A primeira vez que eu escrevi sobre Rain World, poucos dias após o seu lançamento, eu o comparei brevemente com STALKER: Shadow of Chernobyl (2007), já que ambos compartilham o DNA de serem impiedosos com o jogador. Agora, quase seis anos depois, quando o título da Videocult recebe a sua primeira e provavelmente única expansão — Downpour (PC)— vejo o quão equivocado estava. Rain World não é impiedoso; ele só não dá a importância ao jogador que outros jogos tendem a dar. O mundo de Rain World existe apesar do jogador, não por causa dele.
Entrar na pele de um Slugcat é ser presa e “predador”, participar de um ecossistema vivo como até então nenhum outro jogo de plataforma / exploração conseguiu sequer chegar perto. Você precisa de comida, refúgio das chuvas — cujo ciclo muda de tempos em tempos — e lidar com inimigos com diferentes personalidades e graus de inteligência. Em um jogo onde o combate é desencorajado pela fragilidade do personagem (ao menos o personagem principal), é imperativo entender como você pode fazer com que outros animais que habitam as múltiplas regiões do jogo lutem entre si pelo território e deixem você em paz.
Não é à toa que a comunidade de Rain World é minúscula, mas dedicada a explorar e sofrer com o jogo e as dezenas de mistérios que o compõem — muitos deles sequer desvendados até hoje. Se visto sob essa lente, Downpour — que era para ser originalmente “apenas” um mod que aumentaria o tamanho do jogo com o “New Slugcats Mod” — não só o recheia ainda mais de mistério, mas também o faz ser mais “amigável” para iniciantes, graças a uma grande atualização gratuita para todos que possuem “Rain World”.
Quando digo amigável, falo de novos “tutoriais”, se é que posso chamá-los disso. Eles não passam de novas telas com dicas importantes sobre como o ecossistema de “Rain World” funciona, para você compreender melhor qual será o seu próximo passo, e tirar melhor proveito do ambiente. Soa como pouco, e definitivamente é, mas aplicar um sistema de tutorial similar a tantos outros jogos iria, inevitavelmente, acabar com a magia de “Rain World”.
Para quem realmente quer ajustar a dificuldade de “Rain World”, a Videocult adicionou um mod gratuito chamado “Remix” que permite alterar várias funções básicas em conjunto com uma série de novas opções de acessibilidade. Estas vão da remoção de ciclo de chuvas constantes até a possibilidade de remover lanças das paredes. Outra vez, o jogo não perde a identidade, mesmo quando essas alterações são ativadas. Você pode morrer menos, mas mais cedo ou mais tarde você irá padecer no mundo de “Rain World” e aprender como sobreviver em um local tão inóspito.
Até então tudo que eu citei aqui — com a exceção do “More Slugcats” — faz parte da atualização gratuita, que por si só dá mais do que motivos para alguém que não se acostumou com Rain World ou teve dificuldades em certas áreas dar mais uma chance a ele; mas são os novos slugcats de “Downpour” que elevam o jogo a um novo patamar de qualidade, trama e desafio.
Os novos slugcats são liberados apenas após concluir o jogo com o survivor e o hunter — ou liberados prematuramente se você usar um painel na área de mods, algo que eu absolutamente não recomendo, em virtude da dificuldade muito maior em comparação com o jogo base. Mas, assim que você consegue pegar o jeito das noções básicas de como sobreviver ao mundo de “Rain World”, jogar como os novos slugcats (Goudmand, Artificer, Rivulet, Spearmaster e Saint) é sublime.
O meu favorito até então é o gordinho Gourdmand: embora precise de mais comida para sobreviver, ele é capaz de “cozinhar” novos pratos, combinar itens, e ainda usar o seu peso em seu favor, transformando alguns inimigos em panqueca.
Outro com o qual eu estou lentamente me adaptando é o fantástico Artificer, que não só é imune a explosões como pode criar bombas para limpar uma área ou derrotar um predador. De longe o mais difícil de todos, até para os mais veteranos, já que a área em que ele começa está infestada dos predadores mais difíceis de “Rain World”, e a própria tentativa de sair dela é um desafio por si só. Morri, morri, e morri até cansar, mas não desisti.
