O que é viver em um mundo sob constante opressão? Não sou a melhor pessoa para falar sobre isso; sei que as feridas ainda são tão relevantes quanto anos atrás, mas também sei que estão longe das marcas daqueles que têm que lutar contra isso no dia a dia. Essa luta é o tema de Dandara (PC, Xbox One, PlayStation 4, Nintendo Switch, iOS, Android), o game de exploração e aventura dos brasileiros da Long Hat House, e relembrar essa luta fez algumas de minhas feridas abrirem.
Inspirada em Dandara dos Palmares, esposa de Zumbi dos Palmares – personagem histórica ao redor da qual há um grande mistério devido, em parte, ao desinteresse e negligência em manter o material da época sobre ela – aqui é retratada como uma guerreira feroz, capaz de libertar o reino do Sal da opressão do exército Eldariano.
O sal é a união de tudo no reino de Dandara; é o que une a intenção e a criação, o que movimenta Dandara, e torna o mundo vivo. Diferente de outros jogos como Hollow Knight, ou Metroid, a navegação de Dandara não é exatamente linear; ao invés de você ter de andar “tradicionalmente”, pode somente navegar por áreas onde existe sal – sejam elas localizadas no teto ou no chão dessas áreas.
Controlar Dandara é um deleite. Ela é incrivelmente ágil, quica pelas paredes como uma pluma, destrói os inimigos como se fossem nada. Ainda assim, por mais libertador que seja esse sistema de controle, eu era tomado por uma sensação de limitação; não por causa dos controles, mas pela ambientação do jogo. O mundo do Sal, antes de ser dividido pelo exército Eldariano, demonstrava ser um lugar vivo – onde a criação prosperava, fosse ela musical, literária, ou artística. As primeiras áreas do jogo utilizam mecanismos e quebra cabeças que remetem ao ato da pintura – como uma personagem inspirada por Tarsila do Amaral – ou ao músico que teve o seu “som” perdido desde que o equilíbrio se perdeu, dentre tantos outros personagens que você encontra na sua jornada. Cada um deles estava oprimido de alguma forma, seja acuado em sua casa, abalado na sua crença, ou com medo de sair de seu casulo e enfrentar a opressão.
Dandara não pode desfrutar dos mesmos privilégios dos Eldarianos, capazes de andar sobre o Sal como se fosse natural a eles. Por mais que quicar pelas paredes seja um sistema de movimentação que – pelas mecânicas do jogo – se torna natural para o jogador, ela não é o “natural” no mundo do Sal. É o caminhar que pode ser considerado o “tradicional”, coisas que Dandara – assim como a pessoa na qual foi inspirada – nunca de fato sentiu. Quanto mais tempo você é o privilegiado, mais as coisas parecem “corretas” para você, e a mudança gera incômodo. Não é só uma brilhante decisão de design, onde o jogador requer uma adaptação a um mundo oprimido; é uma sutil crítica ao estado do nosso país, quiçá de toda a história.
Quanto mais me aprofundava no mundo de Dandara, mais proeminente ficavam essas críticas. Manipulador, o terreno do Exército Eldariano deixa de lado a liberdade de criação e a imaginação. Expõe um ambiente ainda mais opressor; estéril, calculado, regido pelo controle completo. Isso me trouxe um imenso desconforto; era como ter toda a minha alegria sugada em prol do suposto “avanço” que privilegiam poucos – esta, uma questão que ainda tem muito espaço para debate.
Dandara, controlada por mim, não aparentava se abalar. Quicava, usava armas especiais (como mísseis ou magias), dominava os opressores ao inverter as regras deles e assim pegá-los de surpresa em seu mundo tão regrado. Se a limitação trouxe impedimento, também trouxe criatividade. Uma “força” que a Long Hat House conseguiu extrair majestosamente, seja nos agradabilíssimos quebra-cabeças ou nas eletrizantes lutas contra os chefões – que não ficam devendo nada em relação a grandes nomes como Metroid, Hollow Knight ou Castlevania.
Entretanto, não deixo de traçar as minhas críticas acerca de alguns aspectos da jogabilidade do game, principalmente em questão do quão punitivo ele pode ser em determinados momentos. A principal moeda para melhoria da protagonista é o Sal, obtido ao eliminar inimigos, ou encontrado em baús espalhados pelo mapa. Porém, assim que Dandara é derrotada, ela tem que percorrer todo o caminho até o seu corpo para recuperar o Sal perdido. Leio esta mecânica como um retrocesso na luta contra a opressão, mas a forma que a desenvolvedora escolheu para implementar a mecânica faz com que seja fácil jogadores não tão habilidosos perderem Sal e terem assim ainda mais dificuldade em progredir na história.
Estendo a crítica de acessibilidade também para o mapa, que às vezes pode ser um pouco confuso demais de se navegar – ainda mais ao levar em conta o fato que ele não gira em relação à posição de Dandara. O “em cima” pode não ser de fato “em cima”, e o “em baixo” pode não ser de fato “em baixo”, o que prejudicou alguns momentos de backtracking, e tornou ocasionalmente difícil entender para onde exatamente eu precisava ir. São manchas que permeiam o que até então era – e ainda é – um incrível jogo, e eu espero que a Long Hat tome o seu tempo para rever essas mecânicas e fazer os ajustes necessários.
Terminei Dandara não com um sorriso na cara, mas com um grande peso no coração. É uma história bela, mas triste. O silêncio da música, da criatividade, da nossa capacidade de ir e vir, de sermos livres sem que nos julguem. Em maior ou menor intensidade, todos nós fomos oprimidos em algum ponto da vida; seja pelas nossas escolhas, pelo nosso estilo de vida, ou por não cabermos na mesma “caixinha” que os outros.
Aceitar quem somos é uma luta diária, e eu jamais serei capaz de pôr em palavras o quão pior é para as minorias, para os marginalizados, os esquecidos pela sociedade, os rotulados como uma “ameaça aos bons costumes”. Foram anos de longa introspecção para aceitar quem eu sou. De certa forma, estava também preso ao meu Sal, incapaz de me movimentar como o restante da sociedade. Tal como Dandara, quicava pelas minhas próprias paredes e tentava desviar das “ameaças”. Falhava, recomeçava, falhava mais uma vez, recomeçava.
A história do nosso país não fez justiça à nossa Dandara dos Palmares, deixada de lado como uma nota de rodapé que só os mais curiosos e interessados vieram a ler. Mas não será assim com a Dandara da Long Hat House; dessa vez, as ações dela não serão esquecidas. Ao menos, não serão esquecidas por mim.