“Você sabe a resposta disso?”, “Você sabe onde foi parar isso?”, “Você sabe o que está de errado?”. Às vezes frases como essas são só o que eu preciso para cair em um buraco de obsessão. Me pego remoendo as perguntas por longos dias, me questiono se a resposta que eu encontrei é a correta ou não, fico ansioso em receber o retorno dos atos mais simples. “Será que o que eu fiz foi correto?”, indago a mim mesmo. Eu não fico obcecado por pessoas, tampouco coisas; eu fico obcecado por encontrar a resposta de algo que eu nem sei se é algo que eu estou procurando de verdade. Alguns vêem isso como um luxo, uma característica — até mesmo um bom atributo. Eu vejo isso como uma maldição, e Draugen (Steam) também.
Há quem diga que todo bom mistério tem um pouco de obsessão por trás: a busca por respostas de um assassinato como em um bom livro da Agatha Christie, a obsessão de Yoshitaka Nishi em Hana-Bi em ajudar a sua esposa em estado terminal a viver uma vida confortável. E, no caso de Draugen, a viagem de Edwards Charles Harden para a cidade de Graavik em busca de sua irmã perdida, Elizabeth.
Draugen é mais uma história interativa — e muito boa nisso — do que um adventure como The Longest Journey ou Dreamfall, ambos games que fizeram o roteirista e diretor do game, Ragnar Tørnquist, famoso. Ele não é terrivelmente ambicioso em seu design ou duração, e é relativamente curto (por volta de três horas), o que o torna mais intrigante ainda. Atualmente — ou, melhor dizendo, nos últimos anos — tenho dado extrema preferência a histórias que sabem ser condensadas em algumas horas do que aquelas que se estendem por longos períodos sem um bom motivo para isso. Draugen por si só entende isso, e tenta ao máximo não estender a sua visita à Noruega dos anos 20. Para ele, seis dias é o que basta para resolver o mistério. E o suficiente para me deixar perturbado.
Com a história se iniciando na frente de um barco com Lisse e Edward remando, as cores pastéis que colorem o céu de Draugen parecem algo saído de um sonho. Tudo é mágico, surreal; ele transforma o país em algo exótico, fora desse mundo. Você chega na costa, encosta o seu barco e vai para a casa onde você deveria se encontrar com a família com que você ia se hospedar. Ela está vazia. Você espera um dia, e nada. Você espera outro dia, e nada.
As cores pastéis, antes um confortável acompanhante, viraram um incômodo. Salvo certos momentos onde você pode parar para desenhar, Draugen não te permite interagir com nada se este algo não possuir uma interação direta com a trama central. Os detalhes da casa deixaram de ser deslumbrantes para repercutir em mim como o ato de olhar para quadros de natureza morta.
Muitos criticam histórias interativas, ou se você preferir o termo chulo, “walking sims”, pela falta de interatividade entre o jogador e o ambiente; “ah, mas você só precisa seguir uma linha reta” ou “faltam puzzles ou algo que eu me sinta mais engajado”, são algumas das palavras ditas ou escritas que eu vejo por aí. Essa falta de interatividade, por assim dizer, é o que torna Draugen ainda mais impiedoso e incômodo para mim.
No começo do segundo dia — onde o meu incômodo com os atos de Edward começou a aumentar — eu vi Lissie descer a ladeira da casa onde ela e Edward estavam hospedados toda saltitante, alegre por estar ali. Ela não estava incomodada com o bizarro fato de que não parecia haver ninguém na cidade, nem com o próprio desaparecimento de Elizabeth. E se ela vivia naquele mundo dela, Edward não tinha esse luxo. Edward funciona pela lógica, Edward só quer as respostas e mais nada, Edward é cego. Seu movimento é lento, arrastado, como alguém que estivesse com amarras nos pés. É um sentimento que conheço bem até demais; aquele de que você se prende a uma emoção, uma esperança, e que aquilo é a única coisa que o impulsiona a seguir. Meu corpo estremeceu em pavor ao ver essa cena. Eu não queria pensar nisso, eu não queria achar que eu sou Edward, eu não quero pensar que eu sou Edward. Mas… e se eu for? Seria eu capaz de olhar o mundo pelos olhos de Lissie?
