Estava na décima ou vigésima tentativa de completar a quest. Quase todos os bandidos do acampamento dormiam; era a minha chance de ouro. Me aproximei lentamente, peguei um deles de surpresa. Inocente, esqueci que a minha armadura faz barulho. Assim que derrubei meu oponente no chão, todos os outros acordaram e fui trucidado em instantes. Pera, você esperava um final feliz? Desculpe, isso não existe em Kingdom Come: Deliverance (PC, Xbox One, PlayStation 4).
Um dos elementos que mais aprecio tanto no famoso STALKER como no brilhante indie Rain World é estar na posição de insignificância em relação ao mundo. Você não é o escolhido, não existe a promessa de receber mundos e fundos por realizar uma tarefa. Você é um nada; se não se adaptar ao ambiente, ele vai te engolir. E essas são as características predominantes de Henry, filho de um ferreiro, que vê seus pais mortos diante de si pelas mãos de um exército invasor. Um protagonista “comum” que se encaixa no viés “realista” da Warhorse Studios para o RPG.
Antes de continuar o texto, preciso salientar a questão de realismo, precisão histórica e a sinuca de bico em que a Warhorse Studios se enfiou com Kingdom Come: Deliverance. É provável que você já tenha ouvido falar sobre toda a polêmica acerca de seu diretor, Daniel Vávra, por diversos fatores: sua posição acerca da existência ou não de variedade étnica na Boêmia do século XV (palco do game) e algumas respostas, no mínimo juvenis (para não dizer reacionárias e ocasionalmente racistas), que ele decidiu dar ao longo do desenvolvimento do game para quem levantou essa questão.
E, ainda que eu não tenha como negar fatos como pinturas ou esculturas da região que demonstravam o mínimo de uma diversidade étnica, o conceito de precisão histórica, por si só, já é falho dentro de um jogo. Primeiro que a história não é formada a partir de um ponto de vista único, mas sim estabelecida ao longo de uma multiplicidade deles, e quem decidir fechar os olhos para os outros está se impedindo de buscar novas fontes de informação. Segundo que neste caso nós não temos informações suficientes — e raramente temos – para descrever um jogo como “precisamente histórico”.
Uma desenvolvedora pode dar pinceladas, pode integrar mecânicas consideradas realistas, mas ainda assim é um jogo; um certo grau de liberdade e suspensão de descrença é sempre necessário. O uso da história como pano de fundo não quer dizer que o jogo tenha que a seguir à risca; há outras maneiras de usá-la inteligentemente, seja como fonte de inspiração – como Nioh – ou como a base para um jogo de estratégia como o Crusader Kings. O caso de Kingdom Come é peculiar por conta dessa “jogada de marketing” do “realismo histórico”, que aliada à terrível postura do seu diretor, abre um leque imenso para discussões sobre essa precisão ou autenticidade histórica. Não quero, porém, dizer que qualquer desses fatores justifica as atitudes de Vávra.
Por fim, deixo o seguinte pedido: não acredite que a história tem só um lado. busque novas fontes de informação, compreenda outros pontos de vista (por mais que você discorde veementemente deles). E, por favor, jamais use um jogo como uma base única de aprendizado; ele pode até te trazer algum interesse no período, mas livros e pesquisas feitas por historiadores medievais, ou de qualquer outro período histórico, são muitos mais ricos em conteúdo.
Dito isso, esse “realismo” (aqui usado com as maiores aspas do universo) não surge da trama do jogo, tampouco da forma que a comunidade da região foi propriamente representada. Talvez o maior acerto da Warhorse Studios tenha sido transpor um conceito de autenticidade para as suas ações em um RPG, de forma que as ações mais mundanas do jogador se tornem muito bem associadas ao ambiente ao qual ele pertence.
Henry não é alguém especial. Ele é um aprendiz de ferreiro, um péssimo espadachim e terrível em todo o restante. Tudo que o jogador conquista em Kingdom Come vem a duras custas. Conseguiu uma nova armadura? Torça para que não entre em combate tão cedo para que sua durabilidade não seja prejudicada e você acabe sem dinheiro para consertá-la. Obter dinheiro por meios tradicionais (que não envolvam guias feitos por outros jogadores ou cheats) demora. Tudo é lento, as horas se arrastam, as feridas não saram da noite para o dia. Alimentos estragam, andar com água e comida é essencial. Dormir faz parte da rotina, é mundano como muitos momentos da nossa vida.
