Em um eterno esforço para diminuir o tempo que eu passo na frente do computador, tenho investido cada vez mais em jogos de tabuleiros solo com mecânicas “simples” de compreender. O jogo que está na minha rotação atual é “Apawthecaria”, da Anna Blackwell – onde você é encarregado de explorar um mapa, coletar ingredientes e curar quem precisa de ajuda. É também um ótimo ponto de partida para começar a falar do recém-lançado “Foretales” (Steam / Switch) da Alkemi, que pode não compartilhar nenhuma temática, mas é tão importante quanto para entender a transição de jogos de cartas físicos para um ambiente virtual.
“Foretales” é mais um jogo em uma longa linha de “jogos que usam cartas como meios de interação com o cenário”. Embora o subgênero não tenha explodido no PC tanto quanto eu imaginava, ele já tem títulos que eu considero “referência” e que alcançaram um público maior – sendo os melhores exemplos “Griftlands” e “Cultist Simulator”. O primeiro assume uma pegada mais voltada para o diálogo e ação, enquanto o segundo tenta ao máximo emular um tabuleiro gigante com vários mecanismos que atuam em sincronia.
A Alkemi tenta unir um pouco dos dois mundos, trazendo uma interface bem reminiscente de um jogo de tabuleiro, mas sem abrir mão de algumas “facilidades” que o ambiente digital possibilita. Na frente dessa empreitada está o nosso protagonista, Volepain, que, após roubar um artefato poderoso, tem visões terríveis do futuro — desde ver seu melhor amigo preso até ver a cidade onde ele vive em chamas — e decide que nada disso irá acontecer. Ao menos, bem, é isso que ele pensa.
Volepain é uma das peças-chave para entender o motivo de “Foretales” funcionar. Ele é o seu típico protagonista vigarista que amamos odiar, mas que no fim do dia rouba o nosso coração. Munido de vários truques, ele arranja um jeitinho de se safar das situações mais cabeludas.
Estes truques são traduzidos em cartas que podem ser usadas nos vários cenários de “Foretales”. No cenário inicial, por exemplo, você precisa achar um jeito de descobrir o caminho “correto” de um imenso labirinto. Caso tenha dinheiro suficiente, você pode pagar um dos jardineiros para te levar até o final do labirinto. Outras oportunidades dependem dos vários recursos do jogo – que incluem fama, crueldade, ou alimentos.
O importante é que cada cenário de “Foretales” sempre vai te apresentar com mais de uma solução para o problema, mesmo que esta não esteja tão explícita. Neste aspecto a Alkemi não se desgruda das suas raízes em falar para o jogador “você vai falhar um cenário, você vai ter que repensar as suas táticas e entender melhor o que cada área que explorou – ou irá explorar – pode ser beneficial”.
Esta é a aposta mais arriscada que a desenvolvedora faz, já que durante as duas primeiras horas você tem apenas Volepain como personagem e suas habilidades aparentam ser um tanto quanto limitadas. Pelo contrário; os cenários são ricos em variedade e como você os soluciona traz resultados a curto e longo prazo, mas “Foretales” não deixa isso explícito.
Aqui a divergência de um jogo como “Apawthecaria” começa a ocorrer. Se eu “falho” em um cenário em “Apawthecaria”, eu posso muito bem reorganizar as minhas cartas, levantar, dar uma volta, preparar o meu tradicional “café que eu tomo enquanto penso na minha próxima ação” e voltar com uma mente fresca para o desafio. “Foretales” não me impede isso, mas por toda a variedade de opções que você tem em como completar o cenário, a grande maioria deles – assim como a sua campanha principal – é estabelecida dentro de um sistema relativamente rígido.
Eu entendo que devem existir limites no tocante a quanto um cenário pode ser alterado para não confundir o jogador, mas é aí que a Alkemi se atrapalha. Ao mesmo tempo que ela quer experimentação e quer deixar você falhar e aprender, ela quer segurar demais a sua mão.
Essa dissonância fica clara na quantidade de tempo que você conta apenas com Volepain na sua equipe, em como o jogo tenta te guiar nos momentos iniciais como um gigantesco tutorial. Há uma notável hesitação da desenvolvedora em te deixar explorar, e essa hesitação acaba virando uma pequena dor de cabeça para quem não está acostumado com o gênero.
Os primeiros cenários, por exemplo, por mais que possam ter múltiplas soluções, te incentivam um pouco demais a seguir um caminho específico e acabam virando quase que um “quebra-cabeça” onde você soluciona uma situação e tenta aplicar uma tática igual ou similar ao “quebra-cabeça” anterior. Não foi à toa que uma das primeiras reclamações que eu ouvi de um amigo era o quão “repetitivo” era o jogo. O termo me pegou de surpresa, pois era uma experiência tão distinta da minha que eu até então não tinha observado isso em “Foretales”.
