“Espero que a Obsidian volte a criar histórias dentro desse universo.”, essa foi uma das minhas últimas frases ao dar adeus para Pillars of Eternity com The White March Pt 2. Desde então meu desejo para voltar ao continente de Eora nunca esteve tão grande. Pillars of Eternity 2 (Steam / GOG) atendeu esse meu desejo mais do que eu imaginava.
A história começa pouco tempo após os acontecimentos do primeiro — com o deus Eothas tomando a forma do gigante de Adra que estava até então adormecido debaixo da sua fortaleza de Caed Nua e indo em direção ao arquipélago de Deadfire, localizado no sudeste de Eora, para um motivo desconhecido. Você, o Watcher – capaz de entender e conversar com almas neste estranho mundo – tem parte da sua alma roubada por Eothas. Agora, é preciso entender qual é a posição e a influência do Watcher no mundo.
Antes de começar a escrever essa análise, decidi recolher os papéis que havia deixado pela mesa ou espalhados pela casa com anotações de possíveis detalhes que poderiam passar despercebidos; notei que na realidade não havia escrito nada exatamente sobre o jogo, mas sim sobre as entidades que ali habitavam. Nome de deuses, locais, personagens, quem era quem, alianças. Pillars of Eternity 2 é denso, talvez até mesmo um pouco denso demais para seu próprio bem.
Torment: Tides of Numenera foi criticado pela densidade de texto que se tem a cada conversa; aqui eu critico Pillars of Eternity 2 pela quantidade de referências, agravada ainda mais pela carência de um sistema que as aglutine de maneira coesa. Volta o sistema de tooltips durante o diálogo — apresentado inicialmente em Tiranny — com referências para eventos ou personagens importantes do passado, mas a própria descrição das mesmas é tão longa que faz uma conversa — que já é densa — ficar ainda pior.
Gostaria que houvesse uma enciclopédia dentro do jogo que determinasse melhor a diversidade do seu povo. Tome por exemplo um deus como Eothas, que tem uma interpretação diferente no arquipélago de Deadfire sob outro nome: Gaum. Há uma constante trocas de nomes entre diversos personagens. Em cima dessa densidade ainda há os costumes locais, como frases e termos específicos que precisam ser explicados constantemente para que você não perca a noção do que está acontecendo. Essa densidade poderia ser um problema mais crítico se não fosse por um aspecto específico da trama: em Deadfire tudo é aberto a (muita) interpretação.
Deadfire em si é, sem sombra de dúvidas, uma ambientação de cara muito mais interessante do que Drywood. Vai embora o aspecto “Europeu” do primeiro Pillars of Eternity em favor de um clima tropical, casas coloniais e tribos indígenas com orgulho da região em que nasceram. Nada disso é exatamente novidade para o mundo dos RPGs (mesmo que eu concorde que, em parte, não foi tão bem utilizado quanto deveria ter sido nos últimos anos), mas o toque da Obsidian é que o torna mais especial.
O arquipélago, que passa por um processo de industrialização, tem traços paralelos com aspectos colonialistas; a dizimação dos habitantes originais, a marcha do avanço tecnológico interferindo na vida da população, e a questão de até que ponto isso é aceitável. A Obsidian trabalha a definição de “certo” ou “errado” mediante situações extremas de forma muito mais plausível do que a variedade que foi anteriormente oferecida em Pillars of Eternity. Eu estava acostumado a sempre ver algo como “olha só, esse é o vilão, e é ele quem você vai derrotar”. Afinal, essa é a premissa estabelecida pelo antecessor nas primeiras horas. Ao seguir um caminho benevolente em Pillars of Eternity 2 — típico da minha primeira run em um RPG — eu ainda duvidava se as minhas ações de fato tinham ocasionado um efeito positivo.
O baque mais forte veio quando eu cheguei em Neketaka, a principal cidade da região. Com o futuro da cidade em jogo, três grupos poderosos tentavam manter o domínio sobre ela — a Valian Trading Company, a Deadfire Trading Company, e os Huana. Desses, só os Huana eram de fato nativos da região, enquanto as duas companhias buscavam, ou lucro, ou avanço tecnológico. À medida em que fiz as quests para eles, seja para controlar o Adra — que são os elementos que formam os pilares para onde as almas vão após morrerem — ou expandir os territórios sobre o domínio de Deadfire, um grupo sempre ficou ausente da conversa: a população do Gullet.
O Gullet é um pequeno distrito de Neketaka tipicamente formado por pessoas de baixa classe, ignoradas pelos restantes, invisíveis ao público; um lugar marcado por fome e desamparo – elementos que não são desconhecidos em muitos RPGs, mas que me tocaram de uma forma singular, em parte por eu já ter sentido essa sensação de não-pertencimento e isso ser ainda algo que me afeta, mesmo que de maneira mais branda, até hoje. Tentei fazer com que a minha missão de “salvá-los” e dar a eles uma vida mais digna fosse prioridade. Sabendo agora do resultado, não sei se eu realmente os salvei, ou se tentava me salvar, me aproximar, ou me identificar com eles.
