De tempos em tempos surge um jogo cuja premissa principal é: “Cace monstros ou outros seres por materiais e administre uma loja”. O conceito em si não é novo, e o boom no ocidente veio primariamente da tradução de “Recettear: An Item Shop’s Tale” para inglês. Mas desde que ele deu as caras, pouquíssimos jogos conseguiram entrelaçar o conceito tão bem e de formas tão interessantes quanto “Dave the Diver” (Steam). O sucesso para isso, é, ironicamente, não necessariamente seguir a fórmula até então estabelecida.
Eu não sei dizer se este era o plano da equipe da Mintworks assim que ela colocou “Dave the Diver” em acesso antecipado e o poliu até o seu lançamento em 28 de junho, mas tudo o que eu vi desde a cinemática inicial é uma ligeira ou grande quebra de padrões do que se espera de um jogo do gênero.
A maioria dos jogos desse estilo tendem a ter uma história superficial para “tapar buraco”. Um exemplo recente é “Moonlighter”, que, embora tivesse uma cidade enorme para ser explorada, ela não era nada mais do que um hub para as diversas catacumbas que o jogador explora. A personalidade dos personagens era feita de papel e eles estavam lá para agradar unicamente o jogador
Dave, o protagonista, não é o seu mergulhador sarado com um porte inimaginável; ele é um carismático gordinho que adora usar um chapéu e camisas que chamamos de “camisas havaianas”. Seu principal colega é um antigo investidor que está mais para aquele cara que não soube usar o dinheiro — como tantos investidores por aí — e acabou apostando no mercado de pesca. Até mesmo o chef do bar de sushi onde o jogador vai passar a maior parte do tempo ajudando a administrar parece ter saído de um filme de ação dos anos 90 ou um coadjuvante de “Blade”. Esses são apenas alguns dos personagens que você vai encontrar ao longo da história; outros podem ter papéis menores, mas não deixaram de me maravilhar com os seus momentos únicos.
Já quando se trata de hub, “Dave the Diver” não tem um hub; bem, ao menos não um que você pensaria tradicionalmente; o hub dele é o “Blue Hole” — o abismo marítimo onde você vai passar boa parte do tempo pescando animais. É nele também onde a maioria da história se desentrelaça com um incrível ritmo para aqueles que buscam apenas um lado narrativo, ou com a paciência de alguém que não tem a menor pressa nesse mundo para quem preferir seguir a dezena de objetivos secundários ou terciários.
A Mintworks garantiu que nenhum canto do gigantesco buraco de “Dave the Diver” fosse carente de atividades — seja fotografar espécies marinhas, obter itens para pesquisas marinhas, encontrar materiais para construir novas formas de caçar ou equipamentos aleatórios que te dão um pequeno “empurrãozinho” para completar certos objetivos, ou te ajudar na cozinha.
Minha paixão por esse lado de “Dave the Diver” foi tamanha que eu às vezes esquecia que ele era também um jogo de gerenciamento. “Olha só, acabei de melhorar o meu equipamento e agora posso mergulhar mais fundo, que espécies de peixe eu vou encontrar?”, “Ah, mas essa nova arma pode me ajudar a atordoar um peixe maior”, “Nossa, essa nova roupa de mergulho me deixa ficar muito mais tempo no mar, e agora o que eu posso fazer em relação a isso? Bom, que tal uma run só de coletar materiais já que o meu restaurante está recheado de peixes?”.
Era extremamente difícil me soltar das amarras da pesca e mergulho de “Dave the Diver”. Para comparação, essa era a sensação que eu esperava sentir em “Stardew Valley”, mas que nunca ocorreu devido ao fato de que “Stardew Valley”, para mim, é vasto como um oceano e, para mim, raso como uma poça.
Quando eu não estava fascinado pela vasta exploração do “Blue Hole”, “Dave the Diver” me dava ainda mais um empurrão entrelaçando de forma majestosa a narrativa principal. Um novo equipamento também equivale à oportunidade de ir mais fundo, encontrar os supostos “habitantes do fundo do oceano”. Eu não vou estragar algumas das tantas surpresas do game, mas te garanto que quanto mais fundo você for, mais história, mais objetivos e mais momentos memoráveis irão acontecer.
É a forma da Mintworks de falar “Eu sei que você gosta de caçar e gerenciar, mas o nosso foco também é a exploração, queremos te surpreender com a nossa história e mostrar que é possível equilibrar essa balança”. Nas primeiras horas de jogo, eu duvidei, mas depois eu estava certo de que a Mintworks fez a escolha certa.
Até mesmo na área de gerenciamento, algo que eu já estava preparado para me decepcionar, “Dave the Diver” não deixa a desejar nem um pouco. Ele não pode chegar aos altos do fantástico “Touhou Mystia’s Izakaya” — que para mim é o ponto de referência entre equilibrar minigames e gerenciamento — mas também não faz com que tudo seja automático.
