Meu sonho de um jogo que envolva o Rally Dakar já existe desde muito antes de eu sequer cogitar ter um site. Olhava os lançamentos anuais e pensava: “Quando vão fazer um jogo ao menos decente sobre uma das competições mais famosas do mundo?”. Naquela época, mesmo eu sabia o quão difícil seria um projeto desses. Primeiro pela sua ambição e diferentes categorias, segundo pela sua peculiaridade caso uma desenvolvedora fosse ousada o suficiente para fazer do jogo um “mundo aberto”. Avance uns 14 anos e cá estou com o “Dakar Desert Rally” (PC / PlayStation / Xbox) da Saber Porto. Tudo o que eu imaginava que um jogo do Rally Dakar pudesse ter está nele. O que não está é a forma que ele é organizado.
Considerado pela desenvolvedora quase como um “Sucessor” de Dakar 18, que tinha mais cara de um jogo arcade com uma “estampa oficial” do torneio, “Dakar Desert Rally” mira para as estrelas. Todas as categorias — de motos aos gigantescos caminhões — estão presentes e jogáveis. Rotas da edição 2020, 2021 e 2022 estão incluídas e no topo disso tudo uma área gigantesca para ser explorada…em breve.
Pois é, “em breve”. Embora tanto a Saber Porto quanto a Saber Interactive tenham comentado múltiplas vezes durante o seu período promocional que o jogo iria ser lançado com um gigantesco mapa para ser explorado e a possibilidade de criar rotas personalizadas, o sistema foi adiado para uma futura atualização. A informação só foi liberada cerca de dois dias antes do lançamento oficial — uma jogada suja sem igual. Mas, por outro lado, eu não sei se ter esse terreno todo e eventos personalizados serviria de alguma coisa no atual estado do game.
Eu gosto de dizer que jogos de rally são um misto de tensão, precisão e perseverança. Cada curva faz teu coração quase sair pela boca, a sua atenção precisa estar tão afiada que uma indicação errada do seu navegador pode resultar em desastre. Centenas de partidas de “WRC10”, “Richard Burns Rally” e “Dirt Rally 2.0” me deixaram exausto, tamanha a concentração que eu usei. Em “Dakar Desert Rally”, eu saí muitas vezes mais frustrado e cansado de tantos problemas que eu encontrei em um único estágio do que qualquer outro sentimento.
Em uma tentativa arriscada de “ser um jogo para todos”, a Saber Porto dividiu “Dakar Desert Rally” em três graus de dificuldade: “Sport”, “Pro”, e “Simulation”. O primeiro atua mais perto de um jogo de corrida “tradicional”, com waypoints e direções claras dos perigos na estrada; o segundo remove os waypoints mas mantém parte das direções. “Simulation” é o meu sonho de um jogo de corrida de Dakar, com pistas que duram 40 minutos ou mais, ausência completa de navegação a não ser via GPS e RoadBook, e puro sofrimento. O último modo só é liberado quando você atinge o nível 25 — ou seja, pode marcar umas 15h no mínimo para ter acesso a ele.
Você sentiu um cheirinho de “isso não vai dar certo” no parágrafo acima? Pois é, não dá, e isso não vem só dos diferentes modos de jogo. Dirigir qualquer outro veículo que não seja um caminhão ou um carro é um exercício de frustração. Quadriciclos e motos derrapam em qualquer tipo de terreno assim que você entra em uma curva mais fechada e não há nenhuma solução a curto prazo para isso. Não adianta ajustar a suspensão, equilíbrio dos freios ou outra parte do veículo — eles irão derrapar como se o chão fosse feito de gelo.
Nem mesmo os carros e os caminhões se safam totalmente deste defeito. Eu consegui, com muitíssima paciência e testes atrás de testes, encontrar uma configuração para uma das dezenas de carros e equipes disponíveis no “Dakar Desert Rally” que não me fazia derrapar à toa.
Para compreender melhor o estado do jogo, imagine a seguinte situação: você vai fazer uma curva para a direita e seu carro está a 80km/h. Você pressiona o freio para desacelerar e fazer a curva. Agora coloque um terreno de terra batida, o seu carro vai precisar de mais tempo ou mais pressão para desacelerar, certo? Independente da escolha que você fizer em “Dakar Desert Rally”, o jogo vai interpretar como: “você acabou de pisar nos freios com toda a força e as suas rodas vão travar”.
Se você é um leitor assíduo do site ou por acaso esbarrou com alguma crítica minha, sabe que esse tipo de situação me tira o sono. Deito na cama e fico: “Por que as rodas travaram naquele estágio?”. Eu vou até os confins do mundo para tentar entender o que está acontecendo e se é uma falha minha ou do jogo em si.
Eu sentei, testei dois volantes (um G923, e um Thrustmaster t300). Ambos me deram a impressão de que o jogo transmite menos informações para os volantes do que quando se joga com um controle. Parece que, ao jogar com um volante, o carro tem ainda menos aderência nos diferentes tipos de terreno, o que só fez as minhas corridas serem ainda piores. Com a falta de opções como um sistema de telemetria e as imensas limitações do sistema de ajustes do veículo, a resposta definitiva permanece um mistério. Mas sem dúvidas há algo de muito, mas muito errado.
