O que é sobreviver para você? Sobreviver é o ato de coletar itens em jogos para preencher barras de vida e comida? É acordar no dia seguinte sem se sentir uma completa derrota? É agir por instinto, perder de vista a civilidade em favor de um impulso incontrolável de se manter vivo a qualquer custo? O termo significa coisas diferentes para pessoas diferentes, sentidos que podem surgir de situações completamente distintas, e pode ser seguido de pânico, da vontade de fugir ou lutar, e de manter a integridade física a todo custo. Esse tal custo é o que Frostpunk (Steam, GOG) coloca em cheque.
Pouco mais de 40 dias é tudo o que você tem para sobreviver na campanha principal do game, um dos três cenários disponíveis na versão inicial. Um inferno gélido assola a Terra e faz com que os habitantes de Londres fundem o que pode ser considerada a última cidade do planeta. Reerguer-se não é fácil, nunca é. Reerguer uma civilização muito menos.
O que Frostpunk faz muito bem é ter a capacidade de não julgar. As ações são só suas, e você decidiu tomá-las deliberadamente. Você precisou desligar um gerador de aquecimento pois estava sem carvão? Tudo bem, o jogo não vai te julgar, ele não precisa.
Quem vai fazer isso é você.
Manter o “equilíbrio”, termo que também pode ter inúmeras implicações em Frostpunk, é uma tarefa quase impossível. Você começa a campanha com 100 habitantes sem local onde morar, quase sem comida e prestes a ficarem adoecidos. De cara você já tem uma tarefa importante a considerar: o que você vai priorizar? Comida é obtida inicialmente pelos postos de caça, que custam madeira para serem construídos. Ter postos, no entanto, equivale a ter menos trabalhadores e menos madeira — o que implica em uma possível redução de casas e, caso seja necessário, enfermarias. Não existe um minuto de “paz” em Frostpunk; é uma maratona do começo ao fim.
Quando não são problemas logísticos, são problemas humanos. São os habitantes que tremem de frio pela falta de carvão, ou os adoecidos que não recebem a quantidade de alimento necessária; as crianças que não têm onde ficar, a atmosfera de opressão e desespero que paira sobre a cidade. Medidas drásticas precisarão ser tomadas mais cedo ou mais tarde.
Comecei as minhas ao assinar uma lei que tornava todas as crianças saudáveis (e não saudáveis) trabalhadoras. A necessidade foi causada por um equívoco meu na quantidade de madeira necessária para construir casas, e por causa disso um dia 20 dos meus trabalhadores morreramcongelados. “Crianças vão ter de servir por ora”, disse como quem tentasse justificar os próprios atos. Só que elas nunca deixaram de “servir por ora”.
Propositalmente carente de uma bússola moral “geral” — como grupos que podem determinar você como vilão ou não — Frostpunk faz tudo meio que parecer natural. Uma hora o conceito de ter crianças como trabalhadoras pode soar horrífico; outra hora elas já estão tão integradas ao sistema que o jogador construiu que a própria noção de removê-las pode ser considerada impossível. Faltou trabalhador? Soca criança.
Usá-las de fato foi útil, pois graças a essa decisão pude estabelecer um grupo de busca para a região onde estava situada a cidade, obter materiais e novos habitantes sem prejudicar demais a economia. Mas raramente os fins justificam os meios.
Gradativamente você se acostuma à insanidade que é gerenciar essa cidade. Se antes eu me sentia hesitante em não aceitar novos refugiados, agora fechava as portas para eles sem pensar duas vezes. Era isso ou ter de lidar com o constante crescimento de necessidade de carvão, alimento, casas, e manter a ordem — esta última facilmente perturbada a cada decisão tomada.
Se não existem os tais valores morais, os habitantes respondem de duas formas: descontentamento e esperança. Ações como construir uma casa ou reduzir os enfermos aumentam a esperança, enquanto a prisão de um malfeitor diminui o descontentamento. Abro espaço aqui para apontar que essas duas barras não necessariamente estão ligadas; o que gera descontentamento nem sempre vai causar esperança, e o que dá esperança pode ser uma atitude considerada “ruim”.
