É possível criar um deckbuilder que ao mesmo tempo consiga contar uma história e ter um elemento de aleatoriedade? A resposta simples é “sim”, a resposta complexa é “depende de como você o constrói”. Os últimos anos foram recheados de tentativas de unir uma narrativa forte com bons elementos de deckbuilding. “Knock on the Coffin Lid” (Steam) é, até então, a mais bem sucedida que eu vi.
A maioria dos jogos que tentam unir essas duas mecânicas seguem por um de dois caminhos: Criam uma campanha separada, como é o caso de “Gordian Quest” ou estabelecem pequenas narrativas contidas em uma única zona, como ocorre com “Zoeti” e até o espetacular “Across the Obelisk”. A equipe da Redboon contornou esse problema da forma mais simplória possível, faça morte fazer parte da história!
A história começa com você assumindo o papel de Percival, um guarda do que o jogo chama de “Portão do Norte” – o limite entre as terras Humanas e de outras criaturas. Envenenado após investigar um possível conflito entre elfos e anões, ele acorda em um caixão com uma figura conhecida apenas como “Mortis” ao seu lado. O que ele quer de Percival? Que elimine Sigismund, mas para isso ele precisa se preparar para a longa e – para mim – árdua jornada.
“Knock on the Coffin Lid” se dá bem onde outros tantos deckbuildes falham por entender e abraçar o conceito de que o jogador vai morrer cedo ou tarde nas primeiras runs, e isso é inevitável. Percival vai voltar para o caixão e Mortis o lembrará de seu objetivo. O próprio Percival reclama da morte e Mortis responde com: “O que você ganhou? Experiência e conhecimento!”. Uma piada que todo jogador de deckbuilder vai entender muito bem.
Afinal, quem nunca apanhou para um chefão até descobrir a build certa, estar com as cartas certas na mão ou conseguir um buff fantástico que transforma a batalha que pode durar 30 ou mais turnos em algo rápido e certeiro?
É aí que entra a jogada de mestre da RedBoon; cada área do jogo conta um pouco do que aconteceu após a morte de Percival. Como o mundo mudou, como certas regiões foram afetadas ou não pelo conflito entre elfos e anões e quais outras ameaças surgiram no meio tempo. O jogo não chega a dar uma data definitiva, mas há indícios que Percival está morto a pelo menos mais de 100 anos.
Isso cria um terreno riquíssimo para a desenvolvedora explorar cada território e preenchê-lo com eventos, muitos eventos. Alguns, cruciais para a história, se repetem, outros são totalmente aleatórios e podem te dar vantagens ou desvantagens nas próximas batalhas.
Em um desses eventos, por exemplo, eu decidi ajudar um anão que estava cercado por elfos prestes a matá-lo. Após salvá-lo, ele se juntou a mim para o resto da jornada. Qual é a sua história? Não sei, mas ele se sentiu na obrigação de me ajudar a chegar ao meu objetivo e também me ajudar a recuperar a minha memória. Pena que eu e ele morremos para o primeiro grande chefão, um elfo montado em um javali gigante que eu não estava nem um pouco preparado para enfrentar.
Quando voltei à estaca zero, perguntei a mim mesmo “como a RedBoon quer que eu me interesse pela história de ‘Knock on the Coffin Lid’ sendo que tudo é aleatório”? Bem, nem tudo é. Quando Mortis disse que experiência e conhecimento são as minhas maiores recompensas, a desenvolvedora usa quase como um metacomentário para a progressão desse tipo de jogo.
Quando iniciei uma nova jornada, locais com eventos cruciais e importantes para a história estavam mapeados. Eu podia agora “planejar” uma rota para chegar no primeiro chefão e, quem sabe, derrotá-lo, sem que a narrativa principal fosse jogada de lado.
“Mas Lucas, isso não é um roguelike!” Olha, temos duas escolhas aqui: Passar o resto do texto tentando decifrar o que é um roguelike hoje em dia, ou aceitar que ele já passou por tantas mutações ao longo dos últimos 10 anos que o termo tem vários significados. Vou optar pela segunda.
Pois o que “Knock on the Coffin Lid” faz é espetacular. Cada área que eu avancei expandiu mais, e mais a história, trouxe novos personagens jogáveis que complementavam não só a história de Percival, mas como o universo criado pela desenvolvedora. O jogo tem um “quê” de “Choose your Adventure” que poucos deckbuilders conseguem capturar com tanta maestria.
Um evento novo? Eu até me ajeitava na cadeira para ver do que se tratava. Os textos são ricos em detalhes, mas sem serem pedantes. As animações são soberbas e até mesmo as menores variações de tais eventos me empolgavam. Mais uma vez, um feito incrível para um jogo que usa deckbuilding como principal mecânica.
Até mesmo na hora da ação, “Knock on the Coffin Lid” não decepciona. Ele ainda está bem longe de chegar perto de Abalon ou um dos meus favoritos, “Vault of the Void” em termos de complexidade de mecânicas, mas há variedade suficiente nas cartas, personagens jogáveis e equipamentos para garantir várias estratégias e sinergias.
Um dos elementos que mais gostei do combate é o sistema de “sets de equipamentos”, nem sempre visto em deckbuilders. Cada região do mapa tem dois ou mais set que dão bônus específicos para ataque, defesa, evasão ou podem reduzir o dano que o oponente causa em você, ou aumentar a fraqueza do oponente. O combate em si é “simples” comparado a outros jogos do gênero, mas para o que “Knock on the Coffin Lid” se propõe, é mais do que o suficiente.
Um dos toques especiais que a RedBoon fez nos equipamentos é que nenhum deles necessariamente significa uma “vantagem” para o jogador. Alguns são amaldiçoados, outros vão gerar desvantagens em colocar cartas a mais na sua mão que você vai precisar gastar energia para removê-las. Cabe a você pesar se vale ou não usar esse set na run ou, se for sortudo, chegar no final da história com vida e com bons equipamentos.
E, sim, a história de “Knock on the Coffin Lid” tem um fim. Um fim com muitas reviravoltas pelo caminho, com lacunas que são preenchidas pelos personagens secundários e eventos que podem ter passado despercebidos. Não vou dizer que adorei cada segundo dela – o segundo ato se arrasta um pouco demais e a conclusão é ligeiramente frustrante – mas foi satisfatório.
Você pensou que eu simplesmente fechei o jogo e parti para o próximo? Nada disso. A história é apenas uma das facetas de “Knock on the Coffin Lid”. O modo desafio corta o “grosso” da narrativa e traz ainda mais itens exclusivos e uma progressão separada. Eu assumo que estou muito longe de chegar no topo da sua dificuldade e já estou sofrendo em encontrar sinergias de cartas e equipamentos. Aqui quem manda é o RNG e é melhor você rezar para que ele te ajude nessas horas.
Ainda prevejo gastar muitas horas em “Knock on the Coffin Lid”. Seja após o término dessa crítica ou após algumas atualizações. A própria RedBoon já confirmou um novo DLC para 2025 com uma série de desafios extras e modificadores de dificuldade para os masoquistas que amam deckbuilders. Eu torço, e muito, para que essa desenvolvedora não vá a lugar algum. Se este foi o seu título de estreia, nem imagino o que vem por aí.
Total - 9
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“Knock on the Coffin Lid” é um dos pouquíssimos deckbuilders com elementos de roguelike que conseguem unir uma narrativa competente, bons eventos, sistema de cartas e equipamentos sem que acabe se sobressaindo. Um ótimo título de estreia da RedBoon e espero que a desenvolvedora entregue ainda mais qualidade no futuro.