Por mais que não possa parecer, eu assisto e leio bastante histórias de terror. Ao longo dos anos notei que as minhas preferidas tendem a ter um aspecto sobrenatural. Não me deem explicações, deixem o final em aberto, deixem eu quebrar a cabeça para interpretar o que eu bem entender. Mundaun (Steam / Xbox / PlayStation 4/5 ) não dá brecha para isso. Era para eu ter detestado, mas tal decisão acaba sendo um dos seus pontos mais interessantes.
O game desenvolvido pela Hidden Fields sequer deixa você completar a frase “mas que introdução interessante” antes de preparar o palco para a sua história. No papel de Curdin, você viaja para o vilarejo de Mundaun após receber uma carta peculiar de Jeremias – o padre da região e amigo de longa data do seu avô. “Ele morreu, não precisa se preocupar”. Algo na carta soa estranho e não é à toa. Basta botar os pés na cidade e visitar o antigo celeiro do seu avô para encontrar um ser na forma de um homem idoso que te “cumprimenta” queimando a sua mão. Seu avô está carbonizado no celeiro e sua sepultura está vazia. Tudo isto acontece mais ou menos nos primeiros 30 minutos de jogo.
Onde outros jogos teriam tropeçado ao decidir seguir com uma trama tão “direta”, a Hidden Fields faz isso para que ela consiga trabalhar um dos meus aspectos favoritos de Mundaun: a sua ambientação.
Entre o tom “sépia” e a estética de ser um jogo literalmente desenhado a mão (a maioria das texturas foram feitas em papel e depois importadas para o PC), eu me sentia entre dois mundos; ora em um mundo real de um singelo vilarejo na Suíça, ora no mundo imaginário de uma pintura.
Ainda que eu tenha visto tal estética tentar ser replicada em múltiplos jogos, o uso dela pela Hidden Fields é fascinante pelo fato de que ela consegue transformar até as mais simples ações em algo desconcertante. Mundaun não se prende demais ao “fantasioso”; uma boa xícara de café aumenta seus “pontos de vida”, mas o processo de fazê-la — pegar a lenha para o fogão, botar água no pote e pegar o pó — me dava uma sensação de desconforto que eu não conseguia tirar da minha cabeça.
Isto se estende para vários detalhes ao longo da história; a maneira que a câmera dá um lento “zoom” em cada quadro como se algo fosse pular dali, mas nunca pula, as expressões faciais dos humanos que nem sempre estão alinhadas e às vezes compartilham dos mesmos traços que o “vilão” da história. Há uma certa “deformação” proposital que me deixava pensando “Pera, esta pessoa é real, o que está acontecendo é real? Não, tem de ser real, nada indica o contrário. Mas… e se não for?”. No fundo eu sabia que era real, já que cenas de “flashback” são muito bem pontuadas, mas não reduzia meu incômodo.
Esse desconforto só aumentava ao notar que Mundaun “quebra” as convenções do que vou colocar como “jogos de terror moderno”. Avançar na história ainda significa “completar objetivos”, mas ao invés de ser uma linha reta, o jogo estabelece pequenos “hubs” exploráveis. O próprio vilarejo de Mundaun, que depois de duas horas de jogo já devia soar como uma segunda casa, permanecia um local misterioso. O que diabos eu iria encontrar ao abrir um portão? O que há atrás da porta cuja chave eu não possuía? Se as minhas dúvidas eram tantas durante o dia, foi o cair da noite no meu primeiro dia em Mundaun que me aterrorizou ainda mais.
Fortemente inspirado pelo folclore da região dos Alpes, o pacífico hub se transformou em um campo minado de homens de palha, monstros cujos rostos deformados conseguiam ser ainda mais aterrorizantes graças a um inteligente uso de iluminação “a velas” durante a noite e pelos seus gritos de agonia caso me avistassem. Isto é, não se eu os avistasse primeiro e os eliminasse.
