Um tempo atrás você teria muitíssima dificuldade de me convencer que a Mattel iria lançar um jogo de Hot Wheels competente, quanto mais um desenvolvido por ninguém mais, ninguém menos que a Milestone. Uma desenvolvedora que eu respeito, mas que seus jogos costumam me deixar na mão em termos de jogabilidade. O que fez com que Hot Wheels Unleashed (Steam / Xbox / Playstation / Switch) desse certo? Eu tinha apontado uma possível resposta nas minhas primeiras impressões, mas agora com o jogo final em mãos, eu tenho uma melhor noção do que pode ser considerada a combinação perfeita entre um tema e uma desenvolvedora.
Por anos a Milestone se posicionou muito bem em um elemento: criar jogos arcade. Ride 4, WRC 7 e 8 são bons jogos para quem busca uma corrida leve e “relaxante”. Todavia, ambas as franquias não atingiam as expectativas do público que progressivamente queria algo mais “realista” ou um meio termo. Havia variedade nas motos e veículos, mas quando comparado com a “realidade”, deixava a desejar.
Eu só posso imaginar que Hot Wheels Unleashed foi um imenso quadro branco para a empresa recomeçar e repensar múltiplos aspectos do seu processo de desenvolvimento. Assim como apontei nas minhas impressões iniciais, até então o único jogo recente que tinha algo relacionado a Hot Wheels era Forza e eu nunca me dei muito bem com o “choque” entre o realismo dos carros e as pistas mirabolantes. É aqui que a Milestone usa sua carta-chave, a jogabilidade.
Por mais que existam pistas mirabolantes — e também um incrível editor de pistas no qual eu vou entrar mais a fundo em breve — os veículos são a maior atração do jogo. Por menor que seja, cada um tem a sua própria identidade e estilo de pilotagem. Uns usam boosts específicos, outros são muito melhores nas curvas, enquanto outros — como um ônibus — ainda não sei a razão de estarem no jogo, mas divertem. Mesmo que tudo desse errado em Hot Wheels Unleashed eu ainda o manteria na minha biblioteca só para poder revisitar os carros.
O seu principal atrativo é a “campanha”, simples em natureza mas direto ao ponto. Você tem um conjunto de eventos que vão de corridas a batalhas contra “chefões” e “time trials”. Vença esses eventos e você ganha engrenagens que podem ser usadas para melhorar certos carros, novos materiais de personalização, e mesmo uma “caixa secreta” contendo um novo carro. O conteúdo aqui em si é enorme; com exceção de time trials, eu não me lembro de ter visto nenhuma pista repetida. Hot Wheels Unleashed continua a jogar desafios na sua cara e às vezes você tem que lutar para acompanhar a quantidade de coisas que estão disponíveis — e falo isso com um sorriso na cara.
Pois ao invés de escolher apenas um veículo como eu tendo a fazer em jogos de corrida arcade, cada pista tinha uma peculiaridade que tornava pilotar certos carros e ainda chegar em primeiro lugar um pouco inviável. A IA no geral é um tanto brutal e não vai hesitar em te jogar para fora da pista caso veja uma oportunidade, ainda mais em rotas que são segmentadas por desvios ou loops e veículos de grande porte. Pode rolar um pouquinho de frustração? Pode, mas o tempo de carregamento (ao menos na versão PC) e grande parte das corridas tendo só três voltas me impede de sentir algo além de “ah droga, como errei essa curva?”. Isso sem contar que ser jogado para fora da pista por um caminhão de lixo me faz soltar gargalhadas.
Quanto mais eu me aprofundava nas mecânicas de Hot Wheels Unleashed e via as variedades de veículos, mais eu me interessava em testar um ou outro, ou me desafiar a completar uma corrida com o “pior” da lista. Se algo, isso é algo que eu gostaria de ver em mais jogos de corrida arcade — por mais minúsculo que esse subgênero seja atualmente. Breves exemplos como Horizon Chase Turbo raramente me propuseram a jogar algo fora da minha zona de conforto, enquanto Hot Wheels Unleashed sempre estava lá “ei, que tal esse carro? Você pode tentar jogar com ele, a direção dele em curvas fechadas é melhor, o seu boost é diferente e o drift dele é mais eficaz. Quem sabe você não acerta aquela curva que errou nas últimas quinze tentativas?”.
Mas me debruçar sobre toda a minha história com a campanha e os diversos carros de Hot Wheels Unleashed seria contar apenas uma parte do que o tornou especial para mim. A cereja no topo do bolo foi o editor de pistas e editor de carros.
Acho que já não é de hoje que eu falo que eu não sou uma pessoa criativa (e eu conduzo um site inteiro praticamente sozinho, vai entender). Eu luto bastante com jogos de sobrevivência ou qualquer jogo que me peça para ser competente de um ângulo artístico. É uma daquelas habilidades que eu queria ter desenvolvido quando era mais novo, mas só agora estou conseguindo. Ver que as ferramentas de edição de Hot Wheels Unleashed são tão simples de usar foi um grandíssimo incentivo para eu tentar a sorte.
