A lista de pratos do dia é extensa. Temos restos humanos como cérebros, intestinos e estômagos, partes com ou sem ossos (humanos, obviamente), com ou sem pele. Comida para todos os gostos! Fora de contexto você já imaginaria que eu enlouqueci, mas não, ainda não. Falo é de MachiaVillain (Steam), o game de gerenciamento inspirado pela arquitetura e metodologia de design de outros jogos como Rimworld e Prison Architect. A temática? Construir um hotel mal-assombrado e matar seus hóspedes. Quer saber o que é pavor de verdade? Ter de interagir e aprender como fazer isso.
Em um episódio do podcast Three Moves Ahead, Nicholas Vining, desenvolvedor na finada Gaslamp Games (Dungeons of Dredmor / Clockwork Empires), comentou sobre a dificuldade de se criar tutoriais que mantêm o jogador engajado. Muitos preferem pular informações necessárias, que às vezes não são repetidas, ou acabam dentro de um grimório ou algo parecido que acaba sendo ignorado pelos jogadores. Levanto o ponto em questão antes mesmo de descrever minha experiência com MachiaVillain exatamente por ser justamente o que a Wild Factor faz.
Com muitas horas de Prison Architect nas costas, arregacei as mangas e comecei a construir. Se você jogou algum dos jogos, já sabe mais ou menos o que esperar. Ao invés de gerenciar diretamente as ações dos seus minions — que também são os monstros que irão assustar e matar seus hóspedes — você estabelece prioridades por meio de um painel. Tais prioridades incluem coisas como: limpeza, construção, cozimento, etc.
O que me pega de surpresa, porém, é que MachiaVillain espera, ou acredita, que aqueles que decidirem jogá-lo já têm alguma experiência com o gênero. O tutorial se limita a três ou quatro quests básicas como “aprenda a criar uma edificação”, “veja como coletar materiais” e “veja como atrair novos convidados”. O resto está escondido — para não dizer soterrado — em menus tão confusos quanto a maneira como a premissa realmente se desenrola ao longo da partida.
A ideia inicial de montar esse hotel mal-assombrado é jogado pela janela depois das primeiras horas de jogo. Para começar, MachiaVillain não reforça a noção de que você precisa ter um hotel “falso” na frente para atrair suas vítimas. Eu sei que soaria óbvio, mas e se eu te disser que não é a maneira mais eficaz de jogá-lo?
A minha primeira partida seguiu bem a ideia prometida pela Wild Factor; um hotel e as salas de tortura escondidas no fundo junto com as salas para os meus minions dormirem, descansarem, fazerem suas necessidades e por aí vai. Descobri, todavia, que não dá para confiar nos meus minions. Tudo bem, há de se convir que múmias não são muito confiáveis, mas o fato é que eles são um pouco…. burros.
MachiaVillain funciona em duas camadas. A primeira — de gerenciamento — requer que o minions façam o trabalho duro de construção, uma atividade passiva. Já a segunda — de alimentação / ataque e eliminação de visitantes — requer que você tome controle direto desses personagens para realizar as tarefas.
Por um lado, automatização, por outro, controle. Não existe diálogo entre essas partes. Os minions não atacam automaticamente caso um dos visitantes calhe a entrar em um dos seus quartos que você preparou tão cuidadosamente, e se você não prestar atenção, eles até podem esbarrar em um visitante e fazer com que ele fuja morrendo de medo do que viu e alerte as autoridades.
Devia ter filmado a minha cara de surpresa e frustração ao ver um vampiro entrar no quarto onde um hóspede estava, não para matá-lo e tomar seu suculento sangue, mas sim para varrer o chão. Fui às pressas no painel de tarefas, desativei todas as tarefas, cliquei no vampiro e aí sim consegui tirá-lo da sala. A essa altura o hóspede já havia fugido desesperado. Eu teria feito o mesmo.
Isso gera uma bola de neve que já é sentida depois das primeiras horas. Um minion, dois, três, quatro, dez. A atenção para gerenciá-los aumenta, assim como a demanda por matérias primas para a produção de cômodos avançados. Teve uma ideia de construir um objeto avançado para a sua câmara de tortura? É bom que o estoque de matéria-prima — como madeira, pedra, metal — seja enorme, pois o custo é desnecessariamente imenso.
Isso vira um trabalho chato, monótono e cansativo. Interagir constantemente com o ambiente ou com os personagens não é algo produtivo quando essa interação se resume a “consertar possíveis problemas” que não são resultados das suas decisões, mas erros dos próprios minions.
A essa altura já tinha um respeitável hotel – recriado quando eu decidi que o hall de entrada era a única área “segura” para os meus visitantes. Lutava com o painel de prioridades, e tinha um estoque de comida (humana) suficiente, mas sempre estava atrás de mais matéria-prima.
