Há alguma chance da Paradox superar oito anos de desenvolvimento, DLCs, atualizações, refinamentos e balanceamento em uma só tacada? Não. Comparar Crusader Kings 3 (Steam) com o jogo base de Crusader Kings 2 deveria ser justo, mas não é, considerando o modus operandi da desenvolvedora sueca. Entretanto, desde que o joguei para o meu preview em maio, eu senti muito menos vontade de jogar o seu antecessor.
Não era o cheiro de “novo” que me atraía. Uma breve olhada no meu computador mostraria muitas “velharias” que até hoje me divertem — de Magic Carpet a Arsenal of Democray, um “spin-off” de Hearts of Iron 2. É que o novo de Crusader Kings 3 é menos “vamos reinventar a roda” e mais um “mashup” de tudo que Crusader Kings 2 fez muito bem.
É fácil apontar certas falhas de Crusader Kings 3 já de cara. Você não pode jogar com repúblicas mercantis; alguns grupos nômades como os Mongóis não tem a mesma variedade de decisões em comparação com Crusader Kings 2 se você possuir o DLC “Horse Lords” (mas convenhamos, quantos de vocês realmente gostam de Horse Lords?); regiões como o Oriente Médio tem a sua base bem estabelecida mas suponho que isso venha a ser expandido por meio de atualizações gratuitas ou DLCs; o “Ruler Designer” não está presente no lançamento — apesar de já ter sido confirmado como uma atualização gratuita. Por que diabos, então, eu preferiria jogar Crusader Kings 3 ao invés de seu antecessor? Porque, bem, Crusader Kings 3 tem um foco muito mais direto no que ele quer ser do que Crusader Kings 2.
Se formos examinar a história recente da franquia, eu vejo Crusader Kings 2 como um sucessor espiritual do abandonadíssimo Sengoku. Sengoku — muito como o posterior Stellaris — tentava misturar elementos “complexos” de Grand Strategy com conceitos rasos de roleplaying. Era uma zona, mas a zona serviu como planta base para o crescimento de Crusader Kings 2 até os seus últimos DLCs, dos quais tínhamos sociedades secretas, a opção de se casar com cavalos (?), e os mais diferentes povos e culturas representados. Mas persistia no jogo uma camada de estratégia ainda pesada que muitas vezes o arrastava para baixo desnecessariamente.
Da seleção de seu personagem em Crusader Kings 3 até os momentos iniciais da partida, é notável ver como a Paradox usou três pilares para construir o game: desenvolva o seu personagem da maneira que você quiser, estabeleça a sua dinastia e mude o sistema de religião que você possui para o que bem entender.
Embora soe como um gigantesco distanciamento do que fazia Crusader Kings 2 “especial”, para mim faz o contrário. Eu sempre me senti restringido pelo sistema de escolher uma ambição, de atender certas demandas que o jogo pedia — era como ser guiado por linhas invísiveis que muitas vezes resultavam em partidas com o mesmo rei, duque ou seja lá quem você escolher, nas quais ele parecia mais dependente dos eventos aleatórios do que de ações “suas”. Mods, é claro, ajudavam com isso, mas dependência de mods em um jogo é um assunto complicado que merece um artigo próprio.
O que eu senti nas dezenas de partidas de Crusader Kings 3, muitas delas cortadas pela metade já que ninguém de fato termina uma partida de um jogo da Paradox (ou porque eu fui usurpado do trono, morto ou algo pior) é de que eu estava muito mais no controle do meu personagem — e de como influenciar aqueles a minha volta do que jamais senti em seu Crusader Kings 2.
Um exemplo que serve muito bem para isso é começar a partida com Ghana, um dos maiores reinos do norte da África — onde diferentes culturas nem sempre eram toleradas, múltiplas religiões se espalhavam de acordo com o “fervor” delas e qualquer tentativa de assimilar ou dominar uma província significaria uma redução de controle significativa. O que o mestre especialista fez aqui? Ao invés de escolher o estilo de vida e as suas respectivas perks — uma das novas funções de Crusader Kings 3 que entram no lugar de ambições e afins — de “martial” que aumentaria minha proeza em combate, eu optei por “stewardship” para ganhar mais dinheiro. Que dinheiro? Minhas terras eram infrutíferas; o forte da tribo era saquear outros reinos — também com um sistema muito mais simples de entender sem perder as nuances — e eu preferi cuidar do pouco dinheiro que eu tinha! Há uma opção para resetar as perks em troca de stress (mais em breve sobre isso), mas eu gosto de viver com as minhas decisões e falhas.
