Sabe aquela velha história de “quem veio primeiro, o ovo ou a galinha?” É provável que você tenha ouvido isso na escola, ou em algum lugar da internet. A resposta não me interessa já que sabemos que – dada a evolução das espécies – o ovo veio primeiro. A relevância dela é a dualidade da questão frente à existência de Desperados III (Steam / GOG), Shadow Tactics, o renascimento de uma franquia e como ela acabou por moldar muitas mecânicas que influenciaram jogos de stealth entre 2000 e 2010.
Superficialmente Desperados 3 é um “soft reboot” do que até então era uma série “morta” há 10 anos. John Cooper, Kate o’Hara, Doc MCoy definiram, junto com os protagonistas de Commandos, um subgênero de stealth que não tinha sido explorado de maneira apropriada desde Thief. Apesar de que é preciso apontar as diferenças de como o jogo da Looking Glass Studios e o da Spellbound Entertainment interpretam o que é stealth.
Entretanto, de uma maneira mais simbólica, é como se Desperados e outros jogos desse gênero nunca tivessem de fato saído das nossas vidas. Muitas das ideias deles foram incorporadas em jogos que continham elementos de stealth mais proeminentes. Sejam eles Heat Signature, Satellite Reign, Silent Storm 2, Invisible Inc, Mark of the Ninja. Nem sempre da maneira isométrica, mas o conceito base estava lá – seja pelo uso de múltiplos personagens para avançar em uma história, tempo limite, opção de coordenar e executar ações simultâneas e por aí vai. Vale apontar que isso também se intercala com influência de outros jogos como Splinter Cell e Metal Gear Solid, mas limito-me aqui aos que usam uma visão isométrica ou top down.
Talvez o mais proeminente desses todos seja Shadow Tactics: Blades of the Shogun, que não pode ser melhor destacado do que a planta-base para que a THQ Nordic desse carta branca para a Mimimi Productions desenvolver Desperados 3. Quem jogou Shadow Tactics vai sentir como se Desperados 3 fosse um Shadow Tactics no velho oeste e vice versa. Isso não diminui nenhum dos jogos. Pelo contrário, mostra o quanto a Mimimi evoluiu como desenvolvedora.
Tentando ser o mais reducionista possível, jogos de stealth são como gigantescos quebra-cabeças onde a desenvolvedora te dá as ferramentas e a ambientação para que você as use. Você pode preferir avançar com tudo e eliminar todos os guardas, passar despercebido e ainda completar a missão, eliminar alvos específicos e nada mais. A franquia Dishonored — por muitos considerados como o sucessor espiritual de Thief — explora esse aspecto muito bem. Porém, fazer isso de uma maneira isométrica, com menos verticalidade e poderes, é mais complexo de um ponto de vista conceitual.
A primeira investida da Mimimi nesse gênero, Shadow Tactics, “sofreu” com isso. Não me leve a mal; ainda é um jogo além do seu tempo em muitas frentes, mas às vezes punitivo demais se você não seguia à risca o plano que tinha sido imposto. Missões me fazem lembrar da restritividade de Commandos 1/ 2 — que teve seu remaster no começo do ano e trouxe consigo a mesma gama de problemas.
Desperados III pega a experiência da Mimimi e eleva a patamares que eu considero a par com Thief, Dishonored e tantos outros grandes do gênero. As missões ainda têm objetivos bem definidos, mas o processo pelo qual você as completa é tão variado que eu nem tenho como colocar de maneira simples aqui.
Uma das mecânicas que parece bem inconsequente é o sistema de replay. Ao completar uma missão ele te dá uma visão geral de como cada um solucionava uma missão. Comecei a comparar missões entre eu e outra pessoa que estava jogando na época e ficava “ué, como você tomou essa direção?” ou “como você fez isso funcionar?” e eles me explicavam qual o pensamento por trás das decisões. Assumo que até cogitei algumas delas, mas o pathfinding — a minha única grande crítica a Desperados III — atrapalhou certos planos.