A parte de gerenciamento ocorre durante o período da noite, quando o sushi bar está aberto e você – junto com seus funcionários – tentam atender a crescente demanda dos clientes. A quantidade de pratos e a variedade dos mesmos é exorbitante. Se você realmente quer que o restaurante faça sucesso, você vai ter que buscar os ingredientes corretos, saber como servir chá verde, cerveja, coquetéis, administrar a sua stamina para entregar os pratos para todos os clientes e ainda saber que tipo de funcionários contratar.
A complexidade e profundidade de cada nível de gerenciamento do restaurante daria facilmente um jogo em separado — aliás, vi muitos jogos que só se focaram nesse aspecto e não chegaram nem aos pés do que “Dave the Diver” atinge.
Mas quiçá o que mais me impressiona em todo o jogo é como a Mintworks conseguiu equiparar qualidade com quantidade. Detesto usar essa terminologia quando se trata de jogos, mas é verdade. A Mintworks poderia muito bem ter colocado cada minigame, cada objetivo secundário de “Dave the Diver” em sua própria bolha e criado incentivos patéticos para completá-los. Quantos jogos eu não já escrevi sobre que, ao completar uma cadeia de quests, o que eu recebia era um mero “item que aumenta 2% a sua sobrevivência contra um tipo específico de inimigos”? Nada disso em “Dave the Diver”. Cada melhoria, cada nova área, cada novo minigame, cada novo personagem que aparecia expandia tanto o jogo quanto a minha apreciação pelo trabalho da equipe coreana.
É por isto que no começo do texto falei da minha dificuldade de me soltar das amarras do aspecto de “pesca” de “Dave the Diver”. Tudo foi construído em harmonia, não de uma forma mecânica, mas sim de uma forma que me instiga a querer conhecer mais, explorar mais, ler mais. Para um jogo desse escopo e com essa premissa, é uma das coisas mais raras que se pode encontrar. Nada de elementos artificiais, de logins diários, ou a premissa de ser mais um Game as a Service — algo que teria se encaixado muito bem em “Dave the Diver” se a Mintworks quisesse que ele fosse. Ainda bem que ele não é.
O que ele é, acima de tudo, é um jogo gostoso de jogar. Tem lá os seus pontos altos de dificuldade, mas em momento algum eu senti aquele gosto amargo de “ugh, mais uma pesca”. Eu estava empolgado para mais um dia, mais uma noite no bar ou parte da noite pescando – uma das tantas mecânicas adicionais que são liberadas ao completar objetivos secundários.
Ele me trouxe o mesmo prazer de jogar a franquia “Atelier” – que, embora tenha feito mais sucesso no ocidente com Atelier Ryza, conta com um vasto catálogo de jogos onde obtenção de materiais e uma história tranquila são os seus pontos fortes.
Tal como eles, “Dave the Diver” tem um ponto final, um fim. A história chega ao seu clímax — e que clímax — e você vê os créditos rolarem na tela. Quando eu cheguei a este ponto depois de mais de 20h de jogo, eu não só estava aliviado por ver que a Mintworks soube entender que uma hora um jogo tem que acabar, mas também feliz que eu pude ter a experiência de jogar algo tão fascinante, com personagens tão fascinantes e mecânicas que, por mais “repetitivas”, não são cansativas.
“Dave the Diver” poderia ter sido muito bem mais um outro jogo a ser engolido pela gigantesca leva de jogos de gerenciamento de 2023. Poderia ter sido só mais um jogo mediano com mecânicas fracas ou com melhorias patéticas. A lista de games que eu vi só em 2023 fazerem isso é imensa e nem vale a pena listar aqui. Ao invés disso, eu o vejo como um novo patamar a ser atingido pelas desenvolvedoras. Ele compartilha espaço com jogos fantásticos como “Potion Craft”, o já mencionado “Touhou Mystia’s Izakaya”, e ouso até dizer “Cook Serve, Delicious”.
“Recettear: An Item Shop’s Tale” pode estar no passado para muitos e ainda o vejo como um clássico. Agora, é em “Dave the Diver” que os desenvolvedores precisam se inspirar. De longe um dos meus jogos favoritos de 2023 e candidato fácil a jogo do ano.
Dave the Diver
Total - 10
10
Um dos melhores, se não o melhor, misto de caça / exploração e gerenciamento dos últimos anos. “Dave the Diver” sabe equilibrar qualidade e quantidade, é repleto de personagens carismáticos, quebra dezenas de até então “paradigmas” do que deveria ser um jogo desse estilo. Unifica elementos — como minigames — que muitas vezes são deixados em suas próprias bolhas e ainda faz com que cada melhoria para o seu personagem ou seu restaurante seja significativa. Prepare um copão de café e mergulhe de cabeça em “Blue Hole” — você não vai se decepcionar.