Ficava confuso cada vez que me deparava com esses custos de construção enormes; para quê a existência deles se muitos envolvem itens cosméticos? Ora, um armário não deveria necessitar de tantos pedaços de madeira. Por que eu preciso gastar tanto tempo com uma tarefa tão mundana? Imagine quando descobri que a mesa de pesquisa avançada – usada para liberar novos itens e habilidades especiais para os minions – requer 1000 tijolos. E os tijolos precisam vir da fábrica, que requer outros materiais para fabricar os tijolos. É importante apontar que nada disso é explicado pelos tutoriais iniciais e, a não ser que você brinque de “vasculhar a interface para entender o que diabos é necessário fazer para avançar”, você estará fadado ao fracasso.
“Ok, eu preciso fazer uma lista”, disse. Sentei, abri a minha típica planilha do Excel e comecei a listar o que era necessário para expandir. Cinco horas. Cinco horas era o mínimo necessário para que eu pudesse construir a mesa de pesquisa e sabe lá o que eu precisava para de fato avançar nas pesquisas.
Cinco horas de “matar hóspede, pegar material, matar hóspede, pegar material”.
Me sentia estagnado, sem saber o que fazer com o meu hotel. A realidade é uma só, e decepcionante. MachiaVillain não tem a “profundidade” que ele promete no começo.
Suas maiores dificuldades aparecem por meio de heróis — que são acionados por eventos aleatórios ou quando seu hotel mal-assombrado começa a levantar suspeita demais e alerta as autoridades — e dos bugs. No caso dos heróis, armadilhas e uma boa dose de sorte vai ser o suficiente para dar cabo de grande parte deles. O que me leva a outro questionamento: gerenciar crises.
Pois veja bem, um jogo como MachiaVillain – e outros que o inspiraram – não se limita a gerenciamento do cotidiano, mas também de crises. As minhas melhores histórias de Prison Architect surgem a partir do momento que estoura uma crise dentro do jogo. Um prisioneiro decide iniciar um motim, eu esqueço de fechar uma das construções, brigas no refeitório. Esses detalhes fazem com que eu reflita, repense e reajuste tanto a dinâmica da minha atitude em relação a essas possíveis crises, como a própria estrutura da minha base / presídio / etc.
Dado o baixo grau de periculosidade desses heróis ou autoridades que servem como o principal estopim para as crises, raramente fiz isso. Eu simplesmente os eliminava e seguia “feliz”, com mais hóspedes sendo mortos e virando comida para os meus minions. Cedo ou tarde essa magia vai embora, e no caso de Machiavillain, mais cedo do que eu esperava. As descobertas e novas habilidades para os minions influenciam tão pouco que não vale nem a pena investir.
Quanto a enfrentar os bugs? Bem, aí só uma boa dose de paciência mesmo.
Minions que decidem não construir estruturas, camas, armadilhas, tudo que você possa imaginar, alertas que não saem da tela por motivos desconhecidos (sendo o meu favorito o alerta que um dos minions não tinha onde dormir, sendo que ele já estava dormindo), coleta de materiais que não funciona. A lista vai longe, muito longe.
Eu aguento lidar com uma meia dúzia de bugs, todo jogo tem, mas não quando eles me impedem de progredir. Imagine não conseguir alimentar os seus minions por que eles simplesmente não coletam os alimentos do chão mesmo depois de desativar todas as tarefas e clicar inúmeras vezes. Tinha até preparado uma vela para ver se ia. Mais uma mansão perdida por problemas aleatórios.
Não gosto de usar as palavras “acesso antecipado” quando descrevo um jogo já lançado oficialmente, mas eu acredito que MachiaVillain teria se saído melhor com uma bela dose de feedback dos jogadores; seja para o tutorial, quanto para encontrar bugs ou para arredondar o end-game e as ameaças externas.
Porque soterrado debaixo de todas essas adversidades, vejo um jogo com uma premissa e um potencial imenso. Criar um hotel mal-assombrado – isso não soa fantástico? E os minions que você contrata que têm traços especiais – como resistência ao sol ou a habilidade de serem invisíveis? É um dos poucos da nova leva de gerenciadores inspirados em Dwarf Fortress / RimWorld / Prison Architect que tem uma ambientação única (sendo os outros dois Oxygen not Included da Klei e Airport CEO da Apoapsis Studios). Era uma oportunidade quase que perfeita para ampliar não só a variedade do gênero, mas oferecer um jogo que pudesse servir como “porta de entrada” para um subgênero tão complexo.
Mas o potencial não é atingido, o sonho não se torna realidade, a porta de entrada nunca é de fato aberta e a realidade atual de MachiaVillain é triste. Acho melhor que os monstros fiquem escondidos até que seja o verdadeiro momento deles de brilhar. Exceto se for um vampiro – aí é melhor esperar até o anoitecer mesmo.
MachiaVillain
Total - 5.5
5.5
A premissa de MachiaVillain é espetacular, mas jogos não se sustentam só disso. E a quantidade de problemas – tanto de design como bugs – mostram que o game da Wild Factor teria se beneficiado de um período de acesso antecipado. Por ora, é melhor adiar seus planos de construir um hotel mal-assombrado.