No lançamento de “Company of Heroes 2”, em 2013, a Relic apostou em uma mecânica chamada “Cold Tech”. De acordo com a equipe, ela traria mais “imersão” para as partidas em mapas com neve. Com essa mecânica, tempestades de neve podem ocorrer aleatoriamente, e nesse caso você tem que recuar as suas tropas para pontos específicos do mapa. A comunidade detestou tanto esse sistema que os mapas foram retirados de rotação. 10 anos depois, “Company of Heroes 3” (Steam) chega com duas campanhas e a promessa de um multiplayer robusto. Por pouco a história não se repetiu de uma forma ainda pior.
Desde que o novo jogo da Relic deu as caras no Steam em 23 de fevereiro, eu venho escrevendo e reescrevendo essa crítica. Não só por conta de ligeiras mudanças de opinião, mas por causa das muitas atualizações desde então, várias das quais mudavam o comportamento de “Company of Heroes 3” drasticamente.
Como, então, produzir algo que pudesse ser dado como “atemporal”, embora a impiedosa indústria de videogames queira justamente todo o seu tempo? Sentei-me, esperei e disse para mim mesmo “Eu não vou me desesperar e soltar algo que vai se tornar inútil em dois dias”. Não esperava que, nesse período, o próprio “Company of Heroes 3” e a Relic notassem que o jogo precisava de muito mais ajustes para – como seus antecessores – ser atemporal.
Duas campanhas que quase não se completam
“A campanha dinâmica e o jogo no geral são meio sem sal, mas mas promissora”, foi o que me falaram enquanto eu escolhia como começar a minha invasão da península Itálica. “Que diabos faz você pensar que é promissor? Acha que eles vão milagrosamente mudar a campanha da noite para o dia? Ou que Company of Heroes 3 vai virar um shooter?”.
Não, deixa eu falar em termos diretos. A campanha dinâmica de “Company of Heroes 3” era terrível, patética, e nem um pouco parecida com o que a Relic prometeu no anúncio do jogo. Ela foi simplificada, a maioria de sistemas importantes como logística foram colocados de lado, e a IA era tão inútil que repetidamente fazia as mesmas ações turno após turno. O caminho até Roma era tão fácil que se essa tivesse sido a realidade durante a Segunda Guerra Mundial, ela alteraria o curso da história para sempre.
Mas ao menos eu tinha a segunda campanha para compensar, certo? Uma focada no Norte da África com a Deutsches Afrikakorps, contada de um ponto de vista diferente — o de uma das tantas vítimas da guerra — e com linearidade que já é esperada de um jogo de estratégia tradicional.
Outra vez, quebrei a cara. As missões em si são competentes, ainda que com alguns objetivos irritantes como escoltar veículos italianos ou destruir estruturas específicas que aparentavam ter mais pontos de vida do que o necessário.
Eu entendo que há um certo “limite” no que pode ser feito em um jogo de estratégia ambientado na Segunda Guerra Mundial em termos de objetivos. Ou você está atacando, ou você está defendendo. As variações desses cenários iriam requerer um maior investimento narrativo ou personagens fortes, o que a Relic evitou a todo custo.
Se algo, a campanha na África é quase como um pedido de desculpas pela empresa ainda estar desenvolvendo jogos de guerra. “Olha, nós vamos deixar você jogar com o vilão, mas lembra do que ele fez e entenda a história dele”. Compreendo o conceito, detesto a execução.
Não devemos evitar falar sobre os horrores da guerra. De todas elas, aliás, desde pequenos conflitos e o custo de vida humano até os mais recentes desdobramentos ao redor do globo nos últimos 15 anos. Entretanto, há hora e lugar para isso, e “Company of Heroes 3” não é um “This War of Mine” para conseguir captar essa nuance. Sim, a Alemanha nazista foi terrível, o fascismo está em ascensão outra vez e é uma pauta importantíssima para se falar.
Agora, mostrar uma cinemática triste depois de eu ter completado uma missão e esperar que eu sinta remorso, Relic, não vai funcionar. Ainda mais quando o protagonista central da campanha é ninguém mais, ninguém menos do que Rommel. Seu nome já foi escrito na história como um dos maiores generais da Alemanha Nazista, e se alguma tentativa de narrativa antifascista foi feita pela Relic, a decisão de colocá-lo como peça central da campanha autossabotou seus planos.
O maior diferencial é quão frenética a Deutsches Afrikakorps é, como uma facção dentro do jogo (que implica problemas em outras áreas que abordarei mais à frente). A maioria das missões não possuem o sistema “tradicional” de construir uma base, mas sim uma corrida pelo deserto após a batalha de Tobruk e a caça ao exército Britânico. É uma campanha que testa os seus nervos com microgerenciamento e compreensão avançada de movimentação de tropas. Não é à toa que a Relic considera a campanha como algo para quem já é veterano de “Company of Heroes”, enquanto os novatos devem começar pela tal campanha dinâmica da Itália.
