Bom, não vou me dar ao trabalho de perguntar se você gosta de se desafiar ou se punir; afinal, você está lendo uma crítica sobre Mortal Shell (Epic Games Store / PlayStation 4 / Xbox One), um souls-like, e tais jogos tendem a ter essa proposta como base. Sendo assim, a pergunta que eu te faço é: até que ponto você acha “justo” ou tem paciência para esse desafio?
O jogo da Cold Symmetry é um bocado interessante neste quesito, primeiro por ser um dos poucos que eu não tenho vontade de revirar os olhos ao escrever “souls-like” — um termo erroneamente abraçado pela crítica e pelos fãs que foi usado para descrever de jogos lineares a metroidvânias como Blasphemous. O caso de Mortal Shell é alguém juntar as partes boas e as ruins da série Souls, adicionar um tempero próprio e condensar isto em seis ou sete horas de duração. É um tanto curioso ver como isso resulta tanto em um jogo que dá a impressão de ser muito mais longo do que é, como em uma quase inversão da “power fantasy” que você tem em Demon’s / Dark Souls.
Comecei o jogo com a tradicional presunção de “Ah, só algumas horas de jogo e vou estar craque nestas novas mecânicas. É só acertar o ‘timing’, aprender os inimigos e bola pra frente”. No ponto em que os créditos passavam pela tela, notei que eu não consegui me investir tanto quanto queria em todas as frentes que Mortal Shell me ofereceu; não aponto isso como algo ruim.
Seguindo o caminho inverso da série souls, Mortal Shell te dá poucos métodos para evoluir o personagem de maneira “direta”. Se for para usar o termo “action-RPG” para descrevê-lo, realçaria a parte “action”.
Boa parte das Shells — nome que é dado para as classes assim que as libera — possuem pontos de vida e staminas fixos. Umas contam com mais stamina, outras com mais vida, e assim por diante. Mas o que muda mesmo são as habilidades passivas e a maneira como elas são aplicadas contra os inimigos. Entretanto, eu tenho mais curiosidade de conversar com a Cold Symmetry para entender a razão dela decidir por tal método do que vontade de usá-lo.
Lembro-me muito bem de discussões sobre o uso de habilidades passivas em outros “souls-likes” como Sekiro e Nioh (creio que nenhum dos dois se encaixa exatamente na proposta, mas já que estamos nesse barco, vamos colocá-los na roda). O primeiro pela baixa variedade oferecida pelo sistema de prostéticos e o segundo pelos combos / parries / divididos por stances. Seja qual for a sua posição na sua discussão, há de se concordar que ambos os casos dão um grau de “personalização” em como você luta contra cada inimigo; o mesmo pouco acontece em Mortal Shell.
As habilidades passivas oferecidas pela Cold Symmetry soam tanto situacionais demais como obscuras demais para eu ter alguma vontade de investir pontos nelas. A Shell que eu mais usei no jogo, Eredrim — cuja principal característica é ter bons pontos de vida mas baixa stamina — só recebeu melhorias em duas passivas, uma que aumentava os pontos de vida e outra que ativava um “buff” de ataque toda vez que eu eliminasse um inimigo e não sofresse dano.
Isso pode muito vir do meu pano de fundo de gostar muito de percentuais e ter a tendência de querer transformar todo jogo em uma grande planilha do Excel (culpem os jogos de estratégia que tanto cubro), mas uma descrição vaga como “uma chance de não ser atordoado ao sofrer um ataque forte” não me dá a menor confiança de que vai ser útil.
O que amplifica a situação é que cada Shell tem a sua própria quantidade de Glimpses — uma das moedas usadas para liberar novas passivas — e Nektar, que é compartilhada. Nektar é a moeda mais fácil de obter, enquanto glimpses são raros e vão requerer uma boa dose de farming para serem obtidos, ainda mais caso você não goste ou não se adapte com a Shell que você escolheu.
Enquanto dá para dizer o mesmo sobre Dark Souls até certo grau, isso é apenas uma parte do problema, pois o mesmo ocorre com as armas. Para melhorá-las, é preciso de um item chamado “Quenching Acid”, que só é encontrado 10 vezes no jogo. Não gostou da arma, quer mudá-la e gastou todos os itens? Se vira nos 30 ou espera até o New Game+.