E isso se reflete na forma como as quests se desenrolam; e não deixa de ser irônico que as quests secundárias tendam a ser o forte do jogo ao invés da por demais previsível quest principal. Um assassinato não tem um vilão imenso por trás, ou um motivo especial – pode ser fruto de uma briga entre familiares ou uma batalha pela posse de um local. É um toque humano mostrar que as pessoas que habitam a região de Bohemia são como qualquer outra: falhas, complexas, movidas a impulsos. É essa sensação de ter os pés no chão de que sinto falta.
Vejo que “ter os pés no chão” se manifesta pelo meu espírito exaustivamente planejador no dia a dia; Kingdom Come reforça essa característica com a necessidade de estar sempre atento a tudo que se faz. Do ato de ir caçar animais – onde eu troco minha vestimenta para uma que faça menos barulho e garanto que eu tenha flechas suficientes para caso eu erre muito – ao sistema de save, onde o jogo só salva com uma bebida especial – os Savior Schnapps – ou ao dormir.
Diria que o ápice do planejamento de Kingdom Come: Deliverance vem pelo seu sistema de combate. Henry não é um humano excepcional em praticamente nada e o combate não é diferente. Foram horas de aprendizado, treinamento e muita atenção. Com Mount & Blade como o único possível ponto de referência – e com um combate mais simples do que o usado pela Warhorse – o combate do game permite que o jogador ataque em até seis direções diferentes, e cada uma delas tende a ter um sistema de combos distinto.
Não foi fácil me acostumar com o sistema. Morri, errei combo, não soube como me defender e me encontrava frequentemente focado demais em “derrotar” o inimigo. Entretanto, derrotar em Kingdom Come nem sempre significa matar o oponente, mas fazer ele cansar e desistir. É preciso analisar a posição da espada do oponente, a direção na ou da qual ele pode atacar, procurar aberturas, para aí sim partir para o ataque. Uma das batalhas mais intensas foi justamente quando eu eliminei o acampamento de bandidos, onde um deles – armado com uma clava – tinha quase total controle do combate. Meu escudo era a única barreira que tinha entre a vida e a morte; sabia que dois ou três golpes certeiros me matariam pois minha armadura era fraca demais. Morri na primeira tentativa, mas não me dei por satisfeito. Uma, duas, três, quatro, cinco tentativas, perdi a conta de novo.
Comecei então a perceber quais posições eram mais vantajosas para mim. O azar virou sorte, usei o escudo para rebater os golpes da clava e aproveitava para dar uma pontada com a minha espada. Pouco a pouco danifiquei a armadura do meu oponente, deixando-o mais suscetível a erros e com menor chance de se recuperar de uma boa investida. Exausto, o bandido jogou a arma no chão e pediu clemência, e assim a dei. Eu o vi fugir por um córrego próximo e pensei “Bem, uma pequena vitória, mas um grande ensinamento para como funciona o combate”. A felicidade durou pouco quando ele voltou com um grupo de outros bandidos, sendo dois deles armados com arco-e-flecha, e novamente morri. Afinal, eu te disse que não há final feliz em Kingdom Come: Deliverance.
Os momentos intensos das batalhas só são comparáveis à tranquilidade de cavalgar pelo campo, apreciando os detalhes de como as folhas rebatem a luz do sol, como o vento faz as flores e os galhos balançarem, para depois parar em uma taverna, sentar para comer algo e ver que já era tarde da noite, e ir dormir. Às vezes me sentia como em um “Euro Truck Simulator” medieval pela sensação de paz que me trazia.
