em inglês.
Era isso; a minha tarefa dentro de Ruiner não passava mais do que ser um cachorro na coleira – violento, atento e pronto às ordens, criado na desigualdade e alimentado com indiferença ao ponto de ser incapaz de distinguir para qual realidade eu trabalhava.
“Eu e você não somos tão diferentes”, disse um dos chefões de Rengkok.Minha primeira reação era discordar, pensando que essa frase é tipicamente proferida quando há um conflito de interesses extremo, ou quando quem escreveu o diálogo quer tornar o vilão mais humano. Mas a realidade é que nós realmente não éramos diferentes. Ambos tínhamos sido guiados cegamente pelos tons rubros de Rengkok, seduzidos pela violência e pela falsa sensação de poder, ordenados a fazer algo para o bem de algo ou alguém, seja lá o que isso significasse. O que é ter “poder” quando o único reino que possui está em ruínas? Para o que serve matar puramente por matar?
KILL YOU KILL YOU KILL YOU KILL YOU KILL YOU KILL YOU KILL YOU KILL YOU KILL YOU KILL YOU KILL YOU
Eu o reencontrei horas depois, reanimado em um novo corpo, mas com o mesmo objetivo. Dois cachorros, dois “paus-mandados”, prontos para se dilacerarem para seus mestres. Era seguir em frente ou seguir em frente. Frustrante, irritante e depois indolor.
Morre-se tanto que o próprio ato de “perder” tem sua significância sugada. Lutei tanto pela sobrevivência, pelo meu direito de “existir” dentro daquele contexto que as cordas que me prendiam em uma cadeira imaginária apertavam tanto que me acostumei a elas. Nem direito ao descanso eu tinha.
Não existe salvação no sofrimento, nem mesmo redenção. As cenas finais de Ruiner são a conclusão da transformação de um ser que em algum ponto tinha vontade própria para a pura apatia. “Nod” ou “Shrug” foram as últimas palavras descritas na tela. Não tinha mais volta, tudo estava feito. As peças estavam nos lugares e eu não previ seus movimentos. O cachorro amordaçado fez o que lhe foi ordenado.
“Meet me where Heaven falls” foram as últimas palavras que “ela” me disse. Eu sabia que não era verdade. Se Ruiner me ensinou algo foi que não há um Céu em Rengkok. Não para mim, não para o meu personagem. Subi na moto e parti rumo ao desconhecido. Apatia virou nojo — nojo do que me tornei.
Agora? Agora é tarde demais para me arrepender.
A análise foi feita com base em uma cópia de PC enviada pela Devolver Digital
RUINER
Total - 9
9
A explosão de cores, violência e sangue de Ruiner é capaz de, na mesma intensidade, esconder e exaltar a grotesca trajetória de criação de apatia pela decadência. Destruir o que resta de humanidade em cada um de nós e mostrar que todos de Rengkok, mesmo que inconscientemente, seguem ordens. Nojento, nauseante e insano.