Muitos conhecem a NIS por “Disgaea”, de longe a franquia mais famosa e de mais sucesso da desenvolvedora japonesa. Com mais de 7 jogos, ela é – e deve continuar a ser – o carro chefe da empresa por anos. Mas isso nem sempre foi o caso. A desenvolvedora tentou reinventar o gênero de SRPGs nos anos 2000 com dezenas de fórmulas, uma delas sendo “Phantom Brave” que, após quase 20 anos, recebe agora uma sequência: “Phantom Brave: The Lost Hero” (PlayStation 4/5 / Nintendo Switch / Steam). Por que a demora entre jogos? Não tenho a menor ideia, mas eu não esperava ficar tão investido nele.
No tradicional “Se você conhece a trama de um jogo da NISA, você conhece todas”, a história é quase que um elemento secundário em “Phantom Brave: The Lost Hero”. Você assume o papel de Marona – uma garota capaz de se comunicar e invocar fantasmas – e seu até então parceiro Ash. Não tarda para que uma frota de navios fantasmas surja, Ash “se sacrifique” para que Marona escape, e ela prometa trazê-lo de volta e descobrir quem está por trás da frota de navios. Marona junta forças com Apricot – a descendente de um famoso pirata que já batalhou contra a frota fantasma e agora quer consertar a reputação do pai.
O que se segue nas próximas 30 ou mais horas de jogo – dependendo do seu estilo – é uma história leve com as típicas reviravoltas que você imagina. O vilão não aparenta ser quem ele é, você é arrastado para lá e para cá para resolver o problema dos outros até que eles se tornem seus aliados e você obtenha mais tripulantes / itens / níveis.
Eu não vou julgar você caso decida pular mais da metade das cinemáticas. Eu considerei dezenas de vezes fazer o mesmo, de tão irritante que são alguns personagens. Apricot, em específico, abraça tanto o estereótipo de “garota medrosa que fica desesperada por qualquer coisa” que dá nos nervos. Felizmente, as cenas são menos prevalentes do que em jogos como “Disgaea”, e não demorava muito para que eu voltasse ao que realmente importava para mim em “Phantom Brave: The Lost Hero”: a sua jogabilidade e os seus sistemas completamente insanos.
A maior similaridade com outros SRPGs é que as batalhas de “Phantom Brave: The Lost Hero” se passam em uma em mapas relativamente pequenos. O game deixa para trás a movimentação em grids / hexágonos em favor de uma movimentação livre, a maior parte dos atributos dos personagens são vinculados às armas que eles utilizam, e as classes são só a superfície do que eu posso descrever apenas como um dos sistemas mais elegantes e confusos de evolução e posicionamento no mapa.
Com a exceção de Marona, todos os outros personagens que você controla são fantasmas. Ao invés de invocá-los como tropas tradicionais no mapa, você os atribui a um “corpo” de acordo com o que estiver pelo mapa, e isso gera buffs ou debuffs.
Se você selecionar uma pedra que está no cenário e invocar um lutador, este lutador terá um maior nível de resistência para ataques físicos. Estrelas do mar dão buffs de magia para bruxas ou healers. Outros objetos podem gerar reações em cadeia e distribuir bônus de experiência, ataque, ou dezenas de modificadores em uma única batalha.
A NISA não te ajuda muito a compreender o sistema. Pelo contrário, ela espera que você teste e explore por si só, com tutoriais vagos no início de cada batalha para explicar conceitos gerais. Só faltou me dar um tapinha nas costas e falar “boa sorte”.
“Como assim eu posso pegar uma palmeira e ganhar bônus de dano de fogo e ao mesmo tempo usar a palmeira como uma arma?”. Tudo é uma arma em “Phantom Brave: The Lost Hero”: palmeiras, estrelas do mar, peixes, até mesmo flores. Esse é o tipo de sistema que você vai encontrar em “Phantom Brave: The Lost Hero”, e isso é só o começo.
O sistema de melhorias de armas nas primeiras 15 horas não é estritamente linear. Você não acaba uma batalha e um menu aparece com os espólios e novos equipamentos. Algumas espadas são drops raros de inimigos e obtê-las requer que você invoque um fantasma nela para uma chance de obtê-la, ou se utilize da classe “mercadora” para pegá-la do chão e levá-la para sua ilha. Só assim você pode comprá-la após completar a missão. Isso é, se você vencer.
Quanto mais eu jogava “Phantom Brave: The Lost Hero”, mais absurdo ele ficava. A ausência de um grid significava que eu podia, por exemplo, jogar espadas ou personagens pelo mapa para derrotar um inimigo em específico. A própria Marona tem uma habilidade especial que instantaneamente “lança” uma das suas tropas – uma ótima ferramenta para reposicionar um mago e usar uma habilidade devastadora.
Ainda está comigo, não fechou esse artigo? Então calma lá que a coisa complica ainda mais ainda. Cada fantasma só pode ficar um tempo específico de turnos no mapa. Ou seja, otimizar rotas, entender como agrupar inimigos ou jogá-los para fora do mapa são elementos essenciais para avançar nas missões mais complexas, ainda mais considerando que Marona tem um limite de “invocações” por mapa – e olha que o jogo é bem generoso com a quantidade de unidades.
Tentar listar toda a complexidade e variações de “Phantom Brave: The Lost Hero” em um único artigo seria exaustivo. Há armas que elevam múltiplos atributos, um sistema de exploração de dungeons secundárias, veículos de batalha, um sistema de “pesca” para obter itens raros, fusão de itens. É um poço sem fundo, e eu caí nele fácil.
