A Terra foi invadida por robôs, e mais da metade da população foi dizimada. Você é a linha de frente na resistência contra as máquinas e a sua tarefa vai ser… entregar pizzas. Não, pera, que? Calma; é apenas um “disfarce” para enganar a Mothergunship (Steam / PlayStation 4 / Xbox One ) – nave que dá nome ao bizarro game da Terrible Posture. Pode se preparar; essa é apenas a ponta do iceberg formado de bizarrices, e a melhor descrição que tenho para ele é “caos ordenado”.
Caos ordenado? O paradoxo serve para descrever muito bem a metodologia da desenvolvedora em encontrar a sua “própria voz” entre as principais abordagens no que tange à criação de arenas de combate. Antes de explicar que meio termo é esse, vamos conversar sobre essas abordagens. Para isso vou usar dois jogos proeminentes na minha vida, e especialmente nos últimos anos: Doom 2016 (iD Software) e Devil Daggers (Sorath).
Tanto o shooter da iD Software como o game da Sorath fazem um quase-constante uso de “circle strafing” (que é basicamente andar de lado enquanto atira, dando assim voltas ao redor do inimigo, para evitar seus disparos e conseguir acertar os seus) e de colocar o jogador em perigo para recompensá-lo. Por exemplo, Doom requer que você faça um “Glory Kill” (um golpe especial) para recuperar vida caso esteja com vida baixa, ou usar a serra elétrica para recuperar munição. Já Devil Daggers força o jogador a se enfiar no meio dos inimigos ou parar de disparar a arma — algo que pode ser letal — para coletar diamantes vermelhos e aumentar a potência da arma. Da mesma maneira, essa necessidade de colocar o jogador em perigo requer um fino ajuste em fatores como distância, tamanho da arena, e verticalidade, para que você não se sinta “prejudicado” pelo jogo.
O ajuste aparece primariamente no fato de que quase sempre os inimigos estão no seu campo de visão. Não estão longe demais, nem perto demais, nem acima ou abaixo demais. Você pode, portanto, encontrar situações ou zonas “seguras” para posteriormente se arriscar. Os inimigos que tem uma taxa de disparo, ou alcance maior do que o seu, são uma exceção.
Pois bem. Mothergunship manda isso tudo para o inferno e faz do jeito dele.
As arenas das missões, geradas proceduralmente, podem transformar o chão em lava, as paredes soltarem balas gigantes ou lasers, os inimigos aparecem de cima pra baixo, da esquerda para a direita, de tudo quanto é canto. É como você entrar em uma festa com luzes piscantes, e se sentir “ligeiramente” fora de lugar — como se não pertencesse àquele ambiente.
“Para onde eu atiro primeiro? Pera, é aquele inimigo que causa mais dano? Não, é aquele. Ah não, é aquele outro”. Eu esperava que os inimigos maiores seriam os mais “chatos” de se lidar, mas na realidade eram os pequenos que vinham em bandos. Achava que o chão ia me dar alguma segurança; aí caí em um poço de veneno e perdi mais da metade da vida. Não sabe de onde estão disparando? Que se dane! Se vira, quiçá é um robô que lança granadas explosivas e flamejantes, está a quatro andares acima de você, e ainda é capaz de te acertar — nem circle strafing vai te salvar. Ele não vai segurar a sua mão, ele não vai se importar em ser injusto de tempos em tempos. Nada é sagrado, as regras que eu dou como “certas” em shooters estavam invertidas.
Como, então, você se joga no perigo? Bom, em Mothergunship, você não precisa — você está sempre em perigo. A pergunta em si é como sobreviver tempo suficiente para não ser trucidado pelos robôs. Incentivos como power-ups (que, por exemplo, aumentam a quantidade de pulos duplos) ou aumento temporário da vida viram menos uma vantagem e mais uma questão de vida e morte. Um inimigo deixou cair um power-up na lava? Boa sorte para pular e acertar o espaço exato entre pegá-lo e não ser queimado.
Não vou poupar palavras para dizer que, quando Mothergunship quer, particularmente em missões não-obrigatórias, ele é difícil – beirando o frustrante. Fantásticas arenas tanto das missões primárias como sidequests (escolhidas a partir de um hub central, que também pode ser usado para treinamento e compra de armamentos raros) triplicam qualquer senso verticalidade ao qual você possa estar acostumado em arena shooters, e te fazem pular em plataformas rodeadas de espinhos, entrar em uma sala com robôs munidos de lasers que te dão apenas um mínimo espaço para manobras, ao ponto de eu cogitar chamá-lo de um Touhou (shmup japonês famoso pelos inimigos com padrões de ataque extremamente difíceis de serem decorados) em primeira pessoa. Eu não estava irritado, eu não estava frustrado. Estava, na verdade, rindo.