Deadfire também trabalha muito bem o aspecto de divindades e as suas constantes indecisões sobre o futuro do mundo. Berath, Galawain, Ondra, Wael, Woedica, entre outros; o impacto dos deuses na sequência é muito mais forte do que meras referências em textos. Eothas, de cara, é um exemplo disso, ao destruir Caed Nua, tomar a estátua de Adra para si e ainda crer ser o Deus da Luz. Que luz, então, é essa? A resposta — que prefiro não comentar aqui — é mais complexa do que parece. É nesse processo de aprendizado, nessa necessidade de autocrítica — originada tanto do jogador como das interações com as principais facções de Deadfire e a postura tomada perante um mundo que está em constante mudança e agora tem seus valores questionados — que eu vejo o quão competente é a história de Pillars of Eternity 2.
Se as minhas dúvidas sobre as minhas decisões permeavam a minha cabeça ao longo das 100 horas que joguei, ao menos tinha certeza de uma coisa: o combate de Pillars of Eternity 2, em sua grande parte, é extremamente superior ao original.
Optei em conhecer o sistema de multiclasse oferecido pela Obsidian para para a minha primeira run, com um misto de Ranger / Rogue. Meu pet (um leão) fazia o trabalho pesado de manter os inimigos a distância enquanto eu e outros membros da minha equipe alternávamos entre atacar e estabelecer uma zona de controle. Sei que é clichê falar isso, mas — da sua forma — o combate de Pillars of Eternity 2 é tão recompensador quanto o de Divinity 2: Original Sin, o meu ponto de referência para pensamento tático e uso de habilidades em RPGs. Deixo o “theorycrafting” de builds e min-max para os peritos, e aqueles que jogarão na dificuldade mais alta (Path of the Damned), mas raramente senti que eu não estava no controle, ou que a história me colocava em situações desbalanceadas.
O sistema traz a mesma raiz de jogos da Infinity Engine; ou seja, se você jogou Baldur’s Gate, Icewind Dale, dentre outros, não vai ter dificuldade de entender o sistema de combate em tempo real com pausa, ou RTWP (Real Time with Pause). As dicas de sempre valem aqui: foque-se nos casters primeiro, mantenha um tank, verifique quais são defesas do inimigo, etc.
A Obsidian entendeu que um encounter em um RPG com um sistema de RTWP não precisa ser claustrofóbico nem profundamente dependente de “trash mobs” (termo aqui usado para definir inimigos que são tão fáceis de serem eliminados que nem mereciam estar no combate). Esses Trash Mobs aparecem ocasionalmente; todavia, a presença deles é pontual e tipicamente tem algum propósito.
Dessa vez há espaço – tanto físico quanto mental – para táticas mais bem desenvolvidas, para saber pontuar quando e como usar aquela magia que você tanto queria usar sem a preocupação de ter de descansar para utilizá-la novamente. Parte disso vem do sistema de Empower. Essa habilidade que pode ser utilizada durante a batalha dá aos personagens maior eficácia de magias, ou restaura a possibilidade de usar habilidades “per rest” (que só são reativáveis após descansar). Por exemplo, aplicar o Empower em um Wizard que não tenha gastado nenhuma magia duplicará a quantidade de projéteis de um Magic Missile – assim elevando a chance de acerto ou a penetração que ele causa no inimigo. Outras magias podem ter a sua duração elevada, ou terem um aumento de área.
O maior triunfo da Obsidian, no entanto, é entender que nem todo mundo tem a bagagem necessária para aprender a minuciosidade das mecânicas em uma ou duas horas. Assim como a sua estadia em Deadfire, a ameaça e a complexidade é aumentada gradativamente; primeiro você está lutando contra seres aquáticos, aprendendo como a sua classe funciona, qual a percentagem de penetração do seu armamento e como se posicionar em combate. Só na quinta ou sexta hora de jogo que começam a aparecer oponentes com maiores defesas, resistências específicas (ataques de destreza, mente, etc). Junto a isso a Obsidian adiciona (finalmente) um log de combate competente — com detalhes que podem ser acessados com o Shift e que não forçam o jogador a quebrar a cabeça para entender o que no fundo é algo relativamente simples.
Simplicidade não vem apenas em questão de compreensão, mas de controle, aqui vista pelo fantástico sistema de personalização de ações da IA — que era consideravelmente limitado no seu antecessor. Aplicando um sistema como os dos Gambits de Final Fantasy XII, todas as ações da IA podem ser personalizadas para serem usadas em pontos específicos do combate. E, acredite, o sistema é complexo e demorado para ser ajustado; as opções vão do simples uso de uma poção de cura até a percentagem de vida que um outro personagem da sua party deve estar para que uma magia de cura seja ativada. Recomendo, porém, que o faça especialmente em dificuldades mais altas pois as configurações padrões oferecidas pela Obsidian (agressivo ou cauteloso) são situadas em extremos: ou o personagem gasta todas as magias de cura nos primeiros minutos do combate, ou ele só vai usar na pior das situações – isso se um inimigo não interromper o cast, entre tantas outras variáveis.
