Antes da proliferação de computadores no Brasil, as principais ações feitas dentro de uma agência bancária eram enviadas para uma central de processamento. A central do finado Banco Nacional (posteriormente vendido para o Unibanco, que se fundiu com o Itaú) ficava no bairro do Rio Comprido, no Rio de Janeiro. O prédio, que agora serve como espaço para um centro universitário, teve a sua fachada refeita e seus interiores remodelados — tirando os retoques brutalistas para dar espaço para algo mais leve, inclusivo e menos opressivo. Entretanto, para quem tem um olhar um pouco mais afiado e visita o prédio, ainda é possível sentir a dose de opressão e burocracia que um dia existiu; as vastas salas que eram usadas para transações como transferências ou pagamento de contas, as escadarias frias, o concreto nas paredes que não foram cobertas por uma mão de tinta, os canos aparentes. Angústia e opressão, a projeção e introjeção de poder por fatores internos ou externos; esses são alguns um dos componentes que definem tão bem Control (PC / PlayStation 4 / Xbox One) e fazem ele se destacar em relação aos outros jogos da Remedy.
Como o brutalismo e seu estilo de expor as estruturas, para fazer com que o visitante se conecte com o material, a Remedy nunca foi de esconder de onde vinham as suas ideias; da influência do Noir e quadrinhos em Max Payne, à alusão a Twin Peaks e Twilight Zone em Alan Wake, à tentativa de cross-media de Quantum Break. Control não foge à regra. A narrativa começa com Jesse Faden descobrindo a Federal Bureau of Control (FBC), uma organização voltada ao estudo de objetos e eventos que ocorrem no mundo e que não podem ser explicados de forma clara, na busca pelo seu irmão, Dylan Faden. Dentro da FBC, uma entidade chamada Hiss tomou conta dos seus membros. A sua origem desconhecida é ligada ao passado de Jesse, e à formação de sua visão de mundo desde muito nova.
Os momentos iniciais denotam a influência de séries como Arquivo X e Fringe, e de forma mais ampla da SCP Foundation e de “weird fiction”. Evito, porém, chamar tais influências ou os materiais obtidos delas como estranhos; talvez sejam peculiares, mas a Remedy acerta em apresentar tais materiais ao jogador, não como estranhos, mas como parte do universo, como algo que simplesmente “é” – mesmo se desconhecido.
A história se desenrola de uma maneira que leva protagonista de uma situação de falta de compreensão para uma de projeção de poder e eventual aceitação do seu destino. Esse caminho, no entanto, não é linear, e nem pedante como a história de Alan Wake. Ele não implora ao jogador(a) que tenha pena da protagonista; pelo contrário, ele convida o jogador a crescer junto com ela, aceitando assim seu destino.
Essa aceitação está muito ligada ao material de referência e o estado “ser” de Control; a maioria dos jogos de grande calibre ou voltados para um público de massa tendem a se desdobrar para amarrar todas as pontas da história. Vide, por exemplo, as últimas temporadas de Arquivo X — sim, aquelas que não existem na minha cabeça — onde os roteiristas tentaram voltar atrás e criar uma justificativa para tudo. Não há esse esforço em Control. Algumas coisas vão ficar sem resposta, outras como disse, simplesmente “são”. Isso não é um instrumento de “preguiça”, antes que julguem assim, mas uma ótima ferramenta para estabelecer elementos como Jesse possuir poderes e como esses poderes se interligam com a própria FBC. Eu vejo um mundo que está disposto a jogar pelas suas próprias regras ao invés de ter que se moldar às regras do jogador.
Isso se interliga bem com a intersecção entre o antigo e o novo que é estabelecido pela estética da FBC – um local com uma identidade burocrática, onde a noção de um “poder governamental” é projetado pela disposição do cenário, pelas imensas salas com computadores de telas fosforescentes, antigos projetores e áreas onde o progresso e a tentativa de inclusão do “novo”, da tecnologia de ponta, começa a ser introduzida. A Remedy aproveita para reforçar que poder — como outras formas abstratas da sociedade — é uma ideia, uma percepção, e não algo concreto. Você pode criar a ilusão de poder, mas não significa que está no poder. E que o poder pode ser corrompido, independentemente se o poder está do lado “bom” ou “mau” da história. Isso tudo é uma nova etapa para a Remedy, que por muitos anos se escorou na batida narrativa de vingança; e aproveita o espaço para revisar parcialmente as suas mecânicas e interação com o ambiente.
Control ainda é influenciado pelas suas missões primárias; afinal, esse — junto com o combate — é o arroz e feijão da desenvolvedora. Mas dessa vez ela vai um pouco mais além, estabelecendo a FBC como um local tangível, que requer exploração e atenção aos detalhes, onde missões secundárias — mesmo que tenham características de “fetch quests” — oferecem mais informações sobre o que acontece ou aconteceu dentro do órgão. Eu não sou o tipo de pessoa que se importa muito com missões secundárias, mas devorei as de Control. São poucos jogos, especialmente shooters, que conseguem estabelecer narrativas e pontos de conflito secundários tão bem quanto as missões de Control; por elas eu pude entender mais da FBC, mais do passado de Jesse e como ele se conectava a suas ações e sua personalidade. Pode ser o primeiro jogo desde System Shock 2 no qual sentei para ouvir todos os audio logs, ler logs de mensagens, e analisar qualquer tipo de informação que me fosse dada. Porém, em nenhum momento eu fiz isso por querer explicações; o que eu queria era entender — aceitar — o que acontecia ao meu redor.