Como falei no começo da matéria, a Mimimi pode garantir para si parte da glória em vários aspectos, mas os fundamentos de Desperados sempre foram muito bons de um ponto de vista de jogabilidade. Se você jogou Desperados I ou II notará que a famosa faca de John Cooper, que pode ser usada no combate corpo a corpo ou à distância, voltou com força total, e McCoy e seu fiel rifle estão prontos para eliminar qualquer oposição, claro que todos eles com o refinamento dado para um jogo de 2020. O que a desenvolvedora alemã conseguiu foi desvincular a cansativa estética do velho oeste para uma ambientação mais variada.
Tanto Desperados quanto Desperados II e Helldorado (quanto menos falarmos desse “terceiro”, melhor) traziam consigo o falso misticismo do que é viver na fronteira da tal “conquista do oeste” para não dizer “dominação sob povos indígenas” — um lugar tanto real quanto irreal e fortalecido pela indústria de Hollywood com filmes como Eldorado, The Alamo e tantos outros protagonizados por John Wayne. O frequente uso de tons amarelados ou paisagens alaranjadas, terra sem lei com bandidos à solta, um mocinho e um vilão.
Desperados III não foge tanto assim à regra em questão de história; você tem o seu típico roubo de trem, as cidades fronteiriças, cânions… mas por outro lado há cidades bem elaboradas como Nova Orleans — talvez uma das minhas missões favoritas dada a complexidade e planejamento necessário para completá-la — e pântanos. Sem contar que os personagens receberam uma nova pincelada de personalidade, estando assim agora mais próximos de pessoas com seus interesses próprios do que meros avatares. McCoy já na primeira missão demonstra o seu desinteresse pela missão e sim pelo dinheiro; Cooper é alguém marcado pela vingança; Kate O’Hara tem os seus próprios motivos para juntar-se ao grupo. São pessoas com objetivos em comum que em circunstâncias diferentes teriam seguido os seus próprios caminhos.
Foi um daqueles jogos que — como tendo a fazer — não joguei só pela jogabilidade ou para me desafiar com a quantidade absurda de desafios presentes em cada missão (como completar a primeira missão em menos de 5:30m, um feito que eu ainda creio ser impossível), mas para ver até onde a história se desenrola, quais reviravoltas ela trará — sejam elas clichês ou não.
A minha segunda grande crítica ao jogo é o fato de ter um passe de temporada, já que o vejo como desnecessário. A história se fecha muito bem e o conteúdo — termo que detesto para descrever jogos mas cabe aqui neste texto — tem de sobra. Meu medo é que ela vá além do necessário e insira mecânicas que não condizem com o restante da temática e jogabilidade. Isso só o tempo vai dizer.
Todavia, diante da escassez de jogos isométricos que utilizam mecânicas de stealth de maneira eficaz — sendo um dos raros exemplos o híbrido entre stealth, RPG e sandbox Seven: The Days Long Gone e tantos outros citados aqui — Desperados III é praticamente uma obra prima. Ele requer paciência, te dá inúmeras vias de completar objetivos e acima de tudo recompensa criatividade ao invés de te pedir para seguir à risca tudo que te foi imposto. Os melhores jogos de stealth que já joguei se encaixam nessa categoria. E Desperados III sem sombra de dúvidas está nela.
Como já disse, para uns pode ser um Shadow Tactics: Blades of the Shogun refinado para quem jogou um dos primeiros jogos da Mimimi em 2016, mas para superar o que ela tinha estabelecido como ponto de referência para muitas desenvolvedoras, já é um feito e tanto. Então pegue o seu chapéu de cowboy (caso tenha um) e não esqueça de salvar o jogo antes de tomar uma decisão arriscada.
Desperados III
Total - 9.5
9.5
Excelente
Salvo a presença de um passe de temporada, que vejo desnecessário, e certos problemas de pathfinding, Desperados III é um dos melhores “soft reboots” ou “sequências” de uma franquia de stealth. Mantém o espírito do original, evolui onde precisa, diversifica onde era mais do que necessário e coloca a Mimimi como uma das empresas referência em termos de jogos de stealth isométricos. Não preciso dizer mais nada além de: jogue-o.