Dentre as milhares de horas gastas em jogos online ao longo da vida — das runs em World of Warcraft aos momentos de irritação em MOBAs — algumas das minhas melhores lembranças permaneceram com The Ship. O superficialmente simples, mas sistemático e emergente jogo online lançado nos primórdios do Steam (estranho escrever isso hoje em dia) exalava um grau de autenticidade pouco visto até hoje. Murderous Pursuits (Steam), da Blazing Griffing, chega com grandes expectativas; expectativas com as quais ele não estava preparado para lidar.
O conceito tanto de The Ship como de Murderous Pursuits é simples ao ponto de poder ser explicado em menos de um parágrafo: Mate o seu alvo com uma das armas no mapa e sem ser visto. A sua pontuação vai variar de acordo com o mapa e arma utilizada. O que me impressionou, e me impressiona até hoje, é a sua execução. The Ship dava um enorme espaço para experimentação. Você estava lá em um barco com outros jogadores e NPCs, sem saber quem era o seu alvo. Você tinha necessidades como ir ao banheiro, se alimentar, comprar comida, etc. À medida em que você pegava o jeito, você começava a se habituar a se passar por um “NPC”. Fazia as coisas que outros NPCs faziam, tentava se infiltrar na multidão e esperava pela oportunidade perfeita. A necessidade de ir no banheiro poderia resultar em uma armadilha colocada em um dos banheiros pelo inimigo, ou ficar rodeando como um abutre o restaurante do navio preveniria alguém de se alimentar. Era longo, metódico, perfeito para quem gosta de altíssimas doses de planejamento.
Dá para se traçar muitas similaridades do também então “jogo de gato e rato” Spy Party, onde um jogador deve completar objetivos como um espião enquanto o outro — no papel do assassino — precisa identificá-lo em meio à multidão. O que ambos os jogos possuem de especial é a necessidade de enxergar e entender o ambiente. Oportunidades surgem naturalmente, mas dependem de noções de timing, espaço, e até mesmo de como replicar da forma mais fiel possível o maneirismo de NPCs. Em suma, se passar pela IA sem perder o lado humano.
Em contraste, Murderous Pursuits parece ter esquecido tudo o que foi construído com The Ship ou o que pode ser aprendido com Spy Party. Ele deixa o teste de paciência de suas fontes de inspiração em favor de partidas rápidas, foco em usar habilidades, e cenários onde o jogador “precisa se curvar” para o cenário em si. Espaços que eram antes livres para ser alterados pela ação do jogador — como tornar um salão de música em uma zona de guerra ao entrar em conflito com outros personagens — agora têm zonas específicas para que o jogador “se esconda” de seu caçador. Habilidades permitem que você descubra quem é exatamente o seu alvo, qual a sua posição no mapa, ou ainda se disfarçar constantemente de outro personagem para despistá-lo.
É como se a Blazing Griffin tivesse pouca confiança no que os jogadores podem extrair de situações onde eles possuem maior controle. Murderous Pursuits olha para mim e fala “Olha, nós vamos diminuir a barreira de entrada, mas vamos tentar manter tudo tão variado quanto, ok?”. Sou sempre a favor da diminuição de complexidade em muitos tipos de jogos, mas algo foi perdido no processo.
Esperava escrever um texto contando alguma maneira engraçada que despistei o meu oponente, ou a insanidade que foi correr atrás do meu alvo. Queria uma dinâmica entre as partidas, um jogo de gato e rato mais fluido, ainda mais considerando que os problemas de carregamento tanto em The Ship como The Ship Remastered eram coisa do passado. Só queria um pouco de emoção. Contudo, só fui agraciado com a sensação de que eu fazia a mesma ação em temáticas diferentes.
Na medida em que jogava comecei a perceber o quanto eu era dependente da interface ao invés do cenário. Quer saber onde se esconder? Procure as áreas tracejadas no chão, facilmente identificáveis.Ficar nelas é a maneira mais rápida e prática de se passar por um NPC. Isso cria uma expectativa em mim de que, possivelmente, o meu alvo está em uma dessas áreas. Das dezenas de partidas multiplayer que eu joguei, cinco em dez dessas opções se tornavam verdade.