Nada disso é exatamente novidade em RPGs, mas é a interação com o ambiente e a extrema atenção a cada ação, seja a animação de abrir uma porta ou de sentar em uma mesa, que dá maior “veracidade” a elas. Me peguei surpreso, por exemplo, com a importância dos ciclos de dia e noite de Kingdom Come – e não só na hora de atacar acampamentos com bandidos. Estava tão acostumado com Skyrim e outros RPGs onde você pode entrar na casa de alguém no meio da noite que eles magicamente levantam e conversam como se fosse normal, que ver um NPC resmungar que era tarde e que ele queria dormir estampou um sorriso na minha cara.
Quanto mais a fundo eu ia na história, na exploração do ambiente e no diálogo com outros personagens, mais sistemas e camadas de interação surgiam. Fui destratado por estar fedendo, nobres caçoaram das minhas roupas rasgadas, mas também fui olhado com suspeita por outros por não vestir as bandeiras do feudo ao qual uma cidade pertencia. Joguei roupas no chão para me livrar do peso extra e horas depois me deparei com um NPC vestindo-as por conta de serem mais “limpas” e “bem cuidadas” do que as dele. Após incontáveis horas de jogo, sequer vi tudo que Kingdom Come tinha a me apresentar. Usei pouquíssimo de alquimia, mas vi amigos contarem histórias mirabolantes sobre como eles resolveram o mesmo problema do acampamento de bandidos, mas com o envenenamento de alimentos ou da água. “Não passou pela minha cabeça essa possibilidade”, era a minha resposta mais comum.
Retorno mais uma vez ao incrível artigo de GB Bruford sobre como o STALKER resolve os problemas que a maioria dos jogos de “survival” ainda sofrem para solucionar. Poucos games tem tantas mecânicas estruturadas de forma tão coesa quanto o jogo da GSC Gameworld, e é essa a qualidade que atribuo a Kingdom Come: Deliverance. Se você pensou em uma solução para uma quest que remotamente poderia funcionar no período histórico, acredite, vai funcionar. Mesmo que não ocorra da maneira que previu, ou você tirou um bom aprendizado disso ou melhorou uma habilidade que pode te ser útil no futuro. É bom ver um jogo que, mesmo tendo mais de 80 horas de jogo, não faz esse tempo ser desperdiçado.
Uma pena que essa ambição da Warhorse em explorar e desenvolver todo sistema possível com um imenso apreço venha com um custo um pouco alto: bugs. Não falo daqueles onde o cavalo fica preso em alguma área do mapa ou algum problema no sistema de combate; estes eu relevo sem a menor dor de cabeça. Falo de ter de restaurar saves de doze horas atrás por uma quest não ser ativada, ou por um personagem não estar no local demarcado e ter de reiniciar o jogo cinco, seis, sete vezes até que ele apareça. Cada diálogo é interrompido com uma tela de carregamento, até mesmo na versão de PC instalada em um SSD. Vi personagens ficarem sem cabeça e em dado momento eu tive de restaurar um save de doze horas atrás pois o jogo decidiu que não ia me deixar conversar com mais nenhum personagem e, por algum motivo, o bug afetara também todos os outros sete saves anteriores. Se isso não é uma prova do quão paciente eu sou, não sei o que é. Isso dito, as atualizações do jogo são frequentes, e os devs parecem empenhados em corrigir os problemas observados; com isso, há uma grande chance de Kingdom Come: Deliverance ser um jogo muito mais polido em alguns meses.
Inconsistente, problemático ou não, Kingdom Come: Deliverance – na atual conjuntura de games – é praticamente excepcional no que faz. Resgatou das minhas memórias de STALKER até os tranquilos trajetos de Euro Truck Simulator. Merece ser apreciado e parabenizado pela sua interconectividade de sistemas, a complexidade no combate e o quão “humano” ele consegue ser com algumas de suas quests. É fantástico, belíssimo e marcante.
Kingdom Come: Deliverance
Total - 8.5
8.5
Mesmo que um pouco ambicioso demais para o seu próprio bem e com uma história previsível, Kingdom Come: Deliverance ainda é um RPG excepcional na sua integração de mecânicas e sistemas com a sua ambientação, em prover um tom mais “pé no chão” para seu protagonista e quests secundárias, e maravilhoso para quem gosta de apreciar um belo cenário. Imperdível para fãs de RPG.