Eu sabia que, cedo ou tarde, esse dia ia chegar. O dia que abriria Farming Simulator 17, jogaria por várias horas e não sentiria um pingo de interesse; em que as máquinas que controlo não me empolgariam, em que o cenário no qual trafego não me faria imaginar coisas. Irônico isso acontecer bem no lançamento da Platinum Edition (PC, PlayStation 4, Xbox One), que adiciona o tão esperado cenário da América do Sul. O resultado, no entanto, não vem unicamente dela, mas o sintoma de um problema muito maior.
É fácil olhar para um jogo como Farming Simulator e pensar que é apenas um “Harvest Moon para quem quer coisa séria” ou “quem tem vergonha de jogar Harvest Moon”. Já ouvi tais palavras serem proferidas a mim e tentei, na melhor das minhas habilidades, explicar que não é esse o caso. Muitas vezes sem sucesso.
Compreender o que torna o gênro especial é necessário para ter a clareza de enxergar os problemas com a Platinum Edition. Para muitos, eu incluso, simuladores são como uma celebração de algo que amamos. Neste caso específico, o ato de ter uma fazenda ou controlar máquinas agrícolas.
Por mais insano, irônico ou fora do comum que isso soe, a diversão parte justamente dessa interação homem X máquina ou homem X cenário. O modo com o qual nos relacionamos com estes aspectos é crucial para que tenhamos uma certa “imersão” no simulador. Não tão distante de outros gêneros — como shooters ou RPGs — para ser honesto.
Mas, diferente dos outros gêneros, os simuladores têm de seguir regras mais rígidas, não dar espaço para tanta imaginação. A narrativa, no caso de Farming Simulator 17, é fruto do processo de interação e como um jogador enxerga o mundo que habita.
Carente de regalias como a variedade de aviões de um simulador como X-Plane ou os trens de Train Simulator 2017, Farming Simulator 17: Platinum Edition tem uma limitação ainda maior de fontes para tirar ou variar nesse processo interativo. Uma colheitadeira é uma colheitadeira independentemente da marca.
Se nós, como jogadores, desejamos celebrar essas máquinas pela sua potência ou peculiaridades, a desenvolvedora Giants Software atende desde sempre nossos pedidos. Belissimamente modeladas, elas são os “showroom” perfeitos para as marcas presentes no game. Dos seus pneus gigantescos, formatos inusitados e ronco de motores que nos fazem questionar o tamanho da influência que o homem tem na Terra.
Mas, como todo showroom, uma hora o olhar se desvia só da beleza para fitar outros caminhos, maneiras de ver um objeto. Interagimos com elas, plantamos nossas sementes em nossas fazendas virtuais, colhemos o fruto e geramos o lucro.
Certamente simplístico em sua estrutura de progressão, tanto Farming Simulator 17 como a Platinum Edition funcionam em dois níveis: o baixo — onde se começa com poucos equipamentos e dinheiro — e o alto, onde o jogador já é um fazendeiro virtual bem estabelecido, com dinheiro de sobra para contratar funcionários e tomar um papel de gerente. Atingir esse segundo nível de gerenciamento é que faz com que parte da magia que envolve jogar Farming Simulator 17 vá embora.
Isso porque, se antes existia essa noção de “desafio” ou “trabalho” ao preparar a terra e escolher a máquina certa, tais obrigações agora são passadas para a IA; a qual faz um bom trabalho, mas tira do jogador algo que era “dele”.
Eu mesmo já cheguei em tal posição inúmeras vezes, seja na versão 17 ou anteriores, mas ao menos a minha interação com o cenário em si ainda fazia valer a pena.
Como se vê nos filmes de velho oeste, a Giants Software criava um espaço atemporal para representar tanto os Estados Unidos e a Europa, onde todos os elementos icônicos estavam presentes, mesmo que não compartilhem do mesmo espaço na vida real. Esperava o mesmo ao adentrar a América do Sul. Ledo engano.
O chão de terra vermelha da “Fazenda Esplanada” me aguardava ansiosamente. Um mapa em sua grande parte plano, sem elementos que saltam aos olhos, que te fazem pensar “Nossa, isso é realmente a América do Sul”. Mesmo que eu considere o elemento de atemporalidade, o mapa não faz sentido de um ponto de vista estético ou de jogabilidade.
Onde estavam as montanhas, rios e flora que fazem com que a região seja tão discrepante dos climas temperados dos Estados Unidos ou da Europa? Nada dizia “América do Sul claramente, exceto pela cana de açúcar, talvez o único elemento que possa ser dito como próprio de fato da região.
O que não seria um problema tão grande caso a Platinum Edition aplicasse de outros elementos — como maior impacto do clima ou chuvas — para distinguir a região. Mecânicas que muitos fãs do gênero há tanto tempo pedem, mas que não deram as caras até então.