Afinal, não há motivos para que eu ou meu alvo saiam dessa zona de conforto. Andar fora das áreas marcadas aumenta consideravelmente a chance de você ser exposto — e ficar permanentemente marcado no mapa de seu caçador até ser eliminado ou mudar o disfarce caso tenha essa habilidade equipada — e reduz a sua pontuação. Por algum motivo bizarro Murderous Pursuits vai justamente contra o que The Ship tanto promovia: experimentação.
As habilidades são outro empecilho para o surgimento de oportunidades. Ao invés de Murderous Pursuits oferecer algo que interaja com o ambiente, as habilidades tendem a seguir um padrão de interferência ou ação com o alvo. Um exemplo é a habilidade de caçoar do alvo eliminado para ganhar pontos adicionais; infelizmente tal ação se autossabota, pois o tempo que essa habilidade fica ativa e te deixa vulnerável não compensa em relação a outras ações, como usar armas que dão mais pontuação.
Cheguei em um ponto que eu não gosto de revelar: jogar Murderous Pursuits ficou entediante. O resultado era o mesmo independentemente do meio. As mecânicas não condizem com a minha expectativa, o ato de seguir e encontrar o seu alvo é repetitivo, e as habilidades não dão a variedade que em algum momento eu imaginei que teria.
A gota d’água veio quando notei que, no fundo, tanto eu como outros que estavam na mesma partida nos comportamos como NPCs, não em celebração do que o jogo havia prometido, mas porque não havia nada mais o que fazer. Era a minha décima partida seguida, e após sentar e refletir sobre elas, nada vinha à memória. Aperta botão, aperta botão, elimina, foge.
Não era um sucessor espiritual de The Ship; diria até que o ritmo me remetia à dinâmica de um board game como ‘10 to Kill (desenvolvido por Benoit Bannier, onde até quatro jogadores têm dez minutos para eliminar três alvos), mas sem levar em consideração o meio que ele usa para criar expectativas, tensão, ou qualquer traço de emoção.
Quando eu olho para The Ship, vejo sua influência em tantos outros games. Dead by Daylight mostra que um jogo assimétrico de 4vs1 funciona quando se remove o papel de classes e a atenção se volta para qual o estilo de jogo de cada um (uma das imensas falhas de Evolve, aliás); o ainda em desenvolvimento Hunt: Showdown pareia duplas de jogadores com um único objetivo em comum (eliminar um monstro), dá a eles equipamentos relativamente similares, mas a rota que eles farão até o alvo não apenas vai ser diferente, como a maneira como eles planejam escapar do mapa para serem vitoriosos depende da conexão entre eles e o conhecimento periférico dos seus alvos. Ambos os exemplos se fortalecem justamente da interação humana que acontece dentro das partidas — elemento que deveria vir sempre em primeiro lugar, mais do que competividade, ser um eSport ou tornar uma partida “equilibrada”.
Independente do meio ou estilo, a mesma sensação aparece nesses jogos: uma imensa tapeçaria que lentamente se desenrola na minha frente, permitindo que eu faça as escolhas que julgar necessário para a situação levando em conta o ambiente (mais do que a média em outros jogos online) e a minha própria habilidade de despistar um alvo. São esses os tipos de memórias que eu gosto de carregar comigo quando termino uma partida multiplayer, ainda mais quando se trata de um jogo como The Ship.
Murderous Pursuits carece dessa tapeçaria, carece de entender a relevância que o ambiente de The Ship tinha para o desenrolar da partida, carece de entender que habilidades situacionais não são capazes de substituir a capacidade de nós mesmos criarmos e concretizarmos soluções com ferramentas mais abrangentes. Ele não captura a essência de The Ship; pelo contrário, a reduz a uma série de decisões inconsequentes e uma constante dependência da interface para criar o mínimo de interação.
Murderous Pursuits
Total - 6
6
Uma tentativa de revitalizar The Ship sai pela culatra por causa da remoção de elementos como a maior presença de interação entre jogadores em favor de uma dependência constante da interface, ao invés de fazer com que as opções criem a sua própria narrativa. Belo, porém, repetitivo demais.