Você conhece aquela pessoa que solta umas frases como “continua a jogar que depois de 10 horas melhora?” ou “Espera mais umas cinco horas e você pega o jeito?”. Eu evito ser essa pessoa, detesto essa desculpa de que um jogo precisa de um investimento desse tamanho para se tornar bom. Todavia, terei de abrir uma exceção para Mistover (Steam / Nintendo Switch). Você não vai apreciar o jogo até chegar as 10 horas ou tomar o seu primeiro wipe. É irritante, mas inevitável.
O nome Mistover não poderia ser mais apto para o novo jogo da Krafton Game Union (que engloba franquias como PUBG e jogos mobile), ele é um misto do design pregado no oriente e no ocidente no que diz questão a RPG de turnos. Ele pega elementos de Etrian Mystery Dungeon, o próprio Etrian Odyssey e junta com um combate mais próximo dos antigos Wizardry e a interpretação oriental – vista em jogos como Elminage Gothic ou Operation Abyss.
Por conta desse DNA, ele é um jogo que você vai jogar pelas táticas e pela grande personalização de personagens / builds e não pela história. Ela até existe, e segue em grande parte a mesma temática dos jogos no qual ele busca inspiração. Um mau terrível caiu sob uma terra mística e agora você precisa salvá-la. O vídeo de introdução dita o tom macabro e depois disso a trama fica em segundo plano. Sinceramente não tenho a menor ideia do que aconteceu nas minhas 20 tantas horas de jogo, e também não me importo muito.
Quem tem alguma experiência com a série Etrian ou JRPGs com foco em explorar dungeons vai rapidamente se acostumar com a estrutura de Mistover. Ele é separado em duas partes distintas: a primeira compõe a cidade – que funciona como uma base de operações para aceitar quests, recrutar e treinar personagens, comprar itens e identificar equipamentos. A segunda é definida pelo mapa-mundi e a exploração. Escolha uma dungeon, sua party e vá em frente rumo ao desconhecido. Soou divertido? Intrigante? Calma lá, pois Mistover na sua atual conjuntura atende as demandas apenas daqueles que adoram um masoquismo.
Explorar dungeons e descobrir seus segredos para mim tende a ser um conceito agradável, até relaxante. Tomo o meu tempo com cada área, mapeio ela – seja via um automap, um programa de terceiros como o Grid Cartohrapher ou até com o tradicional papel e lápis. Vejo quais são os pontos fortes e fracos dos meus oponentes, e cuidadosamente crio e ajusto a minha party. Parte disso vai por água abaixo dado a natureza procedural de Mistover; cada dungeon é gerada aleatoriamente, o que traz um ótimo elemento de surpresa e não é um empecilho para o meu aproveitamento. O que é, entretanto, são algumas decisões de design que francamente só posso chamar de bizarras.
O pontapé inicial (ou o soco na boca do estômago, já que é essa a sensação que o jogo passa), Mistover usa um sistema de limite de tempo que força você a tomar riscos ao explorar novas áreas. Quanto menos tempo ou menor for o seu progresso na exploração, maior as chances de do “Doomsday Clock”, um relógio que conta os minutos finais para o fim do mundo, avançar.
Não me importo muito com limites de tempo em jogos. Eles tendem a estar lá para um motivo, e o Doomsday Clock tem uma função muito bem definida. O que prejudica fazer com que ele seja um incentivo ao invés de uma fonte de constante stress vem do fato que Mistover é mesquinho e mão de vaca com inúmeras mecânicas secundárias, sendo as mais agravantes a dificuldade de manter um fluxo de ouro e não gastar tudo em alimentos e itens que aumentam a luminosidade que a sua equipe emana.
Darkest Dungeon usa um sistema parecido; comida e tochas são essenciais em uma expedição e assim como em Mistover, elas fazem sentido. Eu não iria para uma floresta sem mantimentos, por que os meus personagens iriam?
Mas os defeitos não param por aí, além de gastar ouro com alimentos, você ainda precisa ter uma equipe bem equilibrada – e aí que entra o bizarro e até um pouco estúpido sistema de habilidades. Não importa o nível que o seu personagem está, algumas habilidades ficarão bloqueadas até você recrutar um personagem da mesma classe que por acaso tenha essa habilidade. Só assim para você ir ao centro de treinamento e gastar ainda mais dinheiro e itens para obtê-la. Perdeu o personagem? Que pena, agora a habilidade está bloqueada para compra e você vai precisar torcer para que apareça outro com a mesma habilidade.
Volto mais uma vez a apontar como Darkest Dungeon consegue implementar isso de maneira bem mais natural: todas as habilidades podem ser desbloqueadas independentemente de você ter um personagem com a proficiência requerida. Isso mitiga, e muito, a perda de um personagem – e olha que eu falo de Darkest Dungeon, um dos RPGs mais brutais no quesito RNG.
Essa foi a hora que eu me sentei, peguei um papel e uma calculadora e comecei a fazer os meus típicos cálculos de quantas moedas de ouro eu precisava obter em cada dungeon para ter um fluxo estável. Era um valor insano – algo em torno de 2000 ou mais na dificuldade “hard”. Não sabia que tinha virado um malabarista de dinheiro, mas segui em frente.
