“Bem, é isso, seis horas de jogo jogadas no lixo” — eu disse, enquanto levantava do computador. A pessoa do meu lado, estupefata — pois até então eu estava amando “Jagged Alliance 3” (Steam). Foi então que eu expliquei o conceito do modo “ironman” e o único save. “Por que você escolheu isso então?” “Por que eu me odeio, eu acho”, foi a minha resposta. Escolhi pois não acreditava que o jogo seria capaz de chegar aos pés de seu antecessor, e como eu estava errado nisso.
Superficialmente, “Jagged Alliance 3” pode parecer o seu típico jogo tático: comande uma equipe de mercenários, use furtividade, posicionamento e outras tantas ferramentas para derrotar o oponente. Para quem vive em uma era pós XCOM (2012) ou Phantom Doctrine (2018) isso pode ser até algo “comum”, mas é aí que está a pegada. A franquia “Jagged Alliance” nunca foi comum e é esse um dos grandes motivos pelo qual “Jagged Alliance 2” ainda é reverenciado e celebrado como um dos melhores jogos táticos.
Onde ambos os jogos citados acima podem ter alguma similaridade, “Jagged Alliance” sempre foi um passo além, e por incrível que pareça isso continua sendo verdade na terceira versão do game (na verdade a sexta versão, isso se não contarmos as dezenas de spinoffs e tentativas fracassadas de reviver a franquia). Onde jogos trazem protagonistas com diferentes habilidades, “Jagged Alliance 3” entrega personalidade, diferentes atributos e traços que os tornam únicos.
Como é tradicional da franquia, você é mais uma vez contratado para tentar retomar uma presidência roubada após um golpe de estado — neste caso a região de Grand Chien, que não é nada mais do que uma gigantesca alusão para a África. Veja bem, nada sobre Jagged Alliance 3 é exatamente politicamente correto ou moralmente ambíguo. Você comanda um grupo de mercenários — que, mais estereotipados, impossível. O seu dinheiro é pago com diamantes de sangue, e seus inimigos podem ou não ter direito oficial sobre a terra. O que importa no fim do dia é completar a sua missão e sair vivo.
Para que isso de fato aconteça, o jogo atua em duas camadas: uma operacional e outra tática. Na primeira camada você move as suas tropas por nódulos em tempo real e administra os seus recursos. Suas ações nesse modo vão de gerenciar as suas contas, a contratar novos mercenários que são pagos por um contrato que varia de 1 até 14 dias, ou treinar milícias locais, ou reparar ou melhorar seu equipamento e navegar as suas equipes pelo mapa.
Devo enfatizar o absurdo nível de personalização garante que nenhum mercenário é igual ao outro, incluindo atributos, habilidades e personalidades. Alguns irão até se recusar a trabalhar com outros por conta de ideologias diferentes. Aliás, dizer que “Jagged Alliance 3” exagera nos estereótipos é ser bem, mas bem generoso. A Haemimont podia ter diminuído um pouco o humor grotesco ou seguido outro caminho e o jogo não perderia a graça.
A melhor comparação que eu posso fazer é imaginar um mapa da franquia “Total War” — mas separado em quadrados — que corre em tempo real. A camada estratégica permite a você completar objetivos na ordem que quiser, ou perder a campanha de forma miserável.

Já a tática, se é que eu posso chamá-la apenas disso, é usada para navegar pelos mapas do jogo em si, explorá-los caso não esteja em combate, defendê-los ou atacá-los caso estejam dominados pelo inimigo. Nada disso soa exatamente inovador, mas “Jagged Alliance 3” faz de tudo para elevar essa área para novos patamares.
Cada quadrado do mapa equivale a um campo de batalha, uma cidade, um local que tem as suas próprias peculiaridades. Nenhum mapa em “Jagged Alliance 3” é procedural e as suas ações nele serão repercutidas ao longo da campanha que pode durar até 50hrs.
“Mas Lucas, isso não torna o jogo repetitivo?” Pelo contrário, caro leitor. A Haemimont Games se certificou de que cada mapa, cada cenário e cada possibilidade estivesse contabilizada. “Jagged Alliance 3” usa e abusa da verticalidade, algo que seu antecessor não era capaz de fazer. Condições climáticas afetam todas as áreas de uma batalha — da mira dos seus mercenários à visibilidade deles e dos inimigos, ou mesmo o funcionamento de armas.
A cada área que você pode imaginar “Ah, mas a Haemimont Games não pensou nisso” — mas ela pensou. Tudo bem que a base da jogabilidade já tinha sido estabelecida por “Jagged Alliance 2”, mas o fato de que a desenvolvedora conseguiu modernizá-la sem perder a sua essência já é um triunfo por si só.

Só o aspecto tático de “Jagged Alliance 3” possui camadas e camadas, e mais camadas ao ponto de ser completamente desnorteante para um novo jogador. O disparo de uma arma não é um mero disparo, mas sim a combinação de uma série de fatores que entram em jogo. Qual mercenário está usando a arma, qual a sua precisão? Como está o clima? Que tipo de munição é usada? Qual a distância? Qual parte do corpo você está tentando acertar? Qual o estado da arma, ela tomou muita chuva ou não foi limpa na última semana? Entender esses conceitos é o diferencial entre acertar um tiro ou ter a sua equipe completamente eliminada.
Foi bem o caso que aconteceu que me fez escrever a frase no início do artigo. Quem pensa em uma missão especial ou um ponto crucial do jogo está errado; era para ser uma conquista territorial de rotina. Uma mina de diamantes, mais um dinheiro no bolso, e mais uma chance de contratar mercenários.
Ao invés de seguir o meu instinto, que é fazer um reconhecimento da área e ver o melhor ponto de inserção, eu decidi ser afobado. Muito dinheiro em caixa, muita confiança, muitas missões vitoriosas. Coloquei meus mercenários de qualquer jeito no mapa e já parti para a captura.
Não tardou para eu descobrir que a lateral da mina estava ironicamente lotada de…minas. Uma foi suficiente para tirar um dos meus seis mercenários do mapa — literalmente, já que, uma vez mortos, eles estão fora da campanha para sempre. O barulho alertou os guardas que não só foram investigar como encontraram a minha equipe inteira sem proteção alguma.