Foi de “ah deixa eu ver como funciona” para fazer dezenas de modificações no meu Honda S2000 (um dos meus carros prediletos) e enviá-las online. Todo o sistema é bem simples de usar, com cores e materiais distintos para cada parte do carro. Sei que pode soar “besta” ficar tão maravilhado com uma mecânica dessas, mas como alguém que se sentiu apavorado com o sistema de personalização de Forza Horizon enquanto ficava maravilhado com a criações dos outros, é bom ter um jogo que me permita ter acesso a esse tipo de ferramenta sem me embaralhar em dezenas de tutoriais.
Carrego esse mesmo elemento para o editor de pistas, outro que eu desde antes do lançamento torcia para que fosse simples de usar. Dito e feito. Construir uma pista competente não demora mais do que alguns minutos e as ferramentas de edição de certas partes dela são muito bem mapeadas para o uso de controle, o que é um alívio, já que eu imagino que grande maioria dos jogadores venham dos consoles e não de PC. Ele não tem toda a robustez de ferramentas como o editor de Trackmania 2 ou até mesmo do mais recente Trackmania. Em contrapartida, ele não me força a pagar por uma assinatura anual para ter acesso a funções básicas. O que me traz para o principal e maior defeito de Hot Wheels Unleashed: a desnecessária presença de loot boxes — as “caixas secretas” que mencionei quando comentei sobre a campanha.
Eu olho muito torto para loot boxes em jogos free-to-play, mas “entendo” a necessidade de mantê-los gerando lucro, já que somos reféns do capitalismo e a maioria das editoras querem que seus lucros trimestrais dobrem ano a ano. Agora, em um jogo como Hot Wheels Unleashed, que custa no mínimo R$109,09 e ainda tem um passe de temporada, é inadmissível.
Por mais que eu aponte que em momento algum o jogo me impulsionou a comprar loot boxes — além do que, até o momento, eu não vi nenhuma opção para comprar com dinheiro real, apenas com dinheiro obtido das corridas — é um sistema patético. Por que me dar uma lootbox e a chance de um carro repetido ao invés de… me dar o carro como recompensa por ter ganhado a corrida?
Introduzir loot boxes em um jogo, querendo ou não, traz mudanças profundas no seu design. O sistema de melhorias para os carros com o uso de engrenagens é muito mais árduo do que necessário. Ganhe todas as corridas ou espere ganhar um carro “repetido” nas loot boxes e desmontá-lo.
Esse tipo de design predatório me preocupa tanto pela horrível regulamentação de loot boxes em um âmbito global como pelo risco de que um belo dia a Deep Silver ou a Mattel possa olhar para Hot Wheels Unleashed e falar “quer saber? O jogo não está mais tão rentável quanto no seu lançamento em 2021, então vamos abrir uma loja in-game com dinheiro real”, sendo que já é sabido que carros especiais — como o do Batman e o “De Volta para o Futuro” — podem não estar inclusos no passe de temporada.
Se a dificuldade de não ser impulsionado a comprar loot boxes e todo o “Fear of Missing Out” (FOMO) é duro para um adulto ou pessoas com tendências impulsivas, imagine para uma criança. E, não existe uma opção de desativar ou impedir a compra de loot boxes por meios oficiais dentro do jogo. Estamos em pleno 2021, não há e nunca houve espaço para esse tipo de mecânica em jogo, não importa se ele vem de uma empresa gigante ou uma empresa minúscula. É predatório e ponto.
Uma grande pena, pois eu continuo a recomendar Hot Wheels Unleashed para todo tipo de jogador. É um dos jogos arcades mais divertidos em que eu pus as mãos em 2021 e o grau de personalização presente é imensurável. Ao mesmo tempo, eu não consigo lidar com uma possível sombra de que daqui a um ano ele vire uma máquina de fazer dinheiro para a Mattel, ou seus servidores sejam desligados.
A Milestone pode ter demorado anos, mas ela encontrou um tipo de jogo que “conversa” com o seu estilo de desenvolvimento; eu desejo o melhor para a equipe e é possível ver o suor que cada um dos membros da empresa investiu na criação de Hot Wheels Unleashed. Se você não se importa com loot boxes ou achou tudo o que eu falei uma grande baboseira, vá em frente e compre-o sem culpa na consciência.
Eu aguardo que meus medos sejam infundados, mas a indústria de jogos já me deixou decepcionado muitas vezes. O que é mais uma na lista de decepções?
Hot Wheels Unleashed
Total - 7.5
7.5
Hot Wheels Unleashed é a Milestone encontrando o seu nicho e desenvolvendo um dos melhores jogos de corrida arcade do ano, e sem dúvidas o melhor jogo da franquia Hot Wheels em muito tempo. O preço disso? Uma campanha que poderia ter sido melhor elaborada e a presença insuportável de loot boxes. Se você não se importa com essa prática predatória, vá em frente, pois há muita coisa boa no jogo — como o editor de pistas, carros e a variedade na jogabilidade. Mas é impossível não olhar para ele e pensar que cedo ou tarde ele vai tentar extorquir cada centavo do seu bolso.