No vigésimo dia, já com uma cidade relativamente “estável” dentro dos conformes, comecei então a construir postos de guarda para manter a tão frágil “ordem”. Primeiro vieram as pichações, depois os pequenos delitos, os furtos, e em algum tempo os assassinatos. Dez dias depois e eu realizava a minha primeira execução. Tudo isso em nome da sobrevivência.
Eu não vou me explicar sobre o que motivou as minhas ações; eu mesmo não me orgulho delas. Posso falar que “foi uma coisa do momento”, ou que era para um “bem maior”, mas prontamente você iria me julgar por matar pessoas, não é? Seria então melhor optar por um caminho de “fé” e suposta doutrinação? Aí é que entra em destaque outro diferencial de Frostpunk — ele raramente reforça a ideia de que você de fato lida com pessoas, mesmo que ele tenha ferramentas para te lembrar disso.
Diferentemente do que a 11bit Studios fez com o escopo micro de This War of Mine, outras desenvolvedoras como a Haemimont e seu Surviving Mars, ou Tynan Sylvester com Rimworld, o potencial humano é sempre colocado em segundo plano. Seus habitantes têm nome, mas isso não é relevante. Eles não têm traços especiais, eles não são mais importantes do que outros. Todos são trabalhadores, todos estão com fome, todos são mortais.
Um nome rapidamente se torna uma estatística quando o desespero bate. Você não pensa mais se a família de fulano, que você viu chegar na sua cidade no quinto dia, está bem. Você pensa em garantir que outras 30 famílias fiquem bem quando o dia amanhece com uma temperatura de -50ºC, mesmo que isso signifique matar uma pessoa (ou uma família).
Corpos são descartados sem muito alarde, podendo até servir de adubo para uma das edificações. Enfermos raramente têm suas histórias contadas, doenças não tem nome, casas não são decoradas. É tudo muito estéril, muito… sem alma.
Embora acredito que há espaço para criticar a decisão da 11Bit Studios em não oferecer maior personalidade para a sua cidade, ou a carência eventos aleatórios (todas as partidas seguem a mesma cadeia de eventos), Frostpunk funciona muito bem justamente por isso: é demasiadamente sistemático. É roubado da sua própria humanidade pelas suas mecânicas.
É a mesma diferença de sensações que você tem ao ver uma fotografia de um “mar de prédios” e de uma rua decorada para uma festa. Ambas as imagens contam histórias, porém uma está escondida dentro de edifícios idênticos e outra dá para ver na cara. Você não se questiona se as pessoas daqueles prédios são tão felizes quanto as da outra foto, pois naquele contexto elas são invisíveis para você.
É assim que vejo os habitantes da minha cidade em Frostpunk, cujas histórias são invisíveis, cujas aflições são reduzidas a valores que eu tenho de manter em um patamar “estável”. Raramente eu clicava nas construções para ver quem as habitava; nem mesmo lia a lista de doentes no hospital, mesmo sabendo que era possível. Eu já me sentia culpado demais para ter alguma interação.
O que me interessava era saber se estavam todos aquecidos e qual era a taxa de produção diária das matérias-primas. Em um ponto eu fui verificar o que eu poderia fazer pelos doentes, mas não para lhes dar conforto; eu queria era garantir que voltassem ao trabalho o quanto antes. Queria fugir da obrigação que caia sobre meus ombros, a ciência de que eu que os coloquei naquela situação, e o “fugir” significava jogar aquela pessoa de volta para a linha de trabalho. A minha cidade se deteriorava e eu ia junto com ela. Uma pequena decisão — que sempre vinha com a desculpa de “sobrevivência” — e tudo era magicamente justificável.
Minha cidade sobreviveu ao inferno gélido, cheguei ao 45º dia e as temperaturas saíram de -150ºC para -30ºC. Apenas 100 dos 700 habitantes ainda estavam vivos. As minas haviam congelado, a comida acabado e os hospitais estavam lotados. Estava de volta à estaca zero. O que restava era conviver com as minhas decisões.
Frostpunk
Total - 9.5
9.5
Às vezes os maiores monstros são aqueles que nós mesmos criamos, e Frostpunk traz o alimento para que eles saiam de suas tocas. Triste, e muitas vezes desesperador, é um dos poucos jogos que entende o que a necessidade de sobrevivência é capaz de gerar em nós — como ela nos faz tomar decisões impensadas, como transforma pessoas e nomes em números, e o peso que as decisões representam quando tentamos conviver com as consequências.