Ser curioso tem lá as suas vantagens. Seja para entediar todas as pessoas da mesa do bar com uma anedota de uma batalha que ocorreu no Séc XVII — que não recomendo — ou para olhar para um jogo como “Hell Pie” e ir contra o seu instinto de que “Lucas, esse jogo não vai prestar, olha essa nojeira e essas piadas sem graça”. Parte da minha curiosidade estava certa; as piadas de “Hell Pie” (Steam / GOG) da Sluggerfly são assustadoramente sem sal. A outra parte não estava preparada para o que vinha pela frente.
Traçar paralelos entre “Hell Pie” e jogos como “Conker: Bad Fur Day” ou “Postal 2” — embora o segundo seja de um gênero diferente — é fácil. A maioria das piadas vão cair na categoria ame ou odeie. Piadas com cocô, seres bizarros e itens colecionáveis nojentos. Destaco o último ponto pois é toda a premissa do game: você é encarregado de coletar ingredientes para fazer o bolo de aniversário de Satã e isso te leva aos mais peculiares lugares — uma fábrica onde humanos são processados como alimento, uma baleia gigante que também serve como restaurante, o Céu (?!) e outros tantos “mundos hub”.
Você torceu o nariz com a ideia de humanos sendo processados como alimento? Eu também, mas aí eu lembrei que jogo Crusader Kings e meu senso de moralidade não é lá algo de que eu seja muito orgulhoso. As partes mais “violentas” de “Hell Pie” tendem a ser limitadas a explosões de sangue ou cocô. A Sluggerfly até tenta colocar algumas referências clássicas — como uma cena de Monthy Python, a qual duvido que alguém com menos de 25 anos vá reconhecer, e que me fez realmente questionar qual era o público alvo da desenvolvedora.
A mesma pergunta brotou ao ver a caracterização de muitos personagens. A Sluggerfly tenta dar um atributo “distinto” para o protagonista e os diversos demônios que trabalham nos escritórios do inferno (quem diria que o inferno seria um escritório? Pensando bem… é o ambiente perfeito), mas não se encaixa bem na proposta de “Hell Pie”. A exceção é Nugget, o querubim que carrega boa parte do jogo nas suas pequenas costas.
Eu tinha tudo para detestar Nugget. O cherubim não para de falar, comentar da roupa, comentar do local onde eu estou, ou que o prato de comida asqueroso o faz lembrar de batata-frita. A sua certa inocência e a falta de noção de que estávamos em um universo surreal só ajudou a sedimentar ainda mais a existência desse mundo. Além do que, ele é a minha arma contra inimigos. Se ele começasse a falar demais eu já dava uma boa esbofeteada no pobre coitado, mas sentia um pouco de pena toda vez que fazia isso.
Agora, se “Hell Pie” pode ter um humor terrível, as fases são tudo, menos o que este humor indica. No geral, prazerosas de serem navegadas, a Sluggerfly acerta o equilíbrio entre exploração e desafio. Uma forte influência de clássicos do gênero que vão de “Banjo Kazooie” até “A Hat in Time” podem ser sentidas ao longo das múltiplas áreas do jogo com um grande diferencial: cadência.
Uma pequena, mas preponderante crítica que eu tenho com “A Hat in Time” é a forma que o jogo distribui as suas fases. Entre em uma, complete o objetivo, volte para o mapa, selecione o mesmo hub para completar a próxima fase.
O design da Gears for Breakfast permite uma modificação mais “extravagante” dos mapas enquanto “Hell Pie” tem seus mapas relativamente estáticos e a maioria das ações é encontrada dentro das fases em si. Dou preferência ao que a Sluggerfly faz — e caso queiram jogar pedras virtuais, favor entrar em contato via email — pois sentia que eu nunca perdia o ritmo.
“Ok, completei essa fase, agora o que mais tem para coletar nessa área? Devo pegar mais cristais para liberar roupas? Ou quem sabe habilidades para o Nugget? Hmm, ainda não sei para que servem os gatos, mas eu vou coletá-los de qualquer forma”. Pulava de mundo em mundo com serena tranquilidade.
