No começo de novembro eu tive, por um acaso do destino, que recuperar alguns dados de um celular antigo que tinha. Depois de ter encontrado o que precisava, eu esbarrei em algumas mensagens e imagens antigas. Como é difícil passar por todo esse aprendizado, que só depois de anos fica evidente. Me solidarizo com qualquer pessoa que passe por isso, algo que deveria ser um exercício diário. Hoje eu me solidarizo especialmente com a Gunfire Games e o seu Darksiders III.
Estou muito longe de ser o maior fã de Darksiders; na realidade, eu sempre vi a série como algo mediano, mas com um potencial de crescer. War era um personagem sem a menor personalidade e Death era o equivalente de alguém que ouviu um pouco demais de Placebo na adolescência e agora odiava o mundo. As coisas melhoraram muito com Fury. E pioraram também.
Se demorou três jogos para a Gunfire Games, fundada por funcionários da finada Vigil Entertainment, refinar a história e trazer identidade para os personagens, a espera ao menos valeu em parte a pena. Fury é uma personagem que – dentro dos conformes e dos absurdos do universo de Darksiders – tem uma personalidade e tem um processo de crescimento. Sim, eu também estou surpreso.
O que me fisgou no trabalho da personagem – tentando ao máximo não entrar em território de spoilers – é que o conceito de fúria – e consequentemente ódio – são fáceis de serem entendidos. Compreender a origem deles é que é a parte complicada, seja você um cavaleiro do apocalipse ou o leitor desse texto. Progredir nessa área é algo lento, muitas vezes árduo. Ver que a personagem passava por isso, um sentimento com o qual eu tenho certa intimidade por conta de questões pessoais, foi o que me fez querer ver a trama até o fim. O que não sabia era que havia um preço muito alto a ser pago para descobrir o desfecho.
Como a história de Fury, muito o que envolve Darksiders III incorpora o tema de mudança, amadurecimento e aprendizado. A Gunfire veio com a ideia de que era hora de limpar a casa, de sair da sombra de ser um “Zelda, mas ‘dark’”, coisa que até mesmo a própria franquia da Nintendo fez em 2017. Também como todo processo de mudança, há uns tombos no caminho, e Darksiders III sofre muitos.
Vai-se embora aquela história de templos, de fetch quests e de andar a cavalo para que um mundo semi-aberto e interconectado seja implementado, mas falar que o jogo chega a ser um Metroidvânia 3D vai ser, infelizmente, dar crédito demais para a Gunfire.
Meu processo de reconhecimento de uma área é um pouco diferente do que eu vejo tradicionalmente; raramente fico deslumbrado com vistas, a não ser que seja um jogo com temática relaxante. Entro em uma nova área e imediatamente meu cérebro começa a categorizar cada item que vejo em grau de importância. Um túnel pode esconder um segredo, uma passagem pode dar para uma próxima área, um local com um brilho mais forte pode indicar um item, ou quem sabe um colecionável — algo que me chame a atenção. Áreas mais amplas de Darksiders III funcionam muito bem dentro deste conceito; eu facilmente identificava o que precisava fazer e para onde ir, o que é ótimo para um jogo que decidiu não optar pelo uso de um mapa em favor de um sistema de bússola. Bastou entrar na primeira área enclausurada e “opa, pera, onde eu estou? Eu já passei por esse corredor? Não? Ai droga, agora os inimigos voltaram porque eu morri, onde era o atalho mesmo?”.
Qualquer coisa que tenha um módico símbolo de linearidade vira a coisa mais “genérica” do planeta, mesmo que a área que a compõe não seja. Uma área de indústria, por exemplo, é visivelmente “corrompida” pela atuação tanto do Céu como do Inferno, é fácil entender para onde ir. Há uma certa identidade para ela. Dentro dessa mesma área eu fiquei perdido por duas horas pois um corredor de um metrô era ligeiramente idêntico a outro. Tudo bem, você não precisa contar uma história, desenvolver toda uma mini trama só para apontar um atalho, mas colocar os mesmos objetos posicionados em um ângulo diferente também não ajuda.