Mothergunship não quer, nem pede para ser levado a sério. A Terra é invadida por robôs, porém qual outro jogo te pede para se fingir de um entregador de pizza para acessar uma espaçonave e destruir o gerador? Ou ver um robô-bomba fazer uma cara braba quando vem em sua direção? Ou um general que te diz “Bom, ao menos você tentou” ao invés de te encorajar a fazer melhor? Ou ver que a missão falhou não por sua conta, mas pelos dados obtidos da nave estarem entupidos de adware?
Compartilhando da mesma veia de humor está o maravilhoso sistema de “crafting” de armas. Não, não aquele crafting que você conhece de coletar materiais e etc. Você pega parte de armas — como uma metralhadora ou uma espingarda — e acopla nos seus braços, criando monstruosidades como uma metralhadora-espingarda-lança-chamas-lança-granadas-e-tudo-mais-um-pouco. Para ser sincero, eu acreditei por muito tempo que esse seria o principal atrativo de Mothergunship, mas é mais um tempero extra do que qualquer coisa. Em parte, por conta da limitação inicial de equipamentos — variando de três a seis — e em parte porque o jogo te faz lutar para conseguir mais.
Imagine a minha surpresa misturada com irritação quando uma das missões principais só me deixava levar uma peça de equipamento. “Para que então serve o maldito sistema de crafting?”, perguntei já cansado. Aí é que vem a peça-chave de Mothergunship: se você quer ter acesso a mais armas nas missões, você precisa eliminar todos os inimigos de cada sala — que não é obrigatório — e torcer para que eles deixem cair uma moeda dourada. Não caiu? Boa sorte indo para a próxima sala com a mesma arma. Caiu? Que ótimo; vá para a loja e pegue novas peças.
Mothergunship é repleto desses momentos, decisões inicialmente malucas que, depois de horas de jogo, fazem sentido. Há um sistema de upgrades que em outros jogos teria sido o “ponto final” para virar um daqueles “morra uma quantidade X de vezes para ganhar experiência, e assim matar o chefão”. Esse ponto nunca chegou; o sistema de crafting parece ser limitado, mas o que ele demanda, na verdade, é que você use a sua habilidade para eliminar todos os inimigos da sala para assim recompensá-lo – tirando um tanto do peso da necessidade de colocar o jogador em situações de perigo momentâneo. A opção de não usar munições nas armas, e sim energia, corrobora com o crafting e te convida a ficar atento à quantidade de energia que uma arma gasta a cada disparo. Nem mesmo um sistema de pulo triplo que pode virar doze (sim, doze) pulos se você encontrar power-ups suficientes durante uma missão arruína a “lógica” do jogo.
Dentro desse suposto desequilíbrio de elementos é que fica a magia de Mothergunship. É como entrar em um quarto bagunçado, mas o dono daquele quarto te falar “eu sei onde está tudo”, e isso corresponder à realidade em Mothergunship, no entanto, a Terrible Posture Games admiravelmente não só diz isso, mas demonstra ao mundo que é verdade.
Foi nessa sede de querer conhecer mais que eu me encantei de vez.
Terminei o modo história, fui para as sidequests adicionais para obter novas armas, aumentei a experiência do personagem, e morri dezenas, centenas de vezes ao longo de sabe lá quantas horas do modo Endless. Isso sem contar o modo cooperativo que chega em agosto. Quando não estava jogando Mothergunship, estava pensando nele. Deitava na cama e me perguntava “será que o lança-mísseis junto com o modificador que aumenta em 30% a velocidade de disparo é uma boa ideia, ou vai esgotar a minha energia rápido demais?”. Cheguei a cogitar a possibilidade de speedrun ou builds focadas em armas corpo-a-corpo. Essa – senhoras e senhores – é a marca definitiva de que eu me apaixonei por um jogo.
Eu tenho um certo receio pelo futuro de Motergunship, não pelo o que ele vai se tornar, mas o tempo que ele pode tomar da minha vida. Ele atende a um estilo extremamente específico para mim, aquele jogo que você quer separar para uma escapulida na hora do almoço, para um domingo à tarde que você está com aquela vontade de testar as suas habilidades com builds absurdas ou em dificuldades extremas, ou para uma sexta-feira em você só quer relaxar e rir com absurdos. Não me sinto tão apaixonado assim por um arena shooter desde Devil Daggers.
E como é bom sentir isso de novo.
Mothergunship
Total - 10
10
Um shooter que se alimenta da desordem e caos, mas os pareia com um design brilhante de arenas, humor, e a sensação de perigo constante. Seja pelos robôs, ou pelo chão formado por canhões, grandes fãs de shooters vão encontrar alguma coisa pela qual vão se apaixonar.