Dito isso, eu segui com o quase impossível objetivo de unificar todo o continente Africano. Como um bom Crusader Kings, há múltiplas maneiras de fazer isso: guerra, esquemas, casamentos, assassinatos — quero dizer, acidentes —, mas o meu preferido é o sistema de hooks.
Já comentado nas minhas prévias sobre o jogo, “hooks” são meio que uma forma de você forçar outros personagens a fazerem ações com as quais eles não necessariamente concordariam. Hooks fracos podem ser usados para convidar alguém para sua corte, enquanto hooks fortes podem te ajudar a completar um esquema de assassinato daquele duque ou rei que está te enchendo o saco por metade da partida.
Peguei meu spymaster — e ao contrário do meu preview, achei melhor não tentar assassinar dessa vez — e o coloquei para buscar “podres” sobre outras cortes. O resultado foi ganhar hooks fortes em muitos personagens. Se eu matasse o líder de Kanem, que não tinha mais herdeiros (não sei o que houve com eles, muitos acidentes eu presumo) e entrasse em guerra com Kawkaw e seus aliados, meu filho — Magan Zoumana II — estaria na linha de sucessão e novas terras estariam ao meus dispor. Ghana seria, forte, gigantesca, rica! Só que tinha um pequeno problema… as diferenças entre culturas e religiões.
Antes de chegar nesse problema é preciso comentar sobre o novo sistema militar de Crusader Kings 3. Enquanto o seu Crusader Kings 2 foi construído numa base que era já muito bem estabelecida pela Paradox no que diz respeito ao formato de combate de seus jogos Grand Strategy, o terceiro jogo dá uma repaginada a qual eu considero em muitas frentes fantástica.
Guerras tendiam a ser o que menos me interessava em Crusader Kings; estenderia essa crítica até mesmo a Europa Universalis IV e Stellaris. Nesses jogos, de forma geral, quem tem o maior número e os dados ao seu favor ganha. Foi só a partir de Imperator: Rome, visto por muitos como o atual “patinho feio” da desenvolvedora, que um formato com mais nuances e também mais complexidades começou a se estabelecer.
Navios não estão presentes em Crusader Kings 3, e eu vejo isso como uma decisão ótima, já que combate naval junto com a IA da Paradox não funciona. O que entra no seu lugar são mais tropas especializadas ao invés dos levies. Cada país / região tem a sua tropa especial; você pode recrutar soldados armados montados em camelos ou arqueiros das estepes para compor as suas tropas, e além disso você tem os cavaleiros, que podem ser um imenso modificador para como as batalhas se desenrolam.
A Paradox gera um sistema que não só é mais fácil de aprender, em parte devido à nova enciclopédia e ao sistema de dicas que vai ajudar de novatos a veteranos a aprenderem o jogo, como um onde guerra não é só jogar dezenas de tropas uma em cima da outra. É saber quando avançar, quando recuar, quais são os modificadores de terreno que você pode usar a seu favor. Até mesmo cercos, que antes eram dolorosamente tediosos, podem ter o seu tempo encurtado com máquinas de cerco criadas a partir desses regimentos personalizados. Mas, tudo isso é claro, tem um custo — um custo às vezes alto demais para um país como Ghana.
O foco em manter os meus domínios rendendo uma boa (pouca) grana deu o efeito dominó de eu ter de depender de Levies e apenas um regimento de Men-at-Arms para navegar por terras onde o suprimento ia causar atrição nas minhas tropas, e isso significava ter que torcer para que as maiorias das batalhas me favorecessem. Saí da capital com mais de 3000 soldados, terminei a conquista com 900 na mais pura sorte. Uma sorte que iria se esgotar em breve.
Assim que eu tomei a província de Kawkaw de seus aliados, um esquema foi descoberto e meu filho foi assassinado. “Maldito seja o líder de Kanem”, pensei. Mas o assassinato não partiu de um deles, mas sim de um dos meus vassalos que queria um lugar no conselho e invejava a minha conquista territorial. Quer saber, que se dane essa história de dominar a África. Agora essa é uma história de vingança. E que perdurou por décadas.
Selecionei o vassalo que me apunhalou pelas costas e usei uma nova funcionalidade de Crusader Kings 3, o “pinning”. É uma função simples onde você pode colocar personagens importantes no canto superior direito junto com as suas províncias. Eu selecionei ele, a sua esposa, seus filhos, tios, tias, parentes, primos, toda a dinastia. Cada um deles seria preso e executado. Meu vassalo se esqueceu de que eu tinha uma gigantesca carta na manga — a capacidade da minha religião aceitar sacrifício humano, e não só isso: sacrifícios aumentavam o meu “piety” que, por consequência, aumentava a opinião dos lideres religiosos e dava acesso para novas decisões e taxas de templos religiosos (ou o equivalente da sua religião).