E isso porque, afinal, o que não é um desafio em “Rain World”? Sobreviver é um desafio, explorar é um desafio, desvendar a trama agora ainda é mais difícil ainda. Reforço o que eu disse no meu texto original: “Rain World” jamais vai ser para todos. Embora isso possa ser um comentário um tanto generalizado quando se diz respeito ao mundo dos jogos, é pertinente reforçar para o título da Videocult.
Seja a versão “base” de “Rain World” ou a expansão “Downpour”, não espere um pote de ouro no fim do arco íris. Tampouco espere um tapinha nas costas por ter sobrevivido e passado de uma área onde muitos teriam desistido. Você só fez o que um animal na base da cadeia alimentar faria: sobreviveu.
Eu não vou entrar muito em detalhes sobre as novas áreas que você irá explorar com os personagens da expansão por motivos óbvios de spoiler, mas se você acha que “Rain World” era grande, “Downpour” o faz parecer minúsculo. Até mesmo áreas antigas — como o “tutorial” Outskirts — têm algumas mudanças visuais e pequenas adições que os mais afincos irão perceber. O mais impressionante de tudo é como todos os mapas, independente de serem do jogo base ou não, mantém uma estética coesa. E pensar que isso era para ser um mod gratuito. Outra razão para eu reforçar o que sempre falo: adicione suporte a mods para o seu jogo; você nunca sabe o que pode acontecer.
Alguns dias antes de começar a escrever este artigo, comentei com um amigo: “Será que Rain World seria criado da forma como ele é hoje em dia?”. Ambos concordamos que não. Apesar de não ser “retrô” ou algo do tipo, a intersecção de mecânicas e a complexidade não aparente que requer muito estudo e percepção do ambiente vai diretamente contra as diretrizes da maioria dos jogos independentes, salvo aqueles que vão para um viés quase experimental.
É uma relíquia de uma era “passada”, uma relíquia que agora tem a chance de ser descoberta por toda uma nova comunidade, assim como foi com “Dwarf Fortress” e seu recente “relançamento” no Steam.
“Rain World” é como assistir um dos múltiplos documentários de Werner Herzog, ao ponto de me lembrar o fantástico e sombrio “Lições da Escuridão”. Em certa parte do documentário, Herzog aponta para um lago e comenta sobre como sua reflexão é imponente. Mas não era um lago e sim uma gigantesca mancha de petróleo causada pela invasão do Kuwait em 1990. Por um lado, beleza, por outro lado, a marca da destruição causada pela ganância e impiedade humana dos dois lados do conflito.
Situações de felicidade em “Rain World” são momentâneas; a respiração de alívio ao encontrar um abrigo da chuva é saber que — cedo ou tarde — você terá que sair do seu casulo para enfrentar o mundo mais uma vez. Este passo sempre é doloroso; sair da zona de conforto é doloroso. Mas, se você não o fizer, você nunca vai descobrir o que está do outro lado daquela porta, quais áreas ainda estão esperando para serem descobertas, e quais mistérios serão desvendados.
Rain World já era um jogo maravilhoso; Downpour apenas o aperfeiçoou ainda mais. Sei muito bem que estou muito longe do fim da minha jornada, tanto no jogo base como com os novos slugcats (afinal, sequer testei o coop devido a necessidade de ser local, o único ponto que me deixa um pouco chateado), e ainda sinto que tenho muito que aprender em como navegar as novas áreas — isto é, considerando que eu encontrei todas as salas — da expansão.
Espero os portões abrirem, levanto-me do meu sono, pego meu equipamento, sei da minha fragilidade, mas sigo em frente. Em direção a um futuro brilhante? Não, não sei se isso é possível em Downpour, mas em direção a algo eu estou indo. Me preocupo com o que este “algo” é quando e se eu chegar lá.
Total
Total - 10
10
Impiedoso e maravilhoso como sempre, Rain World: Downpour expande e o que já era fantástico no jogo original. Uma expansão mais do que essencial para qualquer fã do game, e para quem já tem o jogo base, a nova atualização te dá um empurrãozinho para conseguir completá-lo. Sem dúvidas ainda uma das “experiências” únicas dos últimos 10 anos.