Espremia um horário dentro do descanso do almoço para concluir alguma tarefa que faltava em um dos mapas. Criava uma desculpa para mim mesmo — não sei o porquê— para jogar um tiquinho mais de “Hell Pie”. Podia ser uma partida de 10 minutos, de 20, de duas horas. O caminho “crucial” para completar o game não deixa a peteca cair no que diz respeito ao seu ritmo.
Opa, mencionei habilidades? Ah sim! Não poderia me esquecer. “Hell Pie” faz uso de um sistema de habilidades que são desbloqueadas à medida que você obtém itens específicos para “Nugget”. Tais habilidades vão de novas formas de explorar o mapa — como usá-lo como um “gancho suspenso” — a combinar combos, aumentar o alcance de escalar paredes, ou aumentar os pontos de vista.
É aqui que “A Hat in Time” e outros jogos do gênero acabam sendo superiores a “Hell Pie”. A Sluggerfly acaba sendo forçada a limitar o conteúdo-base com a noção de que a maioria dos jogadores não vai explorar os mapas para coletar esses itens. O design de certas fases, ainda mais perto dos momentos finais, sofre de uma tremenda “mesmice”. Os inimigos alteram pouco a sua forma, os elementos de plataforma não evoluem muito do primeiro hub — embora fique um pouquinho mais desafiador. A exclusão de uma árvore de habilidades em favor de uma progressão natural teria sido muito mais bem vinda por aqui.
Outra área em que “Hell Pie” deixa um tanto a desejar é a iluminação de certas áreas do mapa, que pode mostrar uma discrepância considerável de um local para outro. Tudo bem, quem me conhece sabe que eu não sou lá o melhor jogador de plataforma, mas há uma gigantesca diferença entre ter dificuldade de calcular a distância e não conseguir acertar a plataforma pois não há como identificar se você está ou não na posição correta. Não cria nenhum empecilho gigante, já que a frequência de checkpoints e a perda de gemas — usadas para liberar novos itens cosméticos — é pífia, mas não deixa de ser um tiquinho incômodo.
Mas, na visão geral, “Hell Pie” vai muito além do que se propõe. A Sluggerfly podia muito bem ter se escorado nas terríveis piadas e entregado um jogo com mecânicas horríveis, uma movimentação entediante e um mapas horrendos só para tentar esboçar uma piada do seu rosto no final (Alô Postal 4!). Ao invés disso eu ganhei um jogo que conquistou meu interesse e meu tempo, já que minha curiosidade e meu desejo para encontrar todos os itens secretos ainda está tão ativa quanto um mini-vulcão em erupção.
Ele ainda está longe de tirar o trono de “A Hat in Time” ou de um dos meus jogos de plataforma favoritos em recente memória: “Demon Turf” e seu spin-off”Neon Splash”. Mas, como alguém que já completou todos os jogos listados, devo dizer que fiquei um tanto cansado das 40h de “Demon Tuf”. Para mim um jogo de plataforma tem que ter o ritmo de “Pumpkin Jack” — nem tão longo demais mas nem tão entediante demais.
Chega a ser irônico que tanto “Pumpkin Jack” e “Hell Pie” sejam distribuídos pela Headup Games. “Hell Pie” é um bom meio-termo entre ter um jogo que não se prolonga demais e dá espaço o suficiente para você coletar o que quiser, no ritmo que você desejar, sem ter que investir metade da minha semana nisto.
Ah, a quem estou enganando? Você realmente acha que eu vou terminar esta crítica e não vou voltar a jogar “Hell Pie”? Que não vou desbloquear todos os itens cosméticos e explorar cada cantinho do mapa? Claro que vou! Se não fizer isso, provavelmente vou gastar um bom tempo tirando fotos de certos mapas para um projeto pessoal. A certeza é: vai ter muito, mas muito mais “Hell Pie” na minha vida.
Hell Pie
Total - 8
8
Ainda que perca um pouco de qualidade nos momentos finais, tal como poderia muito bem viver sem as piadas e referências sem graça, a fluidez da movimentação e os designs da maioria dos mapas de “Hell Pie” o tornam um deleite de ser explorado. Seja você alguém interessado apenas em seguir o caminho “crucial” ou um curioso, como eu, que quer encontrar todos os colecionáveis. Pode não superar clássicos como “A Hat in Time” e outros jogos mais modernos, mas merece a sua atenção.