Duas ou três rajadas de metralhadora os colocaram sob supressão, com um deles sendo ligeiramente atingido na perna e tendo seus pontos de ação diminuídos por três turnos. Eu estava sem saber o que fazer, embasbacado com o quão rápido uma missão que era para ser algo típico podia virar um pesadelo.
Eu dei o meu melhor, reposicionei os meus mercenários como conseguia, usei todos os explosivos possíveis mas, por conta do clima que não ajudava em nada devido a neblina, algumas granadas foram parar muito longe da localização original. Com muita perseverança eu fui conquistando pedaço após pedaço da mina até o último guarda ser eliminado com uma bela rajada de metralhadora.
O saldo? Dois mercenários vivos. Agora eu não só teria que contratar outros mercenários, como também usar todo o meu dinheiro restante para tentar renegociar o contrato dos outros dois que não estavam nem um pouco contentes de terem sido levados para uma das piores armadilhas do planeta.
Não passaram três dias de jogo e minha conta, antes repleta de dinheiro, estava próximo do zero. O contrato com os quatro mercenários restantes ia acabar e eu não teria uma equipe para avançar a campanha. Seis horas jogadas no lixo, das outras tantas que eu joguei ao longo de “Jagged Alliance 3”.

Ironicamente, isso é o que me faz gostar ainda mais dele. Ele espera que você falhe. A própria tela inicial já avisa que ele é um jogo difícil e que mesmo no modo mais “fácil” as chances de perder uma campanha são altíssimas. Esse também acaba sendo um dos pontos mais fracos dele; ele é um jogo de táticas feito por fãs de tática para fãs de tática.
O tutorial dele é asqueroso ao ponto de ser composto de dois ou três cenários com o mínimo de informação possível e as situações mais óbvias possíveis. O que acabou até mesmo afetando a minha partida em co-op online, outro modo masoquista para se jogar “Jagged Alliance 3”.
Eu já tinha total experiência no jogo já que, afinal, eu jogo “Jagged Alliance 2” rigorosamente desde 2000 e pouco. Meu colega sequer tinha tocado no jogo e sua experiência era mais focada nos jogos que usam o modelo XCOM (2012). A maioria das sessões eram um misto de metade eu explicando alguma mecânica obscura que o tutorial não cobriu ou uma tooltip que a Haemimont deixou pela metade.
Tudo bem que isso foi compensado por situações absurdas, como meu colega colocando um de seus mercenários atrás de uma fileira dos meus mercenários, liberando o dedo na metralhadora com aquela cara de “confia” e matando todo o meu esquadrão com fogo amigo. Todavia, isso deveria ser ocasional e uma questão de coordenação entre os dois jogadores e não a ausência de uma mecânica. Para quem já é veterano de jogos de estratégia, pode se preparar para ao menos uma campanha com a densidade e complexidade de coordenação comparável com Divinity Original Sin 2.
Existem outros tantos erros que também diminuem um pouco a experiência, como é o caso da câmera que não se adequa tão bem à verticalidade proposta pela “Haemimont”, mas sinceramente? É mais questão de se acostumar do que algo que vá de fato te impedir de jogar “Jagged Alliance 3”.

Ainda é uma sensação estranha estar jogando um novo “Jagged Alliance” em pleno 2023. Eu passei anos sendo decepcionado por dezenas de tentativas de reviver a franquia. Não sou alguém que vive de nostalgia, e tenta evitar de ser fisgado por ela. Para mim a franquia tinha acabado em 1999 e eu tinha feito a paz com isso até agora.
Pode ser que “Jagged Alliance 4” — se ele existir — só dê a cara de fato daqui a outros 24 anos. Pode ser que o terceiro jogo da franquia seja de fato o último, mas só a noção de que eu tenho um novo “Jagged Alliance” para jogar, e com um suporte dedicado para mods e uma comunidade vibrante como nunca antes vi renascer das cinzas, eu sei que vou ter um jogo excelente pelos próximos 24 anos. Se ele supera o suprassumo de 1999 eu não sei responder, mas ao menos tenho a certeza de que “Jagged Alliance” finalmente está de volta, e ele não poderia ter chegado em um momento melhor da minha vida — eu não poderia estar mais feliz.
Para os futuros mercenários, desejo sorte na empreitada. A jornada é dura, árdua, cheia de empecilhos, mas vale a pena demais. Para quem já está calejado de tanto apanhar, bem-vindo de volta ao caos e ao inferno. Vamos nos abraçar, ver nossas campanhas colidirem e desabarem. Rirmos e chorarmos com nossos erros, xingar a IA por ser extremamente perspicaz. É isso que faz “Jagged Alliance 3” e eu não trocaria isso por nada neste mundo.
Jagged Alliance 3
Total - 9
9
A Haemimont Games tinha uma tarefa extremamente difícil de tentar superar o clássico de 1999. Se “Jagged Alliance 3” consegue ou não só o tempo irá dizer, mas por si só é um dos melhores — se não o melhor — jogo de táticas lançado em 2023. É um daqueles de colocar na biblioteca e ter a certeza de que uma, duas, cem campanhas serão jogadas ao longo dos anos e, tal como seu antecessor, vai parecer fresquinho como se tivesse saído da embalagem mesmo muito tempo depois.