Em dezembro de 2022 eu tive a oportunidade de jogar alguns turnos dela e, no próprio texto que publiquei na época, apontei algumas irregularidades tanto no macro quanto no micro gerenciamento. Foi triste ver que muitas das minhas preocupações na época já estavam muito bem fundamentadas. Como falei antes, a simplicidade na IA dentro e fora do campo de batalha, a perda de um sistema logístico robusto e inconsistência na movimentação das unidades.
A base extremamente sólida que carrega “Company of Heroes” desde 2006 está melhor do que nunca. A Relic fez alterações importantíssimas no formato de evolução da sua base, conseguiu colocar quatro grandes facções dentro de um jogo de uma vez só, e, embora tenha “simplificado” a evolução delas ao longo de uma partida, cada uma – EUA, Reino Unido, Wermacht e Deutsches Afrikakorps – tem características específicas. Imagine que nem isso foi o suficiente para me fazer ter vontade de continuar a campanha dinâmica.
As primeiras duas semanas da minha longuíssima partida de “Company of Heroes 3” foram compostas pelo mais puro tédio. Eu não sentia a menor vontade de avançar ou fazer outra missão. Ajudar a resistência italiana? Bom, tudo bem, não vai fazer muita diferença para mim. Ah, mais um objetivo secundário, que… “legal”, eu acho.
Houve uma noite em que eu fechei o jogo por volta das 20h após jogar apenas 30 minutos, muito abaixo do meu habitual de “Company of Heroes 3”, e, me peguei falando para mim mesmo “Ah, não dá, não tem condição, eu estou perdendo o meu tempo com esse jogo. Mais uma missão onde eu só preciso clicar e derrotar inimigos com facilidade e eu escolho outra coisa para fazer ou vou assistir um filme”.
Tal sentimento é muito raro em mim. Eu amo jogos de estratégia, eu construí um site com base na ideia de explorá-los mais a fundo. Perder a vontade de jogar um que não seja por fatores externos é uma raridade. Quando isso acontece, o jogo sequer ganha uma matéria.
Encostei “Company of Heroes 3” por quatro dias. A mera ideia de começar a jogar e completá-lo para um artigo me cansava. Eis que então a Relic me lança uma gigantesca atualização com um simples “tornamos a campanha dinâmica mais ativa e a IA mais agressiva”. “Ah, mas não pode ser verdade”, falei em voz alta incrédulo. Era verdade.
O que até então era uma campanha patética e claramente inacabada recebeu uma nova vida. A IA agora era feroz e sagaz, cortava as minhas linhas de suprimento de tal forma que começou a dar um impacto na minha progressão da campanha. As batalhas em tempo real agora contavam com tropas capazes de flanquear, ao invés de parecerem suicidas e se jogarem contra o primeiro destacamento que viam pela frente. Estruturas que antes eram impossíveis de serem destruídas viravam escombros quando um Sherman atravessava com toda a sua fúria.
Até mesmo a tão aclamada “pausa tática” que, de acordo com a Relic, iria facilitar o jogo para os novatos — e os próprios novatos falaram que mal a usaram pela IA ridícula de fácil, o que me faz questionar se o sistema não foi adicionado para a futura versão para consoles – vai ter sua serventia para quem começar a campanha agora.
“Ah, aqui está o Company of Heroes que eu conheço”. O brilho no meu olhar voltou e eu comecei a devorar a campanha como um dos mais deliciosos pratos que eu já provei.
Poderia muito bem gastar mais uns quatro ou cinco parágrafos comparando com outras campanhas de gigantes do gênero – mesmo que pequenos em números de vendas – como “Graviteam Tactics” e “Steel Division”. Mas, pela primeira vez desde 23 de fevereiro eu realmente senti que a Relic começou a tomar as rédeas da sua própria franquia de volta.
Um multiplayer que engatinha ao invés de correr
As rédeas, no entanto, só estão tomadas quanto o assunto é o modo single-player, pois a comunidade de “Company of Heroes 3” quase evaporou neste um mês desde o lançamento. O motivo é simples e claro: a Relic simplesmente colocou o balanceamento das facções no modo online em segundo lugar.
Mencionei acima que a Deutsches Afrikakorps traria problemas mais para frente, e boa parte dos casos está no fato que a suas tropas são tão rápidas de serem produzidas e capturarem território que todas as outras facções estão lutando para sequer ficarem em segundo lugar.
Seja de Wehrmacht, EUA ou Reino Unido, as jogadas iniciais são quase as mesmas: pegue um veículo o quanto antes para contrabalancear a investida da Deutsches Afrikakorps, senão você vai perder a partida antes mesmo dela ter dado cinco minutos.
No começo eu achava partidas rapidamente; agora eu tenho que esperar três a dez minutos para sequer encontrar alguém. A maioria voltou para “Company of Heroes 2” ou está jogando em lobby. Isso sem contar que o jogo não foi lançado com partidas ranqueadas – o que é justamente o modo mais jogado da franquia, e o que a manteve relevante por tantos anos dentro da esfera multiplayer.