A razão disto está na clara diferença de pontos de origem diferentes. Meu amigo tem pouca experiência com jogos de tabuleiro ou jogos de cartas físicos. Claro que tentar maximizar uma tática é um processo “natural” de muitos jogadores. Eu, por outro lado, observei “Foretales” mais como um jogo narrativo onde toda situação era uma nova história. Eu soltava a mão invisível da Alkemi e ia contra o próprio incentivo do jogo em si de querer que eu siga um caminho específico. Eu sinto muito prazer em falhar e meu nível de tolerância aos meus próprios erros é alta.
Nenhuma das interpretações está necessariamente errada, mas denota que a Alkemi ainda retém muito das suas raízes — mais do que ela mesmo imaginava — mesmo quando a criação de um “tabuleiro digitial” teria sido uma oportunidade perfeita para expandir a ideia de que cartas são mais do que meros recursos.
Isto não é uma crítica à função que o sistema exerce, tanto que a presença de múltiplos recursos é essencial para uma das ideias centrais de Foretales, que é fazer com que o combate seja a última opção a ser considerada. Embora inevitável em certas ocasiões, se você tiver concluído certos passos, é possível fazer com que o inimigo perca a moral com a sua fama ou assustá-lo com sua crueldade. Longe de ser o primeiro jogo a fazer isso, a execução desse sistema de combate é elegante e outro ponto forte do game.
O maior problema ocorre mesmo na interface de Foretales como um dos principais culpados por perpetuar essa ideia. Ela não é ruim para alguém que já tem experiência em jogos de tabuleiro físicos, ainda que eu a ache um pouco visualmente poluída. Entretanto, as cartas que determinam os recursos ou até mesmo certos locais carecem de descrições mais aprofundadas ou mudanças visuais entre os diferentes cenários. Entendo que isto é necessário para não confundir o jogador, mas é uma oportunidade perdida da Alkemi em expandir o próprio mundo de Foretales.
Se você for capaz de fazer essa “desconexão”, e abraçar Foretales pela narrativa, ele se transforma em um jogo absolutamente fantástico. Por mais rígido que ele possa ser, a riqueza em detalhes durante as interações e a maneira como ele dispõe a sua história é algo delicioso de acompanhar. Invista um tempo e deixe pré-conceitos para trás que você talvez consiga enxergá-lo como eu mencionei acima: uma história que usa cartas para estabelecer dinâmicas, personagens, situações.
A Alkemi poupa caracteres sem prejudicar a narrativa e entrega momentos memoráveis e te faz sentir ainda mais imerso em toda a história de Volepain, seus aliados, e sua jornada para impedir que o pior aconteça com a sua cidade e o mundo. A empolgação que eu sentia ao liberar um novo cenário ou encontrar uma nova maneira de solucionar uma questão era palpável. Quanto mais adentrava o universo de Foretales, mais eu queria que a história não acabasse.
Sem entrar demais no território de spoilers, alguns dos truques que a Alkemi usa para te tirar do caminho “correto” com descrições dúbias e caminhos que não dão a lugar nenhum são fantásticos. Ficava igualmente frustrado e rindo da minha própria desgraça. O simples fato de usar cartas e visuais para me enganar já é um feito e tanto por si só.
Uma pena que, de novo, isso vai estar mais visível para quem já tem experiência com jogos de tabuleiro e já está acostumados com um pouco da “simbologia” e do estilo. Queria que a Alkemi tivesse abraçado um pouco mais da flexibilidade do ambiente digital para expandir a narrativa ou alterá-la de forma considerável. Considerando que ao menos “Foretales” não é mais um jogo de cartas inspirado em “Slay the Spire”, é bom que seja algo “diferente”.
Vou continuar esperando a explosão desse subgênero em todas as plataformas, pois sinto que irei ver cada vez mais projetos usando cartas como meio de interação, ou ao menos tentando quebrar os moldes de interação a que estamos tão acostumados nos jogos – mesmo que isso signifique transpor ainda mais mecânicas de jogos de tabuleiro. Até lá, Foretales e outros jogos do gênero irão suprir muito bem a minha necessidade.
Foretales
Total - 8
8
Foretales é um bom jogo narrativo que usa um sistema de cartas e recursos interessantíssimo para contar a sua história. Todavia, a hesitação da Alkemi em deixar o jogador explorar por conta própria e muitas decisões de design enraizadas um pouco demais no próprio universo dos jogos de tabuleiro podem afastar quem não tem costume com a “linguagem” e a “simbologia” desse subgênero. Apesar disso, recomendo que você dê uma chance e encare sem pré-conceitos. Caso consiga, será agraciado com uma ótima história e personagens fantásticos.