Um dos maiores erros que eu cometi antes de começar a jogar Rain World foi denomina-lo como um metroidvania. O jogo desenvolvido pela Videocult é muito mais do que isto. Ele está disponível no Steam e PlayStation 4 a partir de R$36,99.
Em sua essência, Rain World é um jogo de sobrevivência, mas não um onde é preciso constantemente equilibrar barras de fome ou sede para sobreviver. Ele subverte o conceito de um protagonista que em certo ponto vai se tornar forte e vencer todos os inimigos. Independentemente do local, você sempre será a presa. O descrevo mais como um simulador de ecossistema do que um jogo em si.
Ele é estabelecido em três pilares: Busque alimento, sobreviva à fauna e tente decifrar o que aconteceu naquele estranho mundo onde o simpático slugcat se perdeu de sua família. Sem entrar em spoilers, a história é contatada de maneira críptica e usa o ambiente como principal forma de reforçar a narrativa.
O maior problema em jogos cuja premissa é a “sobrevivência” está sedimentada no fato de que eles não necessariamente dão recompensas para o jogador por acharem que o fato de obterem comida já é o suficiente. Como Doc Brufford comenta em seu artigo para o Kotaku sobre S.T.A.L.K.E.R, sobrevivência não é apenas sobre obter itens como também a sensação de superação ao obtê-los.
Não existe um sistema de melhorias para o seu slugcat, você é, e sempre será, uma presa. Para vencer os obstáculos o jogador deve ser astuto e, da mesma maneira que um animal, ter paciência e compreender o ambiente ao seu redor.
Inimigos são uma presença constante no mundo de Rain World e, da mesma forma que o protagonista, podem agir de formas diferentes ao avistá-lo. Um lagarto da cor verde não consegue enxergar, portanto é guiado pelo som, enquanto um lagarto de cor rosa é capaz não só de enxergar como perceber os movimentos do slugcat pelo som. Nada dessas informações é passada diretamente para o jogador, mas sim, obtidas ao alongo de análise do meio ambiente.
Mesmo sem dizer uma palavra, os inimigos de Rain World exalam personalidade. Fique por alguns minutos em uma área do jogo e quando menos perceber lagartos lutarão por uma presa ou entre eles mesmos.
Este exemplo é apenas um de muitos que eu vi dentro de Rain World. Comparado com tantos RPGs que prometem personalidades para seus personagens, são lagartos e outros seres estranhos que conseguem demonstrar isto de uma das melhores maneiras possíveis.
Quanto mais o jogador avança para dentro do estranho mundo, mais escassa se torna a comida e mais perigoso se torna explorar. Não consigo descrever aqui todos os momentos que eu estava certo de obter comida em uma área quando do nada um Vulture — uma estranha ave que parece funcionar quase como um robô — sobrevoa a minha área e tenta me atacar. No desespero eu peguei as primeiras frutas que encontrei e corri o mais rápido para o shelter — algo como um save point — para escapar tanto dele quanto da chuva.
O nome do game pode até deixar claro, mas a chuva é um ponto crucial para a sobrevivência. Seu tempo no ambiente é limitado, é apenas possível explorar partes do jogo antes que o timer de chuva avise “Corra para o shelter mais próximo”. Tal mecânica, que pode fazer você torcer o nariz, é perfeitamente aplicada ao contexto da história. Você é uma presa, você corre perigo constante e a chuva não é a sua amiga.
A mecânica também apresenta um dos pequenos prontos fracos de Rain World, o constante backtracking. Não espere aprender como este mundo funciona com vinte ou trinta minutos de jogo. Foram mais de quatro horas até que entendesse o quão frágil eu era e como eu devia lidar com cada situação. Raramente o ataque é a melhor solução. Me esgueirava entre canos, usava atalhos — pequenos tubos espalhados pelo mapa — para despistar meus inimigos enquanto ia mais e mais a fundo naquele conjunto de estruturas quase industriais ou locais repletos de resíduos químicos.
Às vezes, para não dizer muitas, falhava e tinha de recomeçar parte de novo. Rain World usa um sistema de “ranking” baseado em ciclos. Quanto mais tempo você sobrevive ao hibernar — algo como um save point —, mais oportunidades você tem para abrir portas para áreas previamente inacessíveis.
Por mais que backtracking seja algo abominável, o sistema de ranking me agrada. Primeiro porque ele não é baseado em obter X ou Y itens, mas sim em preparar o jogador para os desafios futuros. Jogos tendem a compreender que a partir do momento que um item específico seja obtido, você está preparado para a próxima etapa. Rain World pega o conceito e fala “Olha, eu sei que você pode achar que está preparado, mas no fundo achamos que não está, fique um pouco por aqui, aproveite o cenário e tente tirar melhor proveito dele, aprenda como caçar e como se esquivar dos oponentes”.
Quanto mais avança nas áreas, mais difícil os desafios ficam, maior é a quantidade de inimigos na tela. A comida? Ainda mais escassa, você vai ter que ser astuto, se esconder, criar armadilhas e tentar despistar os oponentes para obter seu tão desejado alimento, hibernar e prosseguir.
Não importa o quanto avançou, o anseio permanece o mesmo. Eu me sentia acuado, preso à uma constante batalha entre receio de avançar e o desejo de conhecer mais. Como se o jogo me mostrasse uma porta quase impenetrável, mas estava ciente de que na hora certa iria saber como abri-la.
Rain World estabelece um imaginário cabo de guerra entre a sobrevivência e a exploração equilibrado de maneira tão singular que apenas jogos como S.T.A.LK.E.R e The Long Dark conseguiram atingir o mesmo patamar. É menos sobre desenvolver mecânicas para que o jogador se sinta obrigado a obter item X ou Y, mas como estas mecânicas se intercalam com a narrativa presente e evocam a sensação de conhecer mais sobre onde você está.
Se por um lado Hollow Knight, um dos meus jogos favoritos deste ano, te leva em uma grande aventura, Rain World promove a aventura pelo ato de se arriscar, de criar um elo entre o jogador e a criatura a qual ele controla. Não há como não sentir pena do slugcat, de querer ajuda-lo a chegar ao seu objetivo, seja lá ele qual for. Em uma era onde exposição constante a narrativa é algo tão arreigado na atualidade, um pouco de sutileza não faz mal a ninguém.
Rain World
Total - 9.5
9.5
Rain World é um daqueles jogos que ficam na sua memória. Não por objetivos, tampouco pela sobrevivência. Ele te prende pela ambientação, pelo desejo de conhecer mais. Você não vê apenas um jogo, mas um ecossistema florescer diante de seus olhos.