Minha sede de vingança começou com o vassalo; coloquei meu spymaster para descobrir um “podre dele”, prendê-lo, torturá-lo e assassiná-lo. Meus outros vassalos ficaram, como esperado, aterrorizados, mas ao mesmo tempo não tinham coragem de se levantar contra mim.
Assim foi com o filho, a filha, a esposa, e mais outros parentes. Uma briga que começou em 872 — poucos anos depois da data inicial da partida — e terminou em 1150. Alguém da família tinha um novo filho? Então já estava na minha lista. Como disse, foi demorado e muitos diriam que foi uma grande perda de tempo, mas uma hora a vida bate na porta e a vingança chega.
Com Piety suficiente para reformar a minha religião, e agora controlando o sucessor do meu trono Magan Zoumana III — já que meu personagem original tinha morrido de causas naturais em 1020 —, decidi remover sacrifício humano como um dos pilares da religião.
Reformas religiosas são outro ponto muito importante de Crusader Kings 3 e creio que a maioria dos jogadores vai se apaixonar por elas. Quer transformar o catolicismo em uma nova religião que aprova práticas satanistas ou bruxaria? Vá em frente. Ou quem sabe você acha que sacrifício humano vale a pena? Ótimo! As possibilidades são inúmeras, mas não vou me estender muito no assunto e apenas dizer que para mim não valia mais ter sacrifício humano como um dos pilares da minha religião. Só que desta vez esqueci de outro problema: nem todos os vassalos vão ser converter para essa religião de cara.
Dos meus doze vassalos, apenas quatro deles decidiram me apoiar nessa conversão religiosa. Eu não sei se defino o que se seguiu como guerra santa, guerra civil, ou uma zona generalizada onde exércitos marchavam para cima e para baixo na tentativa de tomar províncias ricas ou fortes. Ter decidido manter meu focus em Stewardship me mordeu na bunda feio dessa vez. O dinheiro estava entrando, mas as minhas tropas se esvaíam que nem a areia do deserto.
A guerra civil chegou ao fim. Minha morte ao menos foi rápida — um golpe de lança durante o cerco da capital. Melhor do que o sofrimento que causei a tantos outros.
Tenho mais contos que podem encher duas, três, quatro ou até cinco páginas aqui. A minha tentativa maluca de tentar manter o Império Sacro Romano Germânico em pé enquanto guerras assolavam a região sul, ou quando tentei capturar reis para obter um dinheiro extra nos cofres para financiar uma guerra do outro lado do mundo, ou a típica história de incesto. Afinal, isso tudo é Crusader Kings e não seria Crusader Kings sem que ocorresse incesto, traição, assassinato e muito drama.
Drama sempre foi um dos maiores fortes de Crusader Kings; afinal, atrás de toda guerra, ação maléfica ou benéfica, há uma história, uma trama a ser descoberta. Crusader Kings 3 é capaz de pegar esse foco e colocá-lo no palco central sem deturpar tanto as outras peças.
É um jogo cheio de surpresas, reviravoltas, situações caóticas, cômicas, desesperadoras e quem sabe até mesmo emocionantes. Pegá-lo no seu lançamento e esperar que tenha o mesmo grau de nuance e suposta complexidade que foi adicionada por oito anos em Crusader Kings 2 é pedir o impossível, mas assim que você põe as mãos nele, vê tudo que mudou, como elementos que antes eram uma dor de cabeça de gerenciar foram “desmistificados” — e, por isso mesmo, olhar para trás é muito difícil.
Se algo, vai ser um jogo bem divisor de opiniões entre a comunidade. Aqueles que jogam com clãs vão sentir falta de algo mais profundo, quem tem saudade das já mencionadas repúblicas mercantis não vai ficar feliz com a versão 1.0.
Eu? Eu estou mais do que contente. Pode não ser o jogo dos meus sonhos, pode não ter atendido todas as minhas expectativas como a presença de sociedades secretas e outros pormenores que eu creio que virão com o tempo. Mas mesmo assim, chegar com um jogo que me deu vontade de deixar para lá algo que por tantos anos foi presente na minha vida é um feito magnífico, digno de entrar para a minha história pessoal como um caso raríssimo.
Crusader Kings 3
Total - 9
9
Criar uma sequência para um jogo que foi acompanhado por oito anos de DLCs e atualizações gratuitas é um feito quase impossível. Crusader Kings 3 pode não superar todos os feitos de Crusader Kings 2 no momento, mas assim que você pega o jeito, aprende as nuances, abraça o drama, é muito difícil voltar para o antecessor. Por esse aspecto eu já o considero um imenso sucesso.