“Quando tomarmos Yara, a cidade estará em chamas. Guerras civis podem acontecer, intervenções externas. Esta revolução irá libertar Yara, mas não irá consertá-la”, diz Clara, líder de Libertad — a facção à qual Rojas se junta para remover Anton Castillo do poder em Far Cry 6 (Ubisoft Store, Epic Games Store PlayStation, Xbox). É uma frase que eu não imaginaria ler em um jogo da Ubisoft, mas que contém traços de verdade.
Depois de três anos “ignorando” a franquia pela absurda covardia de Far Cry 5, eu esperava que Far Cry 6 seguisse a mesma linha. Um mundo aberto repleto de “vilões” onde suas mortes não equivalem a nada. Parte disso ainda é real em Far Cry 6, mas a outra parte, tal como a revolução em Yara, demonstra um desejo por parte da desenvolvedora de mudar o panorama da franquia.
A transição de um personagem “mudo” para um que tem um certo grau de agência já é um grande avanço. Dani Rojas pode não ser a minha personagem favorita da desenvolvedora — lugar destinado ainda a Kassandra de Assassin’s Creed: Odyssey — mas sua personalidade forte é mais do que o suficiente para elevar sua presença em um shooter repleto de coadjuvantes mornos ou cujas histórias não são bem desenvolvidas. Nem mesmo Anton Castillo, dublado pelo ator Giancarlo Esposito, é tão bem usado, a não ser para materiais de propaganda pré-lançamento.
Eu levanto essa questão porque a Ubisoft não tem medo de usar continuamente a palavra “Fascismo” quando trata de Anton Castillo e seu reino de terror. Há momentos que não é muito, mas, como disse, é um avanço significativo em comparação aos outros jogos da franquia.
Também não é inusitado; afinal, a Ubisoft sabe muito bem usar o Caribe e a América do Sul para temas relacionados a ditaduras. Yara pode ser um local fictício (provavelmente para evitar o desastre das relações entre a Bolívia e a desenvolvedora com Ghost Recon: Wildlands), mas ela sabe jogar as suas cartas. Entretanto, a despeito dos esforços, o jogo ainda luta consigo mesmo para entrar em contato com as raízes do fascismo e o que resultou para ele florescer.
Afinal, a franquia sempre foi desenvolvida com o intuito de agradar gregos e troianos — um ponto onde a crítica e a audiência no geral sempre vai entrar em conflito. A maioria dos temas e personagens acabam sendo ignorados ou perdidos nas entrelinhas. Um exemplo rápido é a família Montero — um dos seus primeiros aliados para derrotar Castillo. Donos de grandes plantações de tabaco, agora tomadas pelas tropas do ditador, sua primeira missão é retomá-las para obter a “confiança” de Montero.
Os diálogos demonstram claro que são forças opostas trabalhando para um objetivo em comum. Far Cry 6 não vai além do básico e do arroz com feijão nessa frente. Não seriam os Montero outra forma de opressão? Quem garante que eles tratam os seus trabalhadores com o devido respeito ou que eles vão ser tão diferentes de Castillo tanto a curto quanto a longo prazo? Como Clara apontou, a revolução irá libertar Yara, mas não irá consertá-la.
Nessas horas eu gostaria que a equipe da Ubisoft investisse um pouco mais em personagens menos “preto no branco”, ao menos em questão de exposição para o jogador. Um olhar de relance e Montero é mais um aliado, mais um para sua coleção de “NPCs”. Eu quero mais do que isso; eu quero que ela aprofunde essa ligação entre o protagonista e o mundo ao seu redor. (Recomendo como texto de apoio o artigo de Moises Taveras para a “Fanbyte”: “Far Cry 6 Missed Out By Not Casting My Dad”).
Isso é essencial caso a Ubisoft decida seguir em frente com um protagonista fixo e um certo grau de agência e personalidade. Já está mais do que na hora de repensar a estrutura base de Far Cry 6. Por mais que ele seja o melhor desde o segundo — um tema em que entrarei em breve — a fundação está desgastada e os alicerces já estão à mostra. É provável que aqueles que não acompanham a série não sintam essa fadiga, mas algumas ideias trazidas de Far Cry: New Dawn — sobre o qual o quanto menos eu falar, melhor — geram trabalho desnecessário.
Eu sei bem o intuito disso: maximizar o engajamento do jogador, o que é o que toda empresa de grande porte visa nos últimos anos. Passes de batalha, eventos temporários, recompensas com tempo limitado. Far Cry 6 pode não ter tantos desses elementos no momento da publicação desta crítica, mas ainda vai além da conta para um resultado irrisório.
Você libera “campos de guerrilha” à medida que avança na história e, além das patéticas rinhas de galo, — que não têm razão de estarem no jogo e são uma das adições que mais abomino — muitos deles oferecem opções de construção, ideia que já tinha sido testada em Far Cry: New Dawn. Cantinas dão buffs temporários para Dani, quartéis oferecem a chance de obter armas ou componentes raros, guarnições aumentam a presença de tropas da resistência em Yara. Eu queria gostar mais dessa ideia, mas como disse no parágrafo acima, a recompensa não vale o investimento.
Vide o novo sistema de construção de quartéis para obter armas ou componentes raros. Alguns desses eventos duram uma hora ou mais até serem finalizados. O que você recebe? Uma arma que você vai descartar em questão de horas ou até minutos.
