Interface draconiana, lista de inimigos mais complicada do que devia, heróis, dezenas de facções com nuances que demoram anos para decorar. Poderia muito bem estar falando das dezenas de jogos de estratégia com elementos de RPG que foram lançados entre os anos 90 e 00. Mas não, Hero’s Hour (Steam) é de 2022, e também o meu mais novo queridinho quando o assunto é “passar uma boa tarde vendo pequenos soldadinhos dando tapas entre si”.
A minha primeira interação com Hero’s Hour foi um anúncio anos atrás, sobre o jogo ser influenciado por Heroes of Might & Magic e com um sistema de “autobattler”. Na época, falei pra mim mesmo: “Rá, quero ver isso dar certo. A fórmula de Heroes of Might & Magic foi tão usada, reusada e reinventada que um sistema de autobattler não iria ajudar em nada”. Hoje, em 2022, escrevi este parágrafo mordendo a minha língua.
Anos atrás eu poderia muito bem sentar e jogar uma das dezenas de cenários de Heroes of Might & Magic III, seus mods, partidas online. Hoje em dia o meu tempo é mais curto e mais precioso. Eu ainda tenho espaço para Might & Magic e sempre terei, mas Hero’s Hour consegue suprir parte da necessidade que eu tenho de voltar para a franquia da finada 3DO — e atualmente nas mãos da Ubisoft — de uma maneira bem inesperada.
Tudo que diz respeito à essência de Heroes of Might & Magic — sejam heróis variados, inimigos com atributos passivos e ativos, exércitos cuja moral é impactada pela presença do herói, captura de recursos estratégicos, facções, administração de cidades — está presente em Hero’s Hour. A lista é, sinceramente, absurda. De acordo com o desenvolvedor Benjamin Hauer, são mais de 177 unidades e 99 unidades aprimoradas (versões melhores das unidades base). O número é maior do que Heroes of Might & Magic III, e começa a chegar no território de Dominions 5 / Conquest of Elysium 4 da Illwinter Games, outra franquia muito querida por mim.
A variedade de unidades e facções atua como uma faca de dois gumes para Hero’s Hour: alguém que tem experiência com Heroes of Might & Magic vai se sentir em casa no minuto que começar a jogar Hero’s Hour. Quem sequer encostou na série — ou quem não tem paciência para aprender todas as mecânicas — é capaz de desistir nos primeiros 30 minutos.
Como eu estou na primeira categoria, iniciar uma partida de Hero’s Hour foi praticamente encontrar um antigo amigo com uma roupagem nova. Eu já sabia mais ou menos a quantidade de pontos de movimentação que você tem por dia, que as unidades do seu castelo só podem ser recrutadas novamente na próxima semana, e que eu teria que conquistar o máximo possível de recursos estratégicos o mais rápido possível. A escolha de facções também não foi difícil para mim; fui de cara em uma que se assemelha ao “Castle” de Heroes of Might & Magic. Unidades básicas como lanceiros e arqueiros me dariam uma boa noção de como o combate de Hero’s Hour iria se desenrolar.
Se eu mordi a língua quando pensei no quão errado eu estava em relação a Hero’s Hour ter um sistema de “autobattler”, mordo ainda mais por não cogitar o potencial dele. Ele não chega a ser totalmente automático; posicionamento das unidades, a opção de dar ordens para elas durante o combate, usar magias e interferir nos planos do oponente estão presentes. Mas o melhor de tudo é que ele é caótico e divertido sem perder a devida complexidade. Noções como “unidades maiores vão causar mais dano” se aplicam com facilidade ao jogo, mas dada a quantidade absurda de tropas que você tem ao seu dispor ao longo de uma partida, é essencial inspecionar o papel de cada unidade. Se toda essa complexidade é um prato cheio para mim, é provável ser demais para novatos.
Se por um lado Benjamin Hauer acerta em pegar os melhores elementos de Heroes of Might & Magic e aplicá-los em um contexto diferente, por outro ele esquece de adequar os mesmos para uma comunidade que pode não ter tido contato algum com a franquia. O tutorial, por exemplo, te dá instruções básicas de movimentação de tropas, gerenciamento de heróis… e mais nada. Para o que servem os baús, os diferentes tipos de recursos? Você que se vire para descobrir.
O mesmo vale para entender o porque diabos você perdeu uma batalha mesmo com um número maior de tropas e com qualidade melhor. Pode ser porque o herói inimigo era um necromante e tinha a habilidade de ressuscitar tropas ou converter as suas tropas para o lado dele. Ou que tinha um medalhão que faz isso, ou uma magia que ele obteve em uma das torres neutras do mapa. Variantes, variantes e mais variantes.
Para não dizer que Hero’s Hour não tenta, ele ao menos tem um robusto dicionário com dados de todas as facções, unidades, magias, e outros pormenores que podem ou não estar presentes em uma partida. Ele é acessível pelo menu principal ou durante uma partida e é um excelente apoio para quem já conhece o estilo de jogo — eu mesmo o consultei várias vezes. Mas, para novatos, é colocar uma fita crepe em um problema muito maior: o jogo precisa ter um tutorial simples, um tutorial intermediário e um tutorial avançado. No momento ele é muito dependente de tentativa e erro, ainda mais com mapas gerados proceduralmente.