Não vou esconder o meu alívio ao ver que a Hidden Fields não se limitou ao terrível “esconde esconde” que permeia a maioria dos jogos de terror. A maioria dos monstros de Mundaun podem ser mortos, mas suas ferramentas são limitadas e possuem durabilidade. Explorar cada um dos hubs e precisamente calcular os meus passos, pensar na quantidade de equipamento que possuía, ser pego desprevenido e fugir é muito mais interessante do que passar por mais uma leva de “oh meu deus, um monstro, agora preciso me esconder”.
Há até momentos que misturam terror com comédia. A partir de certa parte do jogo você ganha acesso a um coletor de feno / palha, o Muvel, para avançar para o segundo hub. Ao chegar nele e ver que a região estava repleta de “homens-palha” e eu estava sem equipamentos para me defender deles, joguei o carro com toda força para cima deles até que eles morressem. Em minha defesa, o jogo não especificou que tipo de palha o veículo devia carregar.
Todavia, por mais que existam esses momentos interessantíssimos dentro de Mundaun, ele começa a perder força e “magia” à medida que caminha para as áreas finais. Muito disso é devido a uma questão de “interação” com o ambiente, que praticamente cessa ao você alcançar o terceiro hub. A essa altura o vilarejo de Mundaun está fora do seu campo de visão, e você está em uma região gélida.
Compreendo que a Hidden Fields queria passar a sensação de “desolação” e medo, mas ela erra a mão ao inserir o “grosso” do restante da história nos momentos finais ao invés de melhor espaçá-la entre cada hub. Sentia que as áreas finais serviam mais para avançar a história do que me deixar explorar o ambiente. Cada objetivo soava como uma “fetch quest”. “Vá ali pegar uma bebida alcoólica que por acaso está em outro canto do mapa e não há nada de interessante entre o local em que você a obtém e o seu objetivo”, não é o melhor motivador.
Para contraste, essa sensação é contrária à que senti em um adventure como Someday You’ll Return. Tenho sérias críticas em relação à história escrita pela CBE Software, mas eu nunca me senti tão “sem rumo” em uma floresta. E mesmo com essa “falta de direção” cada pedacinho dela tinha uma ou outra novidade para me motivar a seguir em frente. Mundaun só tinha a sua história. Sabia que assim que completasse um objetivo eu seria `’transportado” para minutos de “exposição” como se eu não tivesse entendido o que estava acontecendo nas primeiras horas.
Teria sido esse um receio da desenvolvedora em garantir que “todos os jogadores entendessem a história” ou medo de que o jogo fosse “curto demais”? Possível; afinal de contas, jogos de terror são “raros” em relação a outros gêneros, mas algumas cenas serem “repetidas sob um contexto diferente” só piorou a sensação de que Mundaun já mostrou tudo o que tinha para mostrar – mesmo que algumas boas surpresas e decisões te aguardem nos momentos finais.
Apesar do grande deslize que ocorre nos momentos finais, coloco Mundaun em um pedestal por – tal como tantos outros jogos independentes por aí – conseguir trazer um olhar diferente, uma ambientação fora do comum, sem limitar sua visão para o que entendemos como “jogos de terror”. Eu prefiro uma indústria com 10 Mundauns do que mais 5 “The Medium”, “Amnesia” ou “Layers of Fear”. Chega de fugir de monstro, chega de me fazer andar em uma linha “reta” ou completar quebra-cabeças que estendem o tempo de jogo a troco de nada.
Mundaun é mais uma prova de que o espaço independente continua a florescer e brincar com gêneros de uma maneira muito mais “inovadora” do que a contínua busca por “visuais maravilhosos” das grandes produções. Mundaun e outros jogos de terror independentes que joguei em 2021, como Black Iris, podem não ter suporte a “raytracing”, personagens com dubladores famosos ou visuais de cair o queixo. Às vezes um lápis, um papel, boas ideias e uma boa dose de inspiração em uma cultura que raramente é representada no cenário dos jogos valem mais a pena.
Mundaun
Total - 8
8
Mundaun perde força nos momentos finais, mas apesar disso é ainda um bom jogo de terror que é capaz de gerar incômodo até ao realizar a mais simples das ações. A união entre o folclore dos Alpes, sua estética singular, e os detalhes do ambiente é o que cria a sua magia. Uma magia que — a meu ver — vai estar cada vez mais rara com o passar dos anos.