Agora sabe uma área que não necessariamente precisava de tanta mudança? Pois é, o combate. Tudo bem que nem todos gostaram do sistema de itens de Darksiders – me incluo nessa lista – e fico feliz que a Gunfire Games tenha decidido não acompanhar o “mercado AAA” de fazer um combate baseado em três árvores de habilidades que pouco impactam o quadro geral junto com um terrível sistema de crafting. Contudo, ela apostou em deixar o combate algo “pessoal” sem necessariamente compreender que pessoal significa não ter dezenas de inimigos na tela vindo para cima de você.
As primeiras três horas foram um martírio por conta disso. Fury começa com poucas habilidades ao seu dispor, os inimigos causam muito dano e o sistema de esquiva é, no mínimo, inconsistente. Nota-se uma tentativa de compartilhar o mesmo DNA que Bayonetta carrega, mas sem aquele polimento especial da Platinum Games. Ficava sem saber se era eu que errava o timing da esquiva, se os frames de invencibilidade (tempo medido em frames da animação de um personagem em que ele ignora qualquer dano infligido) variavam de acordo com a esquiva – lateral, traseira, ou frontal – ou algum outro fator, ou se o próprio golpe do inimigo que era o causador.
Quando um jogo estabelece que uma grande quantidade de inimigos é a base com a qual/sobre a qual ele quer trabalhar, você imagina que essa base vai ser expandida. Mais inimigos por área, mais formas de combater. O que Darksiders III faz? Contrai e volta para o mano-a-mano que havia estabelecido como objetivo. As áreas da metade para frente ficam dezenas de vezes melhores quando a desenvolvedora decide que colocar menos inimigos em conjunto com um arsenal mais diversificado – mesmo que o arsenal não consiga prover uma sinergia de combos tão natural quanto deveria – é a melhor rota.
Isso é enlouquecedor para quem vive e morre de destrinchar mecânicas de jogos (e deixar os subtextos para aqueles mais acadêmicos). Darksiders III não segue nenhum padrão exato dentro dele – seja de inimigos, seja de rotas, seja da própria construção do cenário. Uma hora eu estava em uma sala e pensava que aquela era a hora que o game ia sair do buraco, que ia engrenar de vez. Virava um corredor, caía em outra sala genérica e me frustrava. Encontrava um novo inimigo, tentava decifrar como ele se movimentava e cada impacto que ele poderia trazer no combate em si – e os golpes desferidos por ele não tinham consistência; podia conectar e dar dano, como não podia. Isso também serve para os chefões, que podem ser até considerados o “ponto alto” do jogo, mas não sem você morrer algumas vezes por que algo deu errado em algum ponto – e o que é este “algo” quase nunca fica claro. Eu raramente sou alguém vocal quando jogo, mas com Darksiders III eu soltei um “Por que você faz isso comigo?”. Era brincar de gangorra em forma de jogo, e eu detesto gangorra.
Queria poder pegar Darksiders III, quebrá-lo em blocos e separá-los em duas pilhas, pois existem dois jogos dentro dele. O primeiro é o que ele gostaria de ser – uma evolução que se afasta dos conceitos predominantes dos antecessores para o seu próprio bem e, como sua personagem principal, mostra que aprendeu a forjar uma identidade própria. O segundo são as entranhas do que acontece em todo processo de aprendizado e amadurecimento. A chave é saber quando essas entranhas silenciosamente aparecem e que é preciso arrancá-las de dentro de você.
Mas todo esse processo é doloroso, e como falei, erros fazem parte. Por isso que é tão difícil categorizar Darksiders III em termos de ser um jogo ruim ou bom. Termos que, sinceramente, já vejo como ultrapassados e simplistas demais no que eu vejo como a crítica moderna de jogos. Se War e Death foram o período confuso e adolescente da série, e Fury é a parte madura, o mundo que a cerca passa pela sua adolescência, confuso e sem direção.
Darksiders III
Total - 6.5
6.5
Darksiders III é tanto uma reflexão sobre o passado quanto um olhar para o futuro, o que resulta em um jogo confuso quanto às suas origens e para onde deve seguir. Fury é a melhor personagem, mas o mundo que ela habita – e as regras que o governam – ainda precisam sair desse limbo para que a série finalmente atinja o sucesso que merece.