“Por onde eu começo? Mas é tanta coisa para fazer. Será que eu dou conta? Será que eu vou falhar de novo?”. Olhei para a página em branco com o título “Hazel Sky” (Steam) por três semanas. A produção da Coffee Addict Studios é aquele tipo que não poderia ter vindo em um melhor — e um pior — momento na minha vida; no jogo, como na vida, havia momentos em que eu queria gritar e desistir de tudo, mas sabia que não era o certo a fazer. Deve ser o destino que fez com que esta situação da minha vida e o protagonista Shane batessem de frente.
“Hazel Sky” não hesita em mostrar a clara temática de luta de classes e o processo de amadurecimento e a decisão de Shane nos primeiros minutos iniciais de jogo. O protagonista, cujo destino é se tornar um engenheiro e se juntar a outros engenheiros na cidade de Gideon, está tão incerto sobre essa decisão quanto a cidade em si está incerta sobre seu futuro.
Esse paralelo de histórias, e tantas outras linhas narrativas que a Coffee Addict Studios segue com diferentes graus de sucesso, são contadas ao longo de três ilhas cuja beleza é enunciada pelas diferentes condições climáticas, a forma como o sol rebate na areia, as palmeiras e os animais que permeiam esses locais. Tal beleza — tão atraente e desejante para qualquer pessoa que tem uma ligação mais forte com a natureza, como eu — é interrompida pelo ruminar das máquinas, pelos objetivos de Shane em cada ilha (reparar um tipo de avião específico) e as dores que essa suposta paz esconde.
Quem optar seguir pelo caminho “essencial”, por assim dizer, vai se sentir como alguém em uma linha de produção. Vá ali, colete o objeto, volte para o equipamento e conserte-o. Se este loop de gameplay foi proposital ou não, não sei dizer, mas assim que completei a primeira ilha eu já me sentia sufocado.
“O que eu estou fazendo com a minha vida?”, perguntava para mim e para o próprio Shane como se ele pudesse me ouvir. Shane tinha uma grande aptidão para a música — um dos meus grandes prazeres que nunca desenvolvi devido a tantos motivos pessoais. Alguns dos momentos mais emocionantes de “Hazel Sky” para mim ecoavam mais forte quando Shane encontrava um violão e podia tocar uma música, cantar uma canção. Era um vislumbre de um futuro onde ele seguia o que o seu coração desejava ao invés de se tornar mais um grupo supostamente prestigiado, mas cujo prestígio é recheado por mentiras.
É nesta parte, mais ou menos por volta da segunda ilha, que a Coffee Addict Studios começa a tentar costurar as diversas linhas narrativas como se elas formassem uma bela imagem, mas algumas delas acabam virando pontos mal dados. A maioria dessas narrativas são contadas por livros ou outros objetos espalhados pelo mapa, e eu recomendo muito que você explore o máximo que puder para tirar o melhor proveito da mensagem que a Coffee Addict Studios está tentando passar.
Torci o nariz para várias mensagens que estavam descritas nos livros. Umas — confesso — por irem diretamente contra o que eu acredito no que diz respeito ao conflito de classes, e também pela forma como a desenvolvedora tenta usar elementos de realismo mágico para justificar o prestígio dos engenheiros. Ambas as correntes teriam funcionado se fossem mais aprofundadas — ao invés de meros livros espalhados na ilha — mas esse não é o foco de Hazel Sky, nem tampouco é o foco dessa crítica adentrar tais temas com mais profundidade.
Repito a mesma crítica para a “companheira de viagem” de Shane, Erin, cujas interações se realizam por rádio. A presença da coadjuvante soa como uma inclusão de uma voz “materna”, como alguém que está lá para reforçar que Shane não deve necessariamente seguir os caminhos que já foram traçados para ele. Salvo estas conversas, a sua presença mal é sentida em outras dimensões de jogo; e, outra vez, elementos místicos soam fora do escopo do que “Hazel Sky” está tentando realizar.
Ao menos um tema que é claramente sentido por toda a jornada de Shane é a ambição da Coffee Addict Studios. Embora não concorde com muitas decisões narrativas, o empenho da equipe brasileira é admirável. Os quebra-cabeças, por mais que sejam meios para um fim, se mantêm frescos o suficiente e não se tornam um empecilho que impeça alguém de contemplar a história.