Acabava uma missão, repetia ela para obter um item específico, passava horas em menus tentando atribuir o melhor equipamento para cada personagem, investia horas em descobrir a melhor composição de classes – de um total de 51 – para explorar dungeons geradas proceduralmente.
Se não está confuso o suficiente, então toma essa: até os atributos principais das classes, como destreza, força e vitalidade, são severamente impactados por cada equipamento usado. Um lutador pode se especializar em magias caso você invista tempo suficiente nele e no uso de bastões mágicos. Classes são um arquétipo base e uma ligeira “sugestão”. “Phantom Brave: The Lost Hero” realmente quer que você faça dele o jogo que você quiser.
O que mais impressiona em toda essa intersecção entre elementos e mecânicas é que “Phantom Brave: The Lost Hero” tende a utilizá-las sem que o jogo vire uma completa zona. A IA oponente é tão versátil quanto a sua e pode, muito bem, te pegar desprevenido com um ataque que joga metade da sua tropa para fora do mapa e as elimina instantaneamente, ou trocar de equipamento no meio da batalha para remover um debuff que você aplicou.
Mas, como disse antes, o tutorial vago e relativamente “limitado” — completamente ineficaz para ensinar, ou mesmo mostrar toda a profundidade e complexidade do sistema — tem uma grande chance de criar um efeito contrário em que usar as mesmas táticas, por mais banais que sejam, te carreguem até o final do jogo. “Phantom Brave: The Lost Hero” é ao mesmo tempo maleável e rígido. Ele quer muito que você explore todos os sistemas, mas se você preferir bater de cara no muro continuamente, ter uma tropa pequena, mas extremamente especializada e passar umas boas horas fazendo grind, é provável que você complete o jogo sem muitos problemas.
Essa é outra correção gigantesca que a NIS faz após críticas e mais críticas de quão longos eram os tutoriais de “Disgaea”. E, eu concordo quando o assunto é o carro-chefe da desenvolvedora, mas “Phantom Brave: The Lost Hero” precisava ter ao menos um glossário mais recheado de informações, ou áreas para “testar” habilidades.
Eu mesmo quase fui vítima nos primeiros dois capítulos devido a uma habilidade de Marona que faz com que ela crie uma fusão com Apricot e aumente consideravelmente a chance de ter mais de um turno por rodada. Essa habilidade me carregou por dezenas de mapas – primários e secundários – e só parei de usá-la porque me dei conta que estava ficando um pouco entediado de jogar os mesmos mapas com as mesmas táticas. E isso é só uma nota de rodapé na lista dos problemas mais “graves” , por assim dizer, de “Phantom Brave: The Lost Hero”.
Eu sempre vou exaltar o absurdo grau de personalização e variedade de habilidades, mas no tradicional estilo da NIS, os maiores desafios — aqueles que te fazem pensar e repensar uma tática dezenas de vezes — começam a surgir bem perto do final do jogo. Há um certo receio da desenvolvedora de utilizar condições especiais, como unidades com mais proteção, ou colocá-lo em severa desvantagem, um ponto que assombra os jogos da NIS desde a era “Disgaea 4”. Eu aceitaria até mapas com limite de tempo – e olha que eu não sou nem um pouco fã desse estilo de limitação – tudo para tirar o jogador da zona de conforto e interagir mais com os sistemas.
Mas o que destrói um pouco da magia do jogo são alguns bugs que variam de insignificantes a severos. O sistema de movimentação livre gera oportunidades maravilhosas, mas também vi situações em que a IA não conseguiu pular uma cerca. Já em outra missão, eu mesmo tentei saltar de um cogumelo e acabei fora do mapa e travando o jogo.
Algumas melhorias no sistema de controle e seleção de itens também seriam muito bem-vindos; incontáveis vezes perdi a oportunidade de pegar uma espada especial pois ela estava próxima de um inimigo e, por algum motivo desconhecido, eu não conseguia selecioná-la. Nada que uma dose extra de grind não resolvesse, mas poderia ter vivido sem ter que repetir a missão mais três vezes.
Apesar dos “pesares”, “Phantom Brave: The Lost Hero” merece reverência simplesmente por existir. Muitos desconhecem a era de “ouro” da NIS, onde ela tentou até criar jogos com combinações de tropas, como é o caso de “Soul Nomad” — e o novo título da desenvolvedora resgata essa era sem apelar para a nostalgia. É um ponto fora da curva no cenário dos SRPGs de hoje em dia, tão fissurados em homenagear “Final Fantasy Tactics” ou tentar emular “Fire Emblem”.
A minha crítica para por aqui, mas o meu grind em “Phantom Brave: The Lost Hero”? Ah, meus caros, esse vai longe, bem longe. Eu não sei quando eu vou parar, mas uma coisa é certa: que este seja um primeiro passo para a NIS revisitar o seu catálogo antigo e voltar a trazer RPGs singulares ao invés de mais um novo Disgaea.
Phantom Brave: The Lost Hero
Total - 9
9
“Phantom Brave: The Lost Hero” e a sua dezena de sistemas e mecânicas é assustador de início, e a carência de tutoriais mais elaborados prejudica o aprendizado. Mas, se você quer um RPG fora do comum e com uma história leve e horas, e mais horas, e mais horas de grind e combinações insanas, ele vai ser perfeito para você. Afinal, me diga, em que outro jogo você pode derrotar um chefão com um peixe?