Ler a lista de alterações que estão sendo feitas no modo multiplayer – que ainda tem muito a ser lapidado – me fez entrar em uma espiral e achar que eu não estava vivendo no mesmo mundo que a Relic. A desenvolvedora já fez de tudo; aumentou a quantidade de vida das tropas dos EUA já que elas eram a facção com menos aproveitamento nas partidas, reforçou os tanques alemães da Wehrmacht, a artilharia britânica, mas não fez sequer um ajuste competente na Deutsches Afrikakorps. Ao menos não um que diminua a facilidade dela de obter veículos tão rápido.
A pífia seleção de mapas, muitos deles tirados da própria campanha dinâmica do jogo, não ajuda. A Relic desenvolveu um sistema de “vantagem de terreno” onde uma unidade tem um bônus de dano caso esteja em uma elevação, mas ele é mal utilizado; o sistema de destruição que seria tão revolucionário é pontual para bloquear o campo de visão em mapas que se passam em cidades, que são mais a exceção do que a regra.
A península Itálica tem o potencial de ter alguns dos melhores mapas da franquia – e a própria comunidade está começando a provar isso com mapas que dão um banho de qualidade em comparação aos da Relic, dois ótimos exemplos são Serpentin Hill e Piccolo River Crossing que usam e abusam do sistema de elevação e a limitação do campo de visão devido a edificações. A desenvolvedora? Só a mais pura hesitação de adicionar um pó extra de complexidade.
Como se a carência de competência no modo multiplayer geral não fosse o suficiente, o jogo ainda contava com bugs ridículos que foram corrigidos recentemente, como a “tática” de construir uma edificação e deletá-la, já que o retorno de recursos era mais alto do que o investimento. Aliás, era uma tática válida para lutar contra a Deutsches Afrikakorps.
Desculpe-me quem me falou que “Company of Heroes 3” é promissor. Em 23 de janeiro ele não era nada promissor. Ele era uma gigantesca decepção para quem acompanhou a série, e talvez algo interessante só para quem nunca encostou em um jogo de estratégia.
O que aconteceu com aquela empresa que em 2006 foi pioneira e mudou o cenário dos jogos de estratégia em tempo real? Quantas pessoas da equipe original ainda estão na Relic? Como foi o desenvolvimento desse jogo e por quantas revisões ele passou?
O que dói mais é saber muito bem que essa decepção foi premeditada. Que alguém, em algum lugar, em um cargo muito mais alto e com total irresponsabilidade apontou para uma data no calendário e falou “É aqui e pronto”. Eu posso não ter os mesmos anos de desenvolvedor quanto eu tenho de crítico, que já são mais de 15 anos. Mas até hoje eu não conheci um desenvolvedor ou desenvolvedora que não quisesse que seu trabalho brilhasse e que não estava dando duro para que isso se tornasse realidade.
Como disse antes, os fundamentos que carregam “Company of Heroes 3” são tão imponentes quanto aqueles que levaram a franquia ao estrelato em 2006 com o seu primeiro título. As táticas, quando funcionam, são fantásticas, as animações são soberbas, e o mero fato de quatro facções atuarem de formas tão distintas é uma imensa realização. Mas uma que só foi feita por conta dessa estrutura erguida muitos anos atrás.
A Relic não foi pega de surpresa com o lançamento de “Company of Heroes 3”, ao menos uma parcela da empresa não foi. A catástrofe do “Cold Tech” de “Company of Heroes 2” foi inesperada, a do terceiro jogo, planejada. Mais uma gigantesca mancha em uma empresa que já trouxe tanta inovação para o cenário de estratégia.
“Company of Heroes 3” não foi lançado em fevereiro; ele foi de fato lançado no final de março e ainda tem um longo caminho pela frente até se provar e, quem sabe, reconquistar parte da comunidade. Agora sim eu posso dizer que ele é promissor. Ele não vai entrar para a minha rotação mensal de jogos ainda, mas eu não vou perdê-lo de vista, tampouco.
Que isso talvez sirva de lição para as pessoas que tomaram a decisão da data de lançamento, pois pelo visto “Dawn of War 3” não foi o suficiente.
Company of Heroes 3
Total - 7
7
Company Of Heroes 3 é um jogo de contrastes imensos. De um lado uma campanha que não funcionava e foi corrigida em um mês, do outro um multiplayer que ainda não conseguiu encontrar um equilíbrio, e com mapas fracos. No meio desse caos, está um jogo que, graças a uma estrutura sólida erguida em 2006, ainda consegue se destacar em meio a um cenário de estratégia cada vez menor. Está mais do que na hora da Relic parar de viver de renome a não ser que queira ser engolida. Os minutos estão passando, e eu temo que ela não se encontre a tempo de virar esse barco na direção certa.