Eu gostaria muito que certos elementos fossem mais fluídos como a movimentação de Shane, e outros pormenores como o transporte de materiais e a remoção de seções desnecessárias de plataforma. A equipe pode ter almejado um pouco grande demais, mas eu propositalmente faço uma vista grossa para essas questões de jogabilidade, já que a boa parte delas não afeta de fato a proposta principal de “Hazel Sky”.
Quando volto para o tema de Shane e a dificuldade de escolher o caminho que foi traçado para ele ou os seus sonhos, eu sinto — como espero que muitos sentirão — reverberar muito forte no meu coração. O período de lançamento do game foi um que eu considero, no mínimo, conturbadíssimo para mim. Quantas vezes eu deitei na cama, fechei os olhos e vi tantos caminhos dispostos na minha frente? Alguns mais seguros, outros cheios de perigos e empecilhos.
A própria criação do Hu3Br — e a minha contínua devoção ao site — é um caminho que eu escolhi para mim mesmo, mesmo com outras tantas pessoas dizendo “Lucas, não faz isso, não vale a pena”. E eu mesmo repeti em 2017, 2018 e 2019 a frase “Para mim já chega, eu não consigo mais”. Porém, cá estou, seguindo o que eu decidi fazer da minha vida, com o meu tempo livre. Faço porque acredito que alguém, em algum lugar, vai ficar feliz com o que eu escrevo. Alguém vai acordar e ficar entusiasmado que alguém do Brasil produziu uma matéria sobre um jogo de nicho que sequer teria espaço em outros veículos.
E eu, tal como “Hazel Sky”, estou muito longe de ser perfeito. Se fosse, eu teria publicado essa matéria em muito menos tempo. Porém, se a tivesse publicado, estaria repetindo o “caminho crítico” do jogo — refletindo problemas e apontando outros. Crítica é muito mais do que isso. Tal como Shane, não é isso que eu quero para a minha vida.
É com esse pensamento em mente que eu falo que eu não fiquei feliz com o final de “Hazel Sky”. Entendo o que a Coffee Addict tentou fazer — e não vou mencionar obviamente por questões de spoilers — mas sinto que ele poderia ter sido muito mais trabalhado se o tecido que a desenvolvedora começou a fazer no início da trajetória do game estivesse mais bem finalizado em termos de narrativa.
Quando terminei o jogo pela primeira vez, senti um gosto amargo na boca, aquela acidez do estômago subindo goela acima; raiva. Poderia colocar outros adjetivos para amenizar a porrada, mas não, era raiva mesmo que eu estava sentindo.
“Como eles ousaram fazer todas essas alusões para nada?!”, “O universo de Gideon é muito mais interessante nos livros do que eu vi em ‘Hazel Sky’. Qual diabos foi o propósito disto? Por que não exploraram mais detalhes da cidade e da sua construção ao invés de me colocar no meio do caos?”.
Três semanas se passaram, a raiva deu lugar para a compreensão, para a empatia, tanto comigo quanto com Shane. E assim vi que a premissa principal de “Hazel Sky” não havia sido tão comprometida quanto eu imaginava. Há períodos na vida em que você é jogado em meio ao caos, que ela vai te mostrar caminhos supostamente seguros, outros nem tanto e no fim cabe a você decidir. Shane tomou uma direção, eu tomei outra e está tudo bem.
Mesmo diante de tantos deslizes temáticos e trajetórias que prometem algo e em teoria não dão em lugar algum, “Hazel Sky” merece ser jogado com um olhar de quem vê uma peça que pode vir a contrariar alguns dos seus valores ou até mesmo forçá-lo a repensá-los. A Coffee Addict Studios fez um belo trabalho de criar um universo rico, e eu espero que ela venha visitá-lo no futuro.
É aqui que as nossas jornadas seguem caminhos distintos. Eu, o crítico, finalizo o texto e aguardo ansiosamente a próxima iteração da desenvolvedora. O que eles farão? Não sei, mas pela multitude de emoções que “Hazel Sky” me fez passar, eu estou mais do que disposto a mergulhar mais uma vez — doa a mim ou não.
Hazel Sky
Total - 8
8
“Hazel Sky” tropeça, se estabaca, tenta unificar múltiplas temáticas em algo coeso e na maioria das vezes não consegue. Entretanto, a jornada de autocompreensão de Shane é emocionante e bela de se ver. O jogo pode te causar raiva, pode te frustrar ou decepcionar com algumas decisões. Mas jogue-o de coração aberto, fique atento aos detalhes, e quem sabe ele vai falar com você tão intensamente quanto falou comigo.