Outros dois gigantescos obstáculos criados pela própria Saber Porto em “Dakar Desert Rally” vêm da IA e da forma que os eventos são organizados. Ao invés de criar eventos “separados” para cada categoria — o que eu sei que iria dar muito trabalho — a desenvolvedora encurta múltiplos eventos de 40 minutos em corridas de 4 minutos. Resultado: o seu navegador diz que você tem um perigo a 4km de distância, na verdade isso significa que você está a 100m de distância e sequer terá tempo de reagir.
Se você tiver tempo de reagir e não derrapar, provavelmente será jogado longe, graças a uma IA mais agressiva do que o trânsito do Rio de Janeiro, e olha que isso é um feito fantástico. Carros oponentes ou de outras categorias batem em você, colidem, prendem de alguma forma a sua carroceria e se fundem como em um filme transhumanista do Cronenberg, e a sua única opção é reiniciar a corrida.
Eu pensei que isso era um problema específico do modo “Sport” ou do modo “Pro”, já que as corridas eram curtas, mas depois de progredir e liberar o modo “Simulation”, eu perdi uma corrida de 50 minutos por conta que um caminhão decidiu se fundir com o meu carro nos 15 minutos finais. Eu joguei a toalha e parei de jogar por dois dias, tamanha a frustração.
Quem dera os problemas do “Dakar Rally Racing” parassem por aí, mas não, eles só amontoam. O sistema de progressão é bizarro, forçando você a liberar equipes e veículos por meio de um sistema de “máquina caça níquel” toda vez que você sobe de nível, e carros clássicos estão presentes mas não em uma categoria específica — o que os torna redundantes.
Ele também comete o terrível erro de presumir que todas as pessoas que estão interessadas nele, por mais que abrace essa identidade de “ser um jogo para todos”, só caem em duas categorias: pessoas que querem jogar ocasionalmente ou os fãs mais ferventes da franquia. Por consequência, o RoadBook — livro de anotações usado no Rally — sequer possui um tutorial. No início do texto eu disse que a competição usa uma nomenclatura e simbologia muito específica. Relegar isso para um menu com explicações muito básicas e legendas é garantir que poucos vão sequer ousar sair da zona de conforto do modo Sport para o Pro.
O que deixa o gosto mais amargo de todos na minha boca é que, quando eu olho para os detalhes de “Dakar Desert Rally”, tudo que poderia torná-lo um jogo fantástico está presente de uma forma ou outra. O sistema de modelagem de dano é competente, o esforço que a Saber Porto fez para demonstrar visualmente a transferência de peso nos carros é estonteante e os visuais são soberbos. Até a IA, que recebeu duras críticas, tem momentos de “brilhantismo”, e revela que não segue um padrão restrito e pode cometer erros. Mas quando se tem um esqueleto de um jogo, nada disso importa.
Dói ainda mais saber que não tem como “replicar” o evento em outros jogos. Posso não gostar muito de F1 22 da Codemasters, mas quando eu não quero lidar com a dezena de problemas dele, basta abrir meu Assetto Corsa com um dos veículos da F1 e fazer uma corrida — seja online ou não. A Sabre Porto tinha uma oportunidade de ouro, e a desperdiçou.
Na data da publicação desta crítica, a própria Saber Porto anunciou uma série de medidas que serão incluídas no jogo “em breve”. Dentre elas estão melhorias no sistema de IA e correção de bugs. A desenvolvedora não mencionou nada sobre os carros que derrapam por nada, o terrível sistema de navegação, ou a bizarra progressão. Para mim isso me soa como “é pegar ou largar”.
É bem provável que daqui a um ano a qualidade de “Dakar Rally Racing” esteja bem melhor do que o que eu joguei. “Atualizações virão”, é o que tendo a dizer. Mas, a partir do ponto que você faz uma jogada suja como cortar um conteúdo que foi continuamente mostrado via material promocional dias antes do jogo ser lançado, toda a minha confiança vai para o ralo.
Pode ser mesmo que as atualizações venham, que outras pessoas interessadas no torneio venham a jogar e reclamar nos comentários “Mas agora está bom! A Saber Porto acertou a mão”. Eu vou ficar feliz por eles, pela opção de poder jogar em um modo de mundo aberto, pela possibilidade de assistir replays (que diabos de jogo de corrida é lançado sem um sistema de replay?!), mas nessa história de pegar ou largar, eu larguei.
A espera continua por um jogo competente de Dakar…
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A incrível ambição da Saber Porto em incluir uma montanha de estágios e estilos de jogo em “Dakar Desert Rally” significa quase nada perto dos sacrifícios feitos para isso. Do controle terrível de praticamente todos os veículos, a progressão bizarra e uma IA horrenda, o game está em uma situação pior do que a de um caminhão atolado na areia. Não sei se os socorros chegarão a tempo.