Há uma sequência do primeiro episódio da segunda temporada de Stranger Things na qual, por algum motivo, a produção decidiu colocar quatro ou cinco músicas dos anos 80 – e isso me fez questionar “Por que eles ainda martelam tanto nesse tema, sendo que eu já entendi o período que se passa dez episódios atrás?”. Crossing Souls (PC, PlayStation 4) é essa cena estendida por oito horas.
Ambientado em Tujunga, um dos bairros do vale de São Fernando na Califórnia, o game conta a história de cinco jovens que, após encontrarem uma estranha pedra, ganham a capacidade de ver dentro do Duat, o reino dos mortos na mitologia Egípcia. Como você já deve ter imaginado, outros grupos de interesse estão atrás dessa pedra e colocarão o futuro dos protagonistas em cheque.
Crossing Souls exala anos 80 – da sua entrada retrô aos personagens, referências e trilha sonora. Não nego que existe um carinho especial da Fourattic em representar – a seu jeito – o período. A arte em si é um caso à parte de tão espetacular que é. Detalhes dão vida aos cenários; do simples ato de fechar uma porta à palheta vibrantes de cores usada para as cenas. Todavia, ao invés de usar esse pano de fundo para contar uma história, o jogo faz dele praticamente a história.
Estereotipado até a última instância, o game mais parece uma bizarra coletânea de referências da época. “Ah, você se lembra de filme tal? Que tal uma referência dele no meio de uma conversa aleatória? Ou, que tal essa memória que você pode ou não ter, mas está tão inserida no coletivo popular que podemos referenciá-la aqui e você vai ter um impacto nostálgico. Bem, ou isso ou uma risadinha.”, era o que me dizia o jogo a cada minuto.
Isso se apresenta na “melhor” forma dentro dos personagens. Você tem o Matt, o “nerd”, Chris, o “típico garoto norte-americano rebelde”, Kevin, “o irmão mais novo da turma”, etc. Os estereótipos da trupe não são algo inesperado – é a forma como eles se apresentam e conversam entre si o causador do problema. Ao constantemente sinalizar que o jogo é ambientado na década de 80, os diálogos acabam por se tornar um recipiente de referências ao invés de terem uma personalidade própria.
Voltemos a Stranger Things por um minuto. Se você viu pelo menos a primeira temporada, há como notar uma evolução na personalidade e maturidade de cada personagem; alguns subvertem expectativas, outros quebram os estereótipos nos quais estavam moldados. Em momento algum eu vi isso acontecer em Crossing Souls. É o mesmo tom previsível do começo ao fim. Claro que uma hora vai aparecer um vilão, que vai haver algum drama entre esses personagens e que vai se solucionar como toda amizade inspirada por um filme dos anos 80.
Cansa. O ritmo da música cansa, os cenários de combate são insossos e os quebra-cabeças sequer passam algum senso de prazer ou vitória de tão previsíveis que são.
Parte desse cansaço não é culpa de Crossing Souls, é também oriundo da ascensão do estilo visual repleto de neon e “80s” que ocorreu nos últimos três anos. Canais no Youtube de retro/chillwave que reproduzem comerciais do período (melhor exemplificado pela análise da música Home – Resonance), os reboots, a constante necessidade de criadores de se agarrarem nos – presumidamente – melhores momentos das suas vidas e reproduzi-los em um jogo.
Vejo a necessidade de referenciar dois papers, “Collective Cultural Memory as a TV Guide ‘Living’ History and Nostalgia on the Digital Television Platform” por Berber Hagedoorn (2017) e “A semiotic analysis of nostalgia as a connection to the past” por Aurélie Kessous e Elyette Roux, para delinear essa aplicação da nostalgia.
Hagedoorn, em uma análise sobre a programação da TV Holandesa pelo canal NostalgieNet demonstra uma necessidade extrema de recontextualização de eventos para uma nova audiência, o recorte de arquivos de vídeos antigos justapostos com uma nova narração, dando a eles um significado – e profundidade – maior do que quando haviam sido veiculados inicialmente. Já Aurélie Kessous e Elyette Roux categorizam quatro tipos de “nostalgia”, que vão de lembranças familiares a “ritos de passagem” como o ato de fumar o primeiro cigarro, onde aconteceu o primeiro beijo, e a influência que marcas têm nesse processo como fatores determinantes para a criação desse efeito no individual (algo comumente usado como estratégia mercadológica para atrair consumidores em potencial).
Vejo nessa junção do indivíduo – experiências dos desenvolvedores – e o coletivo – temática anos 80 – o ponto onde Crossing Souls se perde. Há um receio de injetar contextos pessoais dentro da narrativa para não torná-la demasiadamente autoral, mas também uma (óbvia) necessidade de identificação e ligação dos desenvolvedores com essa obra. Fica-se então nesse meio termo, nem vai nem vem, como se o jogo estivesse preso em uma bolha atemporal.
Também não quero que pense que a recontextualização ou a temática anos 80 são de alguma maneira processos sem “futuro”; afinal, muitos jogos (e conteúdo midiático, no geral) fizeram isso muito bem. Stories Untold de 2017 tem uma fonte de inspiração similar; ao invés de tentar justificá-la, a usa como um molde para desenvolver uma quasi-evolução dos adventures em textos e reforçar o conceito do ato de jogar pela interação com interfaces. Far Cry 3: Blood Dragon de 2013 pegou a temática e colocou um tom absurdo na mesma que a fez soar “autêntica”. Se formos ainda mais para trás na história dos games, encontraremos Tron 2.0 e veremos como evoluir uma franquia para uma nova mídia sem que ela necessite de uma nova moldura.
Jogos não necessariamente precisam “falar” algo, muito pelo contrário; considero a busca constante para que toda ação do jogador tenha algum peso filosófico – um ponto de vista que vem sido buscado pelas desenvolvedoras – um pouco pedante. Muitas vezes jogamos para nos divertir, como uma válvula de escape, ou para relembrar o passado. Crossing Souls relembra esse passado e esquece de olhar para o futuro, e assim se emoldura em uma aventura repetitiva e exaustiva. O melhor, e o pior, do que os anos 80 têm para nos oferecer.
Crossing Souls
Total - 6
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Com referências até demais, Crossing Souls não é capaz de evoluir de uma superficial homenagem aos anos 80 para algo com uma personalidade. Serve como consolo para quem precisa urgentemente se conectar com sua época de infância, mesmo que o meio provido seja trivial.