Mas, quando tudo se encaixa perfeitamente e você vê todas as magias serem ativadas, todos os golpes saindo na hora certa, chega a dar até um orgulho da sua perspicácia. Ao menos foi assim que eu me senti, com aquele sorriso bobo ao ver uma tática que imaginei horas atrás de fato sendo eficaz. Para quem prefere maior controle, a opção de IA pode ser desativada completamente.
Queria me rasgar de elogios para o combate naval da mesma forma que eu faço com o terrestre, mas infelizmente esse não é o caso. Um dos pontos mais enumerados pela Obsidian era justamente a questão de se ter o seu próprio barco, explorar um continente e enfrentar outros barcos. Em questão de exploração eu não nego que foi um dos motivadores para fazer as quests secundárias — que estenderam a minha campanha por mais umas 50 ou 60 horas no mínimo — mas toda vez que eu tinha que entrar em um combate de barco…. Urgh, prefiro nem pensar nisso.
Combate naval é um tema que sempre é complicado de fazer “correto”. Empresas que são capazes de tal (raro) feito, alocam quase todos os seus recursos nele, pois entrar em combate no mar é vastamente diferente do que em terra. Em terra Pillars of Eternity 2 trabalha com modificadores, resistências, magias e tantas outras variáveis. No mar? Bem, ou você avança e ataca o inimigo, ou você dispara os canhões. O vento pode acelerar ou desacelerar a embarcação oponente, os canhões têm uma distância preferível e há uma checagem de proficiência de cada membro da embarcação munindo os canhões para definir se eles irão acertar ou não ou alvo. Nada mais.
Muitas tarefas (quests que giram em torno da eliminação de uma embarcação ou pirata específico) são dependentes desse combate marítimo, que rapidamente se torna monótono. Cada combate era uma questão de atira, avança, recua, atira, avança. Nada de uma interferência do mar, das ondas ou do ato de falhar ter consequências mais impactantes. Não tarda para que ele fique estéril, desinteressante. Para evitar isso eu optei sempre por atacar a embarcação inimiga e invadi-la. Afinal, ao menos eu teria a oportunidade de voltar para o combate em terra.
Teimoso — como muitos sabem que eu sou — eu não me dei por vencido só por conta de uns….20 combates marítimos. Tratei de melhorar a minha equipe, aumentar a moral da tripulação, comprar novos equipamentos para ver se as coisas melhoravam. Nada, mas ao menos a navegação e a exploração trouxeram frutos com eventos tanto com meus tripulantes quanto com meus companheiros.
E o que falar dos companheiros da minha party, além de dizer que são excelentes? Confesso já ter um afeto especial pelo tradicionalismo de Edér ou o sarcasmo e a determinação de Aloth; ver as histórias deles expandidas, com mais nuances, e aprender mais sobre as motivações por trás das decisões que tomaram tanto em Pillars of Eternity como em Pillars of Eternity 2 trouxe um imenso sorriso à minha cara. Isso sem contar Xoti, uma seguidora de Eothas que tem a sua fé testada ao ver o Deus — que deveria ser algo do “bem” – destruir Deadfire.
Em muitos momentos eu me questionei “será que Pillars of Eternity 2 é tudo isso que eu estou imaginando?”. É difícil dizer que não; ainda há problemas no loading e no desempenho como no seu antecessor, mesmo que dessa vez menos irritantes. Às vezes é denso demais, como comentei. Mas ele cria algo em mim que tendo a reservar para os RPGs que mais me tocam emocionalmente: a capacidade de sentar e jogar por horas sem me sentir cansado. Não para grind, muito menos “jogar por jogar”. Queria saber mais da história, me envolver com os personagens e querer sentir na pele quais eram as suas necessidades, medos, vontades, prazeres.
Grandioso em sua execução e escopo, mas também ciente de que é preciso espaço para introspecção, Pillars of Eternity 2 questiona a sua, a minha posição no mundo de Eora — e algumas vezes até em nosso próprio mundo. Me lembra que a benevolência nem sempre traz resultados positivos, e que ser cruel também não é a melhor resposta. Num mundo em que Deuses não estão imune a erros, e onde o que dizem ou planejam não deve ser levado ao pé da letra; tudo é uma questão de equilíbrio, capacidade de autocrítica, e empatia.
Pillars of Eternity 2: Deadfire
Total - 9
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Deixando um pouco para trás o legado de seu antecessor, Pillars of Eternity 2 é mais maduro, mais consciente da necessidade de gerar empatia e autocrítica, e mais refinado. Não é um ressurgimento de “Baldur’s Gate” ou algo assim; é um jogo da Obsidian, com a sua marca e a sua cara acima de tudo.