Ao longo dos anos jogando RPGs, o meu interesse pela próxima “gigantesca aventura” diminuiu drasticamente. Ainda gosto de reservar um domingo para jogos como Pathfinder ou Xenoblade Chronicles 3. Durante a semana, eu encontro a minha diversão em coisas “menores”, como avançar no RPG Wayward, ou desenhar mapas com a ajuda do RPG Delve. Quando comecei a jogar Roadwarden (Steam/GOG), da Moral Anxiety Studio, vi meu sonho de ser alguém com um papel “pequeno” em um mundo que se abria na cadência que eu desejava se realizando.
Aviso de antemão que Roadwarden não é um jogo para todos. Ele é parte RPG, parte visual novel, parte adventure, e requer uma boa dose de proficiência em inglês. Boa parte da interação com o cenário e personagens é feito ao selecionar sentenças e os visuais se limitam a artes que acompanham descrições dos locais. As suas duas primeiras horas se desenrolam como uma lenta caminhada pela floresta, e esta é uma decisão consciente da Moral Anxiety Studio.
Este é um dos raros casos em que eu aceito a lentidão na transição inicial até que a história comece a pegar ritmo, pois a Moral Anxiety Studio a faz ser tão gostosa quanto ler um livro debaixo das cobertas em um dia nublado. Uma leve melodia sempre acompanhando cada página e tons precisamente selecionados para passar um senso de mistério ajudam a criar o clima.
A desenvolvedora usa esse tempo para apresentar a península onde a história se passa, qual o seu papel como um Roadwarden – um misto de representante da guilda mercantil e mercenário – e como a sua presença vai afetar ou não os locais. Seu principal objetivo? Encontrar rotas lucrativas e o paradeiro do último Roadwarden em até 40 dias. Um objetivo que, se você quiser, pode ser deixado de lado.
Aureus, o escritor por trás do universo de Roadwarden, usa uma metodologia de apresentar o jogo como um “livro”, mas um “livro aberto”. Além das opções de dificuldade – que vão de não ter um tempo limite para completar a quest principal até um modo mais punitivo onde você tem que pensar bem na sua rota, pois o tempo é reduzido para 30 dias – o jogo te dá inúmeras opções de como prosseguir pela península.
Quem sabe você vai gastar um ou dois dias em uma taverna conversando com a população local e entendendo mais sobre as diferentes criaturas e facções presentes. Outra alternativa: montado no seu fiel cavalo, seguir de posto avançado para posto avançado – todos dilapidados e carentes de tropas devido a incontáveis ataques de monstros – até descobrir novas pistas sobre o paradeiro do seu antecessor.
Seja qual for a sua escolha, eu recomendo que você não devore Roadwarden de uma vez só. Não se apresse. Jogue uma sessão de 30 minutos, volte outro dia caso esteja cansado. O jogo não vai a lugar algum. Mas, se a minha experiência vale de algo, é provável que as sessões durem muito mais do que meros minutos.
A riqueza de detalhes em cada parte do mapa — seja pelas descrições coesas, porém afiadas da escrita do jogo, ou pelo imenso glossário que me lembra folhear as páginas do imenso guia para Glorantha de Hero Quest — é estonteante. Não houve uma única situação em que eu senti “perder” o meu tempo. Pelo contrário; eu estava tão absorvido pela história e as possibilidades que sequer via as horas passarem. Só me dava conta quando Roadwarden me chamava para a “ação”.
Na mesma moeda que a península de Roadwarden tem uma beleza singular, ela é impiedosa para quem ousar navegar por suas estradas após o cair da tarde. Monstros, zumbis, aparições e outros tantos eventos podem ocorrer se você se arriscar.
Tais eventos seguem a mesma linha do resto do jogo e trazem muito pouco senso de grandeza. A vitória é sobreviver com o mínimo de arranhões possíveis e – quem sabe – chegar em um local seguro. O que determina isso são rolagens invisíveis de dados, a classe que você escolhe no começo da história — no meu caso, um guerreiro — e qual é o seu equipamento no presente momento do evento.
Sabe qual foi a minha maior vitória? Escapar de um ataque de grifos sem sofrer danos físicos. Entretanto, perdi moedas, sujei a minha roupa e fiquei com fome. Ao chegar na taverna, tinha que decidir entre tomar um banho e ter um local decente para dormir ou ficar mais um dia sem comida no estômago.