Fico, então, dividido. Pois não me sinto com vontade de prosseguir na minha jornada — que tende a durar mais de 50 horas — pela América do Sul. Sinto que a minha parcela de tempo com Farming Simulator 17 foi gasta nos mapas anteriores e que este, por mais que tente, não evoca nada em mim. Se evoca, é uma sensação de desgosto.
Tal como nós temos essa visão atemporal do que compõe uma região dos Estados Unidos, a Giants Software tentou aplicar a dela em nosso continente e ela não só desaponta, mas preocupa.
A terra vermelha é só um dos elementos que tenta passar o que eu não posso deixar de chamar de uma visão “decadente” do nosso continente. Não estou aqui para defender os problemas que nós da região vivemos no dia a dia. Eu e você sabemos do que falo; mas também, ver a discrepância entre a “organização e a beleza” dos Estados Unidos representada em Farming Simulator — com suas montanhas, pequenos vales e tudo onde “deveria estar” — e uma cidadezinha “pé de chinelo”, onde o asfalto acaba assim que saímos dela, é no mínimo pintar uma terrível impressão do que somos.
Sei que essa imagem atemporal não foi criada necessariamente pensando no Brasil, mas nem mesmo durante as minhas viagens pelo o interior do nosso país, ou ao passar por cidades litorâneas do Uruguai, vi elementos tão precários. Todas as casas da cidade têm um aspecto sujo, casas abandonadas, outras com traços de degradação.
Seria eu abrindo os olhos para a realidade do nosso continente? Não, creio que não. Sei bem que temos as nossas dificuldades e elas estão bem documentadas nos nossos rostos e na nossa luta do cotidiano. Se essa é a imagem que temos lá fora — e estou ciente de que muitas vezes é isso mesmo — não só precisamos melhorá-la, como também quem é de fora ter uma nova (e mais correta) visão sobre nós.
Por que bato tanto nessa tecla? Porque a tal da celebração do homem X ambiente vem justamente dessa criação do espaço imaculado e atemporal, onde podemos ser nossos fazendeiros virtuais sem causar danos ao meio ambiente, onde podemos controlar máquinas que gostamos sem pensar nos seus possíveis impactos. E, se for para seguir essa rota mais realista, que isso seja aplicado em todas as áreas futuras do próximo Farming Simulator.
“Realismo”: eis uma palavra muitas vezes impropriamente usada no mundo dos jogos e dos simuladores, que tem inúmeras ramificações e resultados, que vão do realismo estabelecido pela narrativa de Spintires: MudRunner à “recriação” dos sintomas das chuvas do Leste Europeu, e até à criação de narrativas pelos cenários que passamos por Euro Truck ou American Truck Simulator.
Por se estabelecer como uma “celebração”, Farming Simulator 17 (e a Platinum Edition) não carrega elementos — seja na jogabilidade ou no cenário – capazes de comportarem esse tipo de realismo. E esse é o sintoma-chave para entender não só o problema com Farming Simulator, mas, com um olhar generalizado, com o gênero em geral.
Eu, como jogador, gerencio fazendas, mas não lido com as realidades de manter uma plantação de fato ativa. Não existe uma rotação de cultura, as chances da minha colheita ser destruída são minúsculas. Tal posicionamento consequentemente gera estagnação. E essa estagnação é que vem assombrando Farming Simulator desde então.
Seja pelos lançamentos quase anuais, por ter se moldado como um “nicho, mas não tão nicho mais”, ou como um “guilty pleasure”, o game da Giants Software perde um pouco da sua identidade e potencial. E essa epidemia “global” também afeta seus concorrentes.
Não estou aqui para bancar o designer, nem tenho crédito para isso. No entanto, a estagnação da franquia e do gênero em si é palpável. Se é para atingirmos um novo patamar de qualidade, é preciso aumentar a interação entre o jogador e as máquinas que controla, assim como o ambiente ao seu redor.
A celebração de Farming Simulator 17 – Platinum Edition não precisa deixar de existir, tampouco quero que isso aconteça. Quero é ver o outro lado da moeda, ter meus conhecimentos postos à prova, e lidar com mais desafios da natureza. Quero celebrar que consegui passar mais um ano sem grandes perdas nas minhas colheitas, que enfrentei uma chuva torrencial que dificultou o manuseio das máquinas. Uma hora o “showroom” tem de ir embora, e a cada segundo que passa ela fica mais próxima.
Farming Simulator 17: Platinum Edition
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Ao dar continuidade na celebração de se ter uma fazenda virtual, Farming Simulator 17: Platinum Edition não consegue enxergar os principais problemas que há certo tempo impregnam a franquia — e o gênero. Para chegar a um novo patamar de interação é preciso de mais jeitos de se sentir envolvido no trabalho; seja ele colher uma safra ou gerenciar seus trabalhadores. Por ora, ainda um belo showroom do potencial incrível que um dia, espero, seja finalmente atingido.