“O ‘não’ você já tem, não é mesmo?”, disse para mim uma amiga, enquanto nós andávamos de patins. Ambos inexperientes. A última vez que eu andei foi em 1998 e agora tentava repetir o ato sem me estabacar em 2024. Eu caí duas vezes, machuquei a minha mão. O que a surpreendeu foi a minha rapidez em levantar e parecer não me “importar” com a queda. O que ela não enxergou foi a minha incerteza, minha dúvida, o “será que eu estou fazendo a coisa certa?”. Em esferas e contextos diferentes, isso diz muito também a respeito de “INDIKA” (Steam / PlayStation 5/ Xbox) e às questões levantadas pela Odd Meter.
Eu não quero, sequer ouso, colocar no mesmo patamar a minha tentativa patética de andar de patins com a jornada da freira de uma igreja ortodoxa por uma Rússia tomada pela guerra onde o conceito de território, aliança, lealdade são no mínimo turvos. Mas, acredito que qualquer um em algum ponto da vida fez uma ação e “torceu” para que fosse a coisa certa. O ato de torcer pode tomar muitas formas e nomes, mas para Indika a sua âncora é sua fé. Uma fé muitíssimo abalada e tão complicada de se entender quanto os ambientes que ela navega por sua jornada.
A Odd Meter não esconde o seu desprezo pela religião do jeito como ela é propagada pela igreja Ortodoxa, ainda mais no Séc XIX, onde a perseguição de outras religiões e grupos minoritários prevaleceu por décadas. Indika é só mais uma engrenagem desse sistema que pega culpa e transforma em transgressão religiosa, um ato contra Deus.
O foco de “INDIKA”não é questionar se existe ou não um Deus, ao menos não diretamente. O Céu e o Inferno estão muito bem “delineados” na cabeça da protagonista, tal como definido pelos dogmas da igreja Ortodoxa. E, por conta desses dogmas, ela começa cada vez mais questionar suas ações.
Bem no início do jogo, Indika decide continuar a sua jornada ao lado de um soldado desertor. O mesmo soldado que momentos antes havia apontado uma arma para ela e praticamente a sequestrado para fugir do exército. Seria isso piedade? Seria ela, por esse ato, absolvida de seus “crimes”, “punições”? Poderia assim “receber o perdão de Deus”?
Eu nunca tive muito contato com igrejas como instituição. Fui batizado na igreja Católica mas nada mais. Todavia, alguns anos da minha vida foram fortemente marcados por uma perseguição desnecessária de membros da minha família que abraçaram os ideais das igrejas evangélicas mais proeminentes no Brasil. As minhas ações eram as de um pecador, a minha própria existência, um pecado.
Por mais que eu tenha resistido — e acredito que resisti muito no período — é difícil não se questionar se você de fato é um “pecador” ou não. Meu questionamento veio na forma de culpa, de sentir que se eu deixei de agir em alguma questão específica, eu fui o culpado.
Os curtos anos assombram a minha vida até hoje. A própria confecção desse texto foi uma tarefa árdua para mim, pela dificuldade de olhar para Indika e ver ali de uma forma ou outra refletida um pedaço da minha vida que eu queria esquecer. Posterguei o máximo que pude para transformar os meus pensamentos em palavras. E, quanto mais demorava, mais o sentimento de culpa aumentava.
É doloroso o quanto você se sente inferiorizado por conta de traumas do passado e como você os absorveu, como você começa a ver o mundo distorcido pelo sentimento de culpa. Tudo aparenta ter um tamanho muito maior. Uma tarefa simples vira uma montanha a ser escalada. Um e-mail, uma ligação, tortura.
São pouquíssimos jogos que conseguem refletir tão bem essa sensação como Indika consegue. A Odd Meter abraça um tom quase surrealista em certas partes da jornada da protagonista onde muitos podem até falar “isso não faz o menor sentido, por que essas proporções?”. Ora, porque é assim que “enxergamos” o mundo.
Por que uma fábrica toma proporções enormes? O ato de caminhar em uma ponte vira um labirinto. A entrada e saída de casas vira quase como uma casa de espelhos? A Odd Meter não esconde o seu profundo interesse em demonstrar ambientes que muitos julgariam bizarros sob uma lente lógica, mas eu não consigo evitar de olhar para o lado emocional e pensar: “É, é bem assim que eu me senti quando me pediram para fazer tal coisa por conta de religião”. As minhas memórias são tão distorcidas quanto os cenários de “INDIKA”.
Devo apontar, no entanto, que muitos dos questionamentos e propostas demonstrados por “INDIKA” não são novos em jogos. Eu perdi conta de quantas vezes jogos me apontaram que há mais do que “preto no branco” e que “nada é o que realmente parece”. O que a Odd Meter faz, no entanto, é quase singular na sua aplicação. Ele coloca a proposta na mesa mas a deixa em aberto para você pensar sobre a sua própria vida e atos.
Não há, nem nunca vai haver uma resposta “correta” em relação ao que é certo ou errado. “INDIKA”demonstra extremamente bem que tudo parte de circunstâncias. Até o próprio desgosto da igreja Ortodoxa — um ponto central que é utilizado pela desenvolvedora para melhor explicar o ponto de vista da protagonista, e de onde surgem as questões de fé e “culpa” — não termina vilificado.
É um ato muito contrário a um projeto como “Lucah: Born of a Dream”, que questiona a posição da religião de forma tão intensa quanto a Odd Meter, mas atua como juiz, júri e executor. Eu disputo a decisão da desenvolvedora “melessthanthree”? De forma alguma. Como disse acima, tudo é questão de circunstâncias, e eu não duvido que “Lucah: Born of a Dream” tenha sido produzido de um ponto de vista de dor. Uma dor que eu conheço muito bem por conta da minha curta experiência com a instituição da igreja. E, se algo, nós sabemos a dor que carregamos, como a interpretamos e abraçamos – cada um de nós.
“INDIKA” quer que você comece essa conversa consigo mesmo. Será que tudo que é “bom” de fato é “bom”? Até que ponto você é formado pela sua vivência, e até onde você deixa ser influenciado por ela? Quantos dos seus sonhos foram apagados ou minimizados por quem você decidiu se tornar baseado na experiência de outros? Você está preparado para esse diálogo?
O título da Odd Meter pode receber dezenas, centenas de adjetivos. Ousado, bizarro, confuso, desnecessário, superficial, ridículo, exagerado, pomposo, inflado, ridículo. Eu o chamo de franco.
É muitíssimo provável que ao jogar você não o veja sob a mesma lente que eu, que o seu reflexo no espelho não seja tão distorcido quanto o meu, que “INDIKA” acabe como só mais um “jogo onde você anda e nada acontece”. Reitero meu ponto de não julgar e também não dizer que seu ponto não é válido. É um título de poucos para poucos. Mas, se você conseguir ser tocado pela mensagem, ou começar um diálogo interno sobre toda a perspectiva que o jogo mostra, ele vai virar o seu mundo de cabeça para baixo.
INDIKA
Total - 10
10
A Odd Meter sabe muito bem que “INDIKA” não vai atingir todos da mesma forma. Ele é franco em seu diálogo sobre religião, culpa, o “certo” e o “errado”. Nem sempre aponta dedos, mas também não julga as decisões de cada um. Os seres humanos são complexos, tal como os temas tratados pelo jogo. Não há como estabelecer um ponto de partida ou um ponto de chegada. Ele começa como termina, com uma porta aberta. Cabe a você decidir se está pronto para atravessá-la ou não. E, se você conseguir, ele vai te marcar por um bom tempo. Quem sabe, para sempre.