Quando foi a última vez que você se sentiu perdido em um mundo? Não sem propósito, mas perdido em um sentido de que toda a sua ambientação é “alienígena”, onde há coesão nas estruturas e estilo, mas sua linguagem é de difícil interpretação? E você, cada vez mais disposto a conhecer mais desse mundo, vai a fundo na história e os seus personagens. Essa foi a minha experiência com Clash: Artifacts of Chaos (Steam / PlayStation / Xbox), e a jornada de Pseudo e o garoto.
Ambientado no mesmo universo que levou a desenvolvedora chilena ACE Team ao estrelato – “Zeno Clash” – “Clash: Artifacts of Chaos” mostra uma nova visão da região de Zenozoik. O que é Zenozoik? Bem, é uma mistura estética peculiar entre casas de barro e palácios estonteantes, divindades, e um conjunto de regras e leis que são definidas por batalhas de honra.
Como alguém que acompanha o trabalho da ACE Team desde “Zeno Clash”, me familiarizar com “Clash: Artifacts of Chaos” não foi muito difícil. Entretanto, é importante salientar que esse é o jogo que absolutamente não segura a sua mão em momento algo. Ele é quase uma antítese da atual estrutura de jogos “AA” ou “AAA” mais proeminentes no mercado.
Isso já é sentido nas primeiras horas de jogo, onde você acorda como Pseudo e sequer tem noção de quem ele é, qual o motivo de ele estar em Zenozoik ou para onde ele vai. Pode parecer uma decisão óbvia da ACE Team de desenvolver um personagem onde o jogador vai se permitir em tomar as suas próprias decisões. Pelo contrário, Pseudo tem um passado e um futuro assim como todos os habitantes de Zenozoik.
Encontrar esse passado e entender o futuro, as dores e os desafios que vem com ele são um dos pilares principais da narrativa de “Clash: Artifacts of Chaos”. O próprio encontro de Pseudo com o que o jogo chama de “o garoto”, uma criatura com poderes de curar o que toca estabelece o futuro do protagonista, mas não de uma forma clara. O encontro em si é doloroso, com o avô do garoto morrendo após ser incapaz de defendê-lo de um dos seres que o desafia para um duelo – algo que, de acordo com as regras daquele mundo, não devia acontecer.
É fácil minimizar a história de “Clash: Artifacts of Chaos” como “uma pessoa sem passado encontra uma justificativa para viver em um ser minúsculo”, mas a ACE Team vai muito além disso. Política, dor, reconciliação, aceitação, abuso de poder são só alguns dos temas tratados pelo jogo. Outra vez a desenvolvedora chilena não hesita em abordar temas pesados. É claro que isso impacta diretamente como você enxerga o mundo de Zenozoik, e por consequência a sua exploração e o entendimento dele.
Uma pena que a ACE Team não ofereceu um glossário ou uma biblioteca mais aprofundada em relação a Zenozoik. O primeiro Zeno Clash é de 2009 e por mais que eu gostaria, eu duvido que muitas pessoas que irão jogar “Clash: Artifacts of Chaos” tenham alguma noção do que é o universo e como ele já foi explorado pela desenvolvedora. Muitos irão acabar com a sensação de “nossa, mas que mundo bizarro” ou “que mundo sem sentido, por que fizeram isso?” a não ser que eles tenham uma grande apreciação pela estética, a dezena de segredos espalhados pelas diferentes regiões do jogo.
Por falar em exploração, essa é a maior diferença de “Clash: Artifacts of Chaos” para “Zeno Clash”. Onde o primeiro era separado em capítulos e “