Compreendo muito bem o apelo estético e o “tom” de personalização que eles podem dar ao jogador (tal como a Ubi, senão ela não teria colocado uma loja de itens cosméticos). Que dirá em um jogo onde você tem uma maior liberdade para tirar fotos dos de Dani em dezenas de poses. Bato o martelo mais uma vez e digo que existem formas de unir ambos os sistemas sem converter tudo em trabalhos desnecessários. O mapa de Yara é imenso e está mais do que repleto de missões secundárias ou terciárias, como os contos de Yara. Por que não usar esses sistemas para gerar um maior senso de recompensa? De quebra você ainda consegue conectar o jogador à história da região.
Tais conflitos de design não se restringem apenas ao sistema de construção. Quando disse que Far Cry 6 é o melhor desde o segundo jogo, boa parte disso está ligada ao novo sistema de combate que, como o restante do jogo, entra em conflito consigo mesmo em várias ocasiões.
Eu nunca me importei muito em ser furtivo em Far Cry, acho o sistema banal e a IA “fraca” demais para minhas ações terem algum peso significativo. Far Cry 6 aparenta estar ciente disso e se volta um tanto para o lado “ação”. Em suma, criar o caos em Yara é a regra e não a exceção.
Para isso a Ubisoft introduz um sistema de munição que me atrai bastante. Ao invés de você ser uma máquina de eliminar soldados, você precisa entender que tipo de ameaça vai encontrar pela frente. Alguns soldados são suscetíveis a balas “comuns”, por assim dizer, outros só recebem dano caso sua arma esteja carregada com munição capaz de penetrar blindagens.
Onde antes eu escoltava uma área e só ia com tudo para cima, agora eu pensava, recuava, tentava flanquear os meus inimigos e acertar os pontos fracos deles. Nenhuma arma de fato se torna inútil em Far Cry 6, mas há um grande interesse da Ubisoft de tentar fazer você mudar o seu estilo de combate. Para a minha surpresa, a IA faz o mesmo. Não me lembro a última vez que fui flanqueado ou que jogaram granadas ou artilharia para cima de mim na mesma intensidade do que em Far Cry 6.
Sim, você ainda tem o ocasional “um soldado ficou preso na árvore e isso é ridículo”, mas se for para criticar a IA de todo jogo, eu passaria horas falando sobre o tema. É um avanço que me agrada e, para um jogo que parecia congelado no tempo, são essas pequenas mudanças que me deram forças para continuar a campanha. E, considerando o escopo e o público alvo da franquia, é uma mudança inesperada e atraente para quem, como eu, gosta de uma pegada mais “tática”.
No outro lado do espectro estão as “Resolver Weapons”, armas únicas que deveriam ser descritas como “armas inúteis”. Claro, a arma que dispara CDs pode ser engraçada uma ou duas vezes, mas não vai te ajudar quando a situação apertar e você retornar para o uso do arsenal tradicional da franquia. Ao menos o lança-mísseis que Dani carrega consigo teve bastante uso durante a minha campanha.
Mas o que enraíza de vez esse problema de armas e estilos não está necessariamente ligado ao combate em si, mas sim às roupas que você usa. Por algum motivo bizarro a Ubisoft decidiu seguir a ideia de cada parte da sua vestimenta ter um “nível” e atributos especiais — maior proteção contra explosões, maior agilidade ao eliminar inimigos, a lista é bem longa. Ainda que não seja tão desastroso quanto Ghost Recon: Breakpoint, é um sistema que não tem lugar em Far Cry.
Caso tenha, que ao menos siga o caminho de Assassin’s Creed: Valhalla e me permita melhorá-lo por meio de itens secundários e alterar o visual deles. Pelo menos assim Dani não vai parecer um palhaço andando por Yara. Gosto de pensar que toda vez que os guardas me viam com diferentes partes de roupas, eles soltavam “Lá vem aquela mulher pronta para o carnaval 2022, soe o alarme”.
Depois de concluir a campanha principal — com seus devidos plot twists até um pouco surpreendentes — e ainda ter uma pilha de missões secundárias para serem feitas, meu olhar cético diz: “Far Cry 6 é mais Far Cry com uma nova camada de tinta”. Mas também não posso negar que as pinceladas dadas nessa nova versão impactam muito mais do que as anteriores.
Meu lado esperançoso diz que Far Cry 6 é o início de uma grande mudança para a franquia, uma para melhor. Mostra uma equipe de design que sabe muito bem que está mais do que na hora de arrancar a árvore que já está apodrecendo e plantar uma nova. Só não espero que demore o mesmo tempo que Assassin’s Creed. Far Cry 6 pede severa urgência.
Far Cry 6
Total - 8
8
Se você está cansado da fórmula “mundo aberto” da Ubisoft, Far Cry 6 não vai te conquistar, mas algumas das suas mudanças — ainda que pontuais e ocasionalmente destrambelhadas — apontam que a Ubisoft está ciente de que a fórmula está desgastada. A introdução de uma protagonista com uma personalidade mais forte e um novo sistema de munição, assim como ligeiras melhorias na IA, dão uma ligeira revigorada até a próxima sequência. Que esta traga mudanças mais profundas e reinvente o que é Far Cry. Ele está precisando, e muito.