Embora creia que isso não vai ser uma dor de cabeça para quem é veterano da série Souls, é fácil de ver como um sistema destrutivo se alimenta de outro, ainda mais em um jogo com uma duração tão curta. No caso de Dark Souls o próprio ato de obter mais souls ou titanite shards até mesmo via farming pode ser feito em várias áreas, diluído em pequenas sessões ou até visto como um processo natural do jogo em si. Mortal Shell e sua condensação fazem a ação ficar artificial.
Eu mesmo quase cometi o erro de investir na arma errada; comecei com a Hallowed Sword e, mesmo depois de duas melhorias, eu não pegava o “timing” dela contra certos inimigos, e decidi trocar pelo Hammer and Chisel e sua habilidade de envenenar os inimigos. Agora imagine se eu tivesse insistido, ciente do quão teimoso eu sou, na Hallowed Sword?
Você está no seu direito de chegar neste ponto do artigo e me responder com: “Bem, você foi ‘burro’ e agora sofre as consequências disso”. Mas não seria mais interessante – ainda mais para um jogo que tem uma duração curta — oferecer flexibilidade?
Pois quando eu peguei o jeito do combate com o Hammer and Chisel é notável o quanto a Cold Symmetry se esforçou em “inovar” o subgênero com o seu sistema de “harden” — que é como endurecer a sua carcaça e que pode ser ativado a qualquer momento — tanto com a menor dependência em itens de cura e mais no aprendizado do sistema de parry. Isso sem contar que de todos os “souls-likes” que joguei, esse é de longe o que tem o combate mais “preciso”; você sabe quando e como o inimigo vai atacar e dá para criar uma certa estratégia contra ele, sem aquelas hitboxes bizarras — eu até mesmo consegui me esquivar de um martelo gigante por centímetros! Me diga que jogo conseguiu definir onde o jogador sofre ou não dano tão bem quanto Mortal Shell? Por que não me deixar brincar mais com esse sistema sem me arrastar para um new game+?
Quando eu já tinha sido fisgado pelo combate de Mortal Shell, foi a ambientação que começou a me deixar desapontado. Ele tenta ser críptico demais sobre a sua história mas não tem uma base para sustentar qualquer investimento nela. Essa questão é exacerbada por duas frentes: a já muitas vezes mencionada duração, e a dificuldade de eu sentir que o mundo que a Cold Symmetry criou era de fato “real”.
Isto é bem o que eu digo quando falo juntar as melhores e piores partes da série Souls. A From Software é “especialista” nisso e a Cold Symmetry, com seu sistema de hub e três “templos”, faz Mortal Shell parecer nada mais do que um amontoado de fases bem distintas uma da outra. Me lembra muito o que aconteceu com as áreas de Dark Souls 2, mas em um grau ainda mais elevado. São meticulosamente construídos e belos, mas no fundo não passam de fases, mapas, áreas. Eu não me sinto “imerso” naquele mundo. Quando não me sinto imerso, não há descrição de item, chefão ameaçador ou personagem misterioso que me faça mudar de opinião.
Não tenho uma bola de cristal para decifrar as decisões por trás da razão pela qual a Cold Symmetry apostou tanto em um escopo pequeno demais para sistemas que mereciam ser mais aproveitados. Mas, levando em conta que ela é uma empresa bem pequena de 15 funcionários investindo em um subgênero que está mais do que saturado de ideias e “homenagens”, Mortal Shell é melhor do que muitos outros “souls-likes” por aí, mas reservo a minha recomendação para os veteranos e os pacientes. No máximo, estou esperançoso para que a Cold Symmetry tenha a oportunidade de explorar mais desse universo com uma história mais interessante e aproveitar para aprender ainda mais com o que deu certo ou errado no jogo. Será que é pedir demais um Mortal Shell 2?
Mortal Shell
Total - 7.5
7.5
O escopo limitado de Mortal Shell, decisões peculiares e punitivas demais me fazem restringir sua recomendação para apenas os mais veteranos da franquia Souls. Todavia, quando se leva em conta que o subgênero está saturado de homenagens ou derivações, a Cold Symmetry ao menos tenta trazer novas ideias, e entrega um combate preciso. Só por isso ela já merece o devido reconhecimento. Que haja oportunidade para ela crescer e desenvolver melhor os conceitos que foram plantados. E, por favor, um pouco mais de flexibilidade, se não for pedir muito.