Eu já estava lá na minha quarta ou quinta dungeon e tudo parecia progredir bem. Tinha perdido dois personagens, mas os repus com a minha equipe reserva. A essa altura já tinha definido a minha party principal: dois tanks, dois DPS e um healer. Mais do que isso e o consumo de alimento e luz seria impossível de se manter.
Mas como o destino (ou o meu sono) gosta de pregar peças, cometi um deslize e fiz uma dungeon inteira sem me preocupar em gastar alimento ou luminosidade pois achei que tinha guardado mais do que imaginava para duas runs. Peguei todo o loot do mapa e matei a maior quantidade possível de monstros para evitar o avanço do Doomsday Clock. Ao voltar para cidade que me toquei: todos os meus mantimentos estavam esgotados. Eu acabei pegando do banco de armazenamento e não notei.
Como eu decidi subir o nível da minha equipe ao invés de realizar quests, a quantidade de dinheiro obtida no mapa foi muito menor do que eu esperava. Persisti e disse que a próxima dungeon ia me salvar, ia me dar loot e alimento e eu ia sair dessa emboscada.
A realidade é que eu caí em uma espiral de situações impossíveis de serem revertidas devido a natureza de Mistover. O mapa gerado pela dungeon era maior do que eu esperava, só uma das lutas deu drop de alimento e eu não conseguia encontrar a saída. Quatro personagens morreram de fome e o Doomsday Clock avançou dois minutos.
Eu estava sem palavras. Não tinha dinheiro, carecia de mantimentos e não tinha sequer personagens para continuar a partida. Se eu recrutasse novos personagens eles começariam do nível 1 — o que causaria o aumento do Doomsday Clock já que não iria progredir o suficiente. Se continuasse com os mesmos personagens eu não teria dinheiro para comprar mantimentos necessários. E nem se eu removesse todo os equipamentos deles e vendesse eu continuaria à mercê do Doomsday Clock e com uma Party fraca. Respirei fundo, voltei para o menu principal e apaguei o save.
Agora, eu sei o que você está pensando: essa é a parte do texto que eu vou rasgar Mistover e dizer que ele não vale o seu tempo. Nada disso, eu acredito que Mistover tem mais do que um lugar no universo dos dungeon crawlers. Falhei na minha run e isso é algo natural. Acredito também que a Krafton precisa reavaliar o balanceamento de classes e custo de mantimentos, o que deve acontecer cedo ou tarde.
Mas também eu não me lembro de nenhum dungeon crawler em recente memória que foi capaz de unificar os elementos que citei no começo do texto sem que o combate se tornasse monótono. Mistover faz como se fosse algo já bem comum na indústria. Ele estabelece um incrível sistema de combos que pode ser ativado de acordo com a posição de até três classes no grid 3×3 onde o combate ocorre. Os inimigos foram criados para deturpar esse equilíbrio e fazer com que você não use esses combos – o que redobra a sua atenção para como reposicionar as unidades caso uma habilidade inimiga as mude de lugar –, e oferecem um leque incrível de ataques com diferentes tipos de dano, buffs para eles ou debuffs para os membros da sua party. É inteligente, eficaz e que faz você pensar em quais tipos de habilidades ou quais builds que você quer construir para a sua equipe.
Além disso, ela acerta em criar um sistema de loot que não dá margem para fazer com que um item fique obsoleto. Mesmo que você tenha pego uma Katana básica em uma run, ela pode ser fundida com uma arma mais potente que você já tem para melhorá-la ainda mais. Só isso já corta metade do desânimo que é ver um equipamento “básico” ou “ruim” cair nas suas mãos.
Ainda na temática de Loot, a Krafton também introduz um sistema que demonstra quais são os loots garantidos de encontrar na dungeon na qual você está. Isso é uma bela forma de encorajar você a tomar riscos para encontrar todos os baús e desviar dos monstros (ou tentar a sorte e sobreviver a todas as lutas, o que não recomendo). Isso mais uma vez simplifica a construção de builds sem depender demais de RNG para obter bons equipamentos; algo raríssimo de se ver em dungeon crawlers japoneses e mais uma influência do mercado ocidental no seu design.
Além do que, eu sei que vai ter um ou dois de vocês masoquistas que lerão esse texto e falarão: “ok, isso é punitivo, mas também bem interessante”. É assim que vejo com Mistover. Ele é punitivo demais, requer um tanto mais de balanceamento para o valor dos mantimentos. Assim que esses problemas forem solucionados – e eu torço muito para que sejam – o que vai restar é um modelo de dungeon crawler que não fica preso demais a nenhuma convenção do gênero, mas as une de forma harmoniosa.
Em um 2019 que tem sido fantástico para RPGs, vide Disco Elysium, mas aquém do esperado para dungeon crawlers, eu estou mais do que satisfeito em conviver com as irregularidades de Mistover do que ficar revisitando jogos do passado.
Mistover
Total - 7.5
7.5
O maior erro de Mistover é ser punitivo demais onde não se deve ser. Fora isso ele é um bom dungeon crawler que pega e mescla elementos de vários games e forja uma identidade própria. Preste atenção na hora de explorar as dungeons e prepare-se para tomar um, ou vários, wipes.