Pergunte para algum fã de Heroes of Might and Magic, Age of Wonders ou Disciples o que eles pensam dos mapas gerados proceduralmente dos respectivos jogos. Eu vou chutar que a resposta vai ser “Ah… Então… na maioria são terríveis”, e eu assino embaixo. Age Of Wonders quase se safa dessa mas já gerou outros problemas, como um bug que tornava impossível de completar a campanha (já corrigido) Um ótimo exemplo é o texto de Tom Chick do Quarter to Three sobre a sua campanha em Age of Wonders: Planetfall. Esses jogos têm comunidades ativas em grande parte por suas mecânicas, mas também pela possibilidade de criar mapas personalizados.
Hero’s Hour também conta com a opção de criar mapas; seu editor, inclusive, é mais fácil de aprender a usar do que os de todos os jogos citados acima. Mas, a quantidade mínima de mapas oficiais significa que você vai gastar boa parte do tempo em mapas gerados proceduralmente. E olha, tem umas horas que parece que o algoritmo usado por Hero’s Hour te odeia.
Em outra partida que eu fiz com a facção “Decay” — o equivalente dos mortos-vivos de Heroes of Might and Magic — todos os pontos estratégicos da minha região eram protegidos por inimigos muito mais fortes do que eu. Qualquer investida seria inútil; meus esqueletos iam ser dizimados e meus zumbis iam morrer outra vez. Esperei três semanas para repor as minhas tropas e recrutar tropas melhores. Foi só eu me sentir vitorioso que o herói da facção oponente veio com um exército do tamanho do mundo, me deu um tapa, tomou a minha cidade, e eu perdi a partida.
Como isso aconteceu? Simples! O lado do oponente estava repleto de estruturas fáceis de serem capturadas. Enquanto eu estava sentado esperando novas tropas, ele estava conquistando o mapa. O efeito bola de neve chegou devastando tudo.
Eu fico dividido em relação a esses problemas da geração procedural. São decepcionantes? Sim, mas também sei que com o tempo eles sumirão, com mapas oficiais e melhorias no algoritmo. Agora mesmo há como mitigar os problemas ao escolher opções avançadas e ajustar parâmetros como a quantidade e a distribuição de estruturas ou inimigos neutros, e acabar com partidas excelentes. É uma solução temporária, mas funcional.
Por outro, eu adoro o caos gerado pela geração procedural, e como ele reforça a identidade de Hero’s Hour. É o mesmo caos que os visuais das batalhas passam: uma completa zona “organizada”. É ótimo para quem gosta de PVP local ou via remote play do Steam com um amigo ou amiga. Imagina entrar em um mapa e ver que seu oponente tem mais recursos que você? Hero’s Hour pode bem ser um “destruidor de amizades” ainda mais eficaz que uma partida de Uno.
Hero’s Hour aponta para si mesmo e fala: “Eu não nasci para ser competitivo nem quero ocupar esse lugar”. Ele tem um objetivo claro, que é transformar as partidas de Heroes of Might & Magic em algo menos sério, e em grande parte alcança esse objetivo. Quantas vezes eu não parei uma batalha para soltar um “Olha lá o soldadinho saltitando, ó, vai apanhar hein! Falei!”?. Depois de um King’s Bounty II terrível, um Disciples: Liberation com um sistema de combate mais lento do que uma lesma, para mim já basta.
Eu almocei e jantei Hero’s Hour, eu me debrucei no dicionário, descobri as ações de cada unidade, mexi com o editor — e planejo voltar a usá-lo o quanto antes para criar os meus mapas e compartilhar com a comunidade. Vi a geração procedural me sacanear e me presentear. Quantas vezes eu me irritei? Zero. Eu dava gargalhadas, e eu precisava muito dessas gargalhadas.
Ele mantém a curva de complexidade que me atrai mas não me força a fazer cálculos absurdos para descobrir se o dano de uma unidade vai ser maior do que a armadura de outra; me deixa recostar na cadeira e ver soldadinhos dando tapas em outros soldadinhos. Nota-se que Benjamin Hauer mirou em um público e acertou ele em cheio; o que ele precisa agora é aparar as arestas e lembrar que nem todo mundo já passou dos seus 30 ou cresceu jogando esse gênero no PC.
Hero's Hour
Total - 8
8
Hero’s Hour não esconde a clara influência de Heroes of Might & Magic, mas também não pede para que você o leve tão a sério. O seu sistema de combate é robusto, e a complexidade – para quem é íntimo da franquia que o originou – está lá. O que falta são melhorias na geração procedural de mapas, que eu imagino que venham com o tempo, e tutoriais avançados para novatos. Assim que essas arestas forem aparadas você vai ter um ótimo jogo para gastar muitas e muitas tardes.