Reforço tanto esse tema pois, até então, era um território relativamente inexplorado pela Remedy, e ainda muito inexplorado por desenvolvedoras de grande porte no geral, amarradas como estão às suas demandas absurdas e à necessidade de querer dar contexto a tudo. Céus, se nem a vida te dá, por que você espera que um jogo te dê? Olhe para a cena independente; eu poderia fazer uma lista imensa de jogos que tratam de variados temas, ou até se assemelham em um patamar estético com Control (NaissanceE, Antichamber, ISLANDS, Zeno Clash, Neo Brutalism of Tomorrow para citar alguns mais famosos) e que te fazem aceitar que aquilo que você vê não tem um grande mistério por trás, mas que só fazem parte de um universo com regras próprias.
A entrada em um território inexplorado pela Remedy, porém, tem a sua boa dose de revés, e essa se enxerga na não-renovação de parte da interação com o cenário e seus inimigos. Posso passar horas descrevendo os “riscos” tomados pela Remedy ao usar materiais de “weird fiction” como referência, mas no fundo o jogo ainda é um shooter e a interação com o cenário se limita a destruir tudo o que ver pela frente. Isso não significa algo ruim — afinal, a Remedy demonstra mais uma vez que ainda é excepcionalmente boa em criar um combate satisfatório — mas onde a ambientação encara territórios inexplorados, o combate mostra ainda estar limitado aos dizeres da grande indústria.
O uso de poderes por Jesse é uma forma interessante de tentar expandir essa interação; por outro lado, ela ainda é muito limitada em tom. Parte disso acontece pela própria variedade de inimigos e pelo modo como os cenários de combate são dispostos. Há uma grande disparidade entre o arsenal que você possui e o dos seus inimigos — o de Jesse sendo muito mais vasto — e isso faz com que a maioria dos confrontos acabem caindo em um ritmo que não consegue criar surpresas. Entre em uma sala, espere os inimigos aparecerem, desvie dos projéteis, elimine-os. Existe uma maior ênfase em mobilidade, mas isso só carrega o combate até certo ponto, pois você acaba dependente de um ou dois poderes ao invés de tentar algo diferente.
Isso também acontece por conta da típica — e horrível — árvore de habilidades que não serve para nada. É de longe uma das piores “manias” dessa indústria de jogos, uma ferramenta patética para estender tempo de jogo com motivações pífias. De que importa se você vai aumentar 20% da sua vida ou aumentar a potência dos seus poderes se a evolução dos mesmos pouco afeta o ritmo do combate? Tal aspecto ainda é muito regido pela demanda do mercado, a demanda por algum tipo de “progresso” na interação com o cenário algo se voltar sempre para a violência. Uma estrutura que, aliada à não-linearidade das missões secundárias e ao foco na exploração, faz com que a segunda metade do jogo se mantenha em pé por conta da narrativa, e não pelo combate. Fomentando uma opinião impopular, eu teria ficado mais contente se Control tivesse cortado metade das batalhas ao invés de interromper a minha imersão naquele mundo só porque os inimigos retornaram para me atazanar. Mas, bem, essa é uma opinião que mantenho desde Alan Wake — uma que não deve mudar tão cedo.
Por bem ou mal, este é o material com que a Remedy trabalha, o material cujas fundações — tal como o prédio no Rio Comprido — não há como esconder, por mais tinta e renovação que exista Mas também é um ponto de mudança na história da desenvolvedora, onde ela avança a sua narrativa, busca novas fontes e horizontes para não deixar a projeção de poder para o jogador algo mesquinho. Acima de tudo, apresenta uma desenvolvedora que compreende que está mais do que na hora de apreciar melhor o material com que ela trabalha, não sempre se curvar aos desejos dos outros, mas confiar na sua bagagem e na sua capacidade de entregar algo competente.
Essa é a maior lição que eu consigo tirar de Control: não deixar as suas influências tomarem conta do seu processo criativo, mas sim usá-las de maneira cadenciada e pontual. Um jogo que vai de uma homenagem ou “cópia descarada” para algo que me leva de volta à época de Max Payne 2, onde conflitos eram criados para satisfazer os desejos do jogo, e não da audiência. Que respostas podem não ser dadas, e está tudo bem elas não serem dadas. Uma lembrança de que um jogo não precisa agradar a todos, e nem é o dever dele fazer isso.
Control
Total - 9
9
Control é uma nova etapa na história da Remedy, uma história que agora começa a tomar forma pelo jeito como a desenvolvedora estabelece a sua narrativa, mais do que simplesmente pelo combate. Um jogo que aposta em não dar respostas, jogar em grande parte pelas suas próprias regras e não ter que dar satisfação a ninguém. O melhor desde Max Payne 2.