Um dos motivos pelo qual eu me interesso tanto por jogos de estratégia é ver as diferentes abordagens que uma desenvolvedora tem dentro desse gênero. Em 2019 tivemos o interessantíssimo John Wick Hex – que ajudou a demonstrar para a comunidade que sistema de turnos simultâneos pode ser popular se adaptados para algo mais casual. Narcos: Rise of the Cartels (Steam) e sua camada tática que tenta criar algo diferente dos turnos tradicionais, mas vai no sentido oposto no pior dos sentidos.
Antes de mais nada, esqueça tudo que você tenha visto sobre a série da Netflix. A ligação entre Rise of the Cartels e a série não poderia ser mais rasa. Os personagens principais estão presentes (apesar de não serem dublados pelos atores), mas a influência deles se limita ao combate.
Combate está no coração de Rise of the Cartels. Ele até tenta criar uma camada estratégica, mas ela não vai além de missões lineares e um sistema de progressão tradicional. Acontece que, quando um jogo se escora no combate, é bom que a desenvolvedora acerte a mão de um jeito incrível – não é o caso da Kuju.
A Kuju utiliza um sistema de turnos que descrevo, nas melhores das intenções, como algo confuso e desnecessário. Ao invés dos turnos serem separados por equipe — onde cada lado pode mover as unidades de acordo com o que o jogador almeja — como é o tradicional, Rise of the Cartels decide que cada lado tem a chance de movimentar ou atacar com apenas uma unidade. É um conceito interessante, mas que causa um efeito cascata devido a inúmeros fatores que nem sempre estão ligados ao ato de disparar contra um inimigo.
Ao colocar ênfase em uma unidade ao invés de um grupo, Rise of the Cartels perde a sensação de que você está tomando território do inimigo, mas sim que a unidade que você controla é o componente mais importante da sua equipe. Isso é uma falha grotesca; uma decisão dessas não “aprofunda” a complexidade do jogo, mas sim coloca um peso desnecessário em uma unidade que em outros jogos seria nada mais do que um componente que pode ser utilizado para criar uma zona de controle.
Em momento algum eu senti que eu estava em uma zona de conflito, mas em um elaborado tabuleiro de xadrez que jogava pelas suas próprias regras e ele mesmo falhava em entendê-las. Para contraste, Rise of the Cartels cai no mesmo erro que o primeiro XCOM da Firaxis caiu e foi tão criticado pela comunidade. Assim que você possuía um franco-atirador na sua equipe, XCOM se tornava muito mais fácil graças à habilidade Squad Sight – que permite que todos os seus soldados disparem contra um alien independentemente da distância.
Rise of the Cartels não estabelece essa vantagem para o jogador dado que você não pode controlar todas as unidades em um único turno. Devido a isso ele inadvertidamente propõe a seguinte questão: qual o motivo de você usar uma unidade “fraca” – como um soldado munido de uma pistola – se você pode usar um soldado com lança granadas que não só tem mais pontos de vida, como uma chance maior de acertar e matar os oponentes?
O uso de unidades de suma importância para completar uma partida não é um sistema ruim em si, mas é agravado pela implementação do que a Kuju chama de “Reaction shots”. Quanto mais tempo a unidade ficar posicionada em um local, mais chances ela tem de entrar em modo overwatch, habilidade que faz com que o soldado dispare contra um inimigo caso entre no seu campo de visão. Ou seja, você pode ter uma oportunidade maior de eliminar o inimigo se você não se movimentar.
Overwatch e sistema similares providos da popularização de XCOM são uma das mais decepcionantes tendências nos jogos de estratégia. Mas no caso de Rise of the Cartels isso fica pior ainda por não existir nenhum tipo de “cooldown”. Que incentivo eu tenho de avançar com mais de uma unidade, sendo que eu só posso mover uma por turno, se eu sei que elas vão receber dano que podem ser fatais. Isso não é uma decisão que me faz tomar riscos, é uma que me deixa acuado em um canto na expectativa de que um deslize dos oponentes abra uma oportunidade de ataque.
Obviamente quem faz mais uso dessa mecânica são seus oponentes, seja durante a campanha do DEA ou dos narcotraficantes. Eles ficam encurralados em um canto e esperam você chegar como um boi chega para o abate. Irritante e frustrante na falta de palavras mais amenas.
Acredito, todavia, que isso nem sempre foi o foco de Rise of the Cartels. Em algum ponto desenvolvimento a Kuju aparenta ter tentado um lado mais furtivo, mas calhou para a violência. Afinal, violência vende, certo? Missões que envolviam, por exemplo, a obtenção de documentos específicos, ou a identificação de um líder do narcotráfico eram situações perfeitas para implementar algum estilo de ações furtivas. Mas no fim das contas o único resultado que podia ser obtido era a de matança desenfreada. Quer obter todos os documentos? Mate todos no mapa! Quer identificar um narcotraficante? É melhor que sua equipe seja composta de veteranos que possam disparar à longa distância.
Nessas horas eu queria que Rise of the Cartels tivesse usado uma abordagem parecida com a do fantástico Phantom Doctrine. Separar uma parte da missão para o reconhecimento e quando fosse a hora certa, partir para a ação. Mas, novamente, ser furtivo não vende – ao menos não na cabeça das empresas que publicam tie-ins de séries da Netflix.
Acabo com um jogo em mãos com elementos que não criam harmonia entre si e seriam muito mais efetivos em um contexto diferente. A evolução de cada unidade e suas diferentes habilidades serviriam muito bem se o bizarro sistema de turnos usado pela Kuju fosse abolido. Um jogo que desse mais espaço para táticas e menos atrito. Um que entendesse que a funcionalidade de cada classe deve ter a sua importância dentro do campo de batalha, e não fazer com que as mais fracas atuem como parasitas e as mais fortes as carreguem ao longo da campanha.
Rise of the Cartels não é nada mais do que uma fraca tentativa de aproveitar o sucesso de uma série para criar um jogo de estratégia em turnos. Mas há tantos problemas e defeitos nele que eu não consigo imaginar alguém tendo um pingo de diversão ou apreciando as decisões de design dentro do contexto do jogo.
Minha recomendação se limita apenas àqueles que tem um interesse imenso para ver como uma simples mecânica (turnos) e a diferente priorização de elementos dentro de um mapa podem arruinar um jogo. Levando em conta que 2019 teve jogos impressionantes no campo de estratégia, o melhor é deixar esse passar.
Narcos: Rise of the Cartels
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Rise of the Cartels dá um excelentíssimo exemplo de como decisões simples – como priorizar uma unidade ao invés da equipe – pode prejudicar a camada tática de um jogo de estratégia em turnos. Ele tinha o material para ser um jogo fantástico, mas acaba se tornando algo mediano e muitas vezes irritante.