Depois da descida, Lissie e Edward decidem subir uma encosta em busca de pistas. Lissie, como sempre, o faz com toda a leveza do planeta, como um ser despreocupado com a vida. Apertar o botão de subir com Edward parecia um esforço descomunal; o esforço de levantar o seu corpo, de aguentar o seu próprio peso — tanto físico quanto emocional. Isso se estende para muitas das poucas ações permitidas a Edward. Tudo tem uma fisicalidade, um peso, um amargor.
Ao invés da falta de interação se tornar um fator limitante, a Red Thread Games a usa para reforçar a obsessão de Edward em Elizabeth e a vasta diferença de visões de mundo que ele e Lissie têm. As minhas ações restritas eram o equivalente de por uma mordaça em minha boca, uma corda em meu pescoço, e uma venda nos olhos. Graavik perdia a sua magia – as cores pastéis não significavam mais nada para mim, tampouco para Edward. Até os rabiscos que Edward fazia em seu diário (uma das poucas interações fora da história) careciam de vida. A paisagem era um pano de fundo qualquer. Era o palco de uma peça, aquilo era falso. Aquilo não era o que importava.
O que importava era Elizabeth, e só Elizabeth.
Elizabeth
Elizabeth
Elizabeth
Era tudo que Edward sabia dizer, falar, pensar. Toda pista, não importa quão grande ou pequena, tinha que ter algo a ver com Elizabeth. Eu queria gritar do outro lado da tela “olhe ao seu redor, olhe o mundo, olhe o que você está perdendo, olhe o que Lissie está te falando!”. Eu não podia; eu era um espectador, no fim das contas. E eu também não posso julgar ou culpar Edward, pois como falei no começo do texto, eu muitas vezes sou assim.
Me fecho no meu mundo e esqueço o que acontece à minha volta, esqueço que existem ações, eventos e situações mais importantes do que aquelas que eu estabeleci como prioridade na minha mente. Isso inclui escrever esse artigo às 3:37 da madrugada ao invés de esperar até o amanhecer. Qual o motivo por trás dessa minha decisão? Obsessão — a mesma obsessão de Edward, apenas com objetivos ou alvos diferentes. Eu sei que ao finalizar o artigo eu vou sofrer um pouco de ansiedade. Me perguntar “será que está bom o suficiente?” ou “Não deveria ter mudado um parágrafo?”, “E se eu falhar de novo”. É…. eu posso ter um tanto de Edward dentro de mim.
Imagino que, no fundo, todos nós somos extremamente falhos, fracos, cegos e até certo grau obcecados por algo ou alguém. Não me refiro a transtornos obsessivos compulsivos, mas uma obsessão de maneira geral. O que Draugen faz é simplesmente colocar um espelho na minha frente, na frente de Edward, e tentar lembrar-nos disso.
Quando cheguei no fim do sexto dia de Draugen, eu tinha mais perguntas do que respostas. Até mesmo mais perguntas sobre mim mesmo do que sobre a história de Edward em si, que acaba com certas pontas soltas – típico de Tørnquist — para estimular você a pensar ou esperar uma sequência. Quem sabe essas respostas possam ser encontradas só no mundo de Edward. E quem sabe, só saindo desse meu mundo eu posso encontrar as minhas.
Draugen
Total - 9.5
9.5
Draugen propõe mais do que uma viagem para uma cidadezinha na Noruega; é uma viagem para o interior de si mesmo – para entender se você, como o protagonista Edward, vive cercado de obsessão, e como essa obsessão pode ser prejudicial a você. Ele sugere que sair deste mundo tenebroso que você cria na sua cabeça pode às vezes ser benéfico. E que o grande mistério, no fim, ainda é nos entendermos e entendermos os outros.