Tais nuances são cruciais para expandir a narrativa de Roadwarden. Decidi comer ao invés de dormir. Ao chegar na primeira grande cidade da península, o prefeito me tratou de forma grosseira por conta da minha aparência. Por curiosidade, decidi recarregar um save ao chegar na taverna e preferi dormir. O prefeito ainda foi grosseiro, já que como muitos em uma península semi-independente, ninguém quer ter um bisbilhoteiro da guilda mercantil procurando maneiras de lucrar em cima deles, mas não tanto quanto da primeira vez.
Cada pergunta ou resposta cria uma nova raiz na imensa árvore que é Roadwarden. Não é possível ver todas as possibilidades em uma única partida, o que pode decepcionar quem busca explorar cada canto do mapa. Mas tudo, absolutamente tudo que você faz é levado em conta. Decidiu falar com alguém com um tom mais agressivo? Pode ser que tenha perdido uma peça importantíssima de informação. Alguns personagens mentirão ou falarão sobre certos temas com severa imparcialidade.
Há formas de “trapacear” e escolher outras opções pelo método de quicksave e quickload, mas para mim não vale a pena. Eu gosto de acreditar que as ações que eu faço em um RPG refletem a minha identidade. Caso isso me impeça de ver ou desvendar algo, é a mesma coisa na vida real. E, caso você esteja preocupado de “empacar” em Roadwarden, o jogo ao menos é gentil de salvar automaticamente em cada ponto de interesse que você chega, então não tenha medo de parar e pensar no que fazer antes de realizar uma ação.
Além do que, eu tinha outras preocupações na minha cabeça enquanto jogava Roadwarden do que se um caminho “X” ou “Y” não iria estar disponível para mim. Eu queria saber do que se tratava a estranha escritura no lago, ir mais à fundo nas políticas e sistemas religiosos predominantes na península. E, claro, descobrir de fato o que houve com o meu antecessor.
Outra vez eu preciso exaltar a incrível escrita de Aureus, que consegue descrever situações e criar personalidades para tantos personagens sem rosto na tela e formar uma imagem mental sensacional, ao ponto de eu saber mais ou menos como eu devo lidar com eles. Não só isto, mas as repercussões que ocorrem à medida que a história vai avançando são incríveis.
Escolhas feitas no começo da jornada podem ter um impacto significativo com um grupo ou uma classe social. Saí de vilarejos onde fui recebido de braços abertos e retornei a eles sendo humilhado. Pode ser porque eu decidi ajudar um grupo de soldados, ou tive que abater um animal que para eles era considerado sagrado.
Eu questionei as minhas próprias decisões, até mesmo agora durante a escrita deste artigo. “Será que eu deveria ter pegado aquele machado? Mas, se não tivesse feito, eu estaria morto”. “Começar a conversa usando um tom leve com uma figura importante foi o certo?”. Não vejo como uma questão de arrependimento, mas sim uma posição onde o meu eu pessoal estava em um beco sem saída quando se tratava de assumir o papel do Roadwarden.
Ponderar sobre o passado não é o meu forte. Os quarenta dias se passaram e minha jornada chegou ao fim. Não vou entrar em detalhes se tive sucesso ou não em encontrar novas rotas lucrativas ou se descobri o paradeiro do meu antecessor.
O que sei é que muito do meu glossário ficou incompleto. Alguns detalhes sobre os monstros ficaram no limiar entre lendas locais e situações que vivenciei. A península abriu suas portas para mim e eu explorei o que pude dela.
Mais importante do que tudo, é que eu sei que daqui a alguns anos eu vou voltar para Roadwarden e completar o que faltou. Com sorte, vou tomar coragem e escolher uma classe diferente e, na próxima vez que ver uma ramificação na estrada, decidir ir para a esquerda ao invés da direita.
As histórias contadas pelas interações, descrições e personagens de Roadwarden podem não ser tão grandiosas como os RPGs mais influentes dos últimos anos. Mas ele merece, e muito, um local entre os gigantes da história. São jogos como ele, Caves of Qud, Disco Elysium, Darklands, Serpent in the Staglands e King of Dragon Pass que marcam a minha vida e definem o meu amor por RPGs. Faça um favor a si mesmo e jogue-o — daqui a 10 anos você estará me agradecendo.
Roadwarden
Total - 10
10
Com uma escrita maravilhosa e atraente, Roadwarden te transporta para outro mundo já no seu primeiro parágrafo. Explorar a península onde a história acontece, interagir com os habitantes, desvendar mistérios e sobreviver a emboscadas são experiências marcantes. Um RPG que não vem acompanhado de uma história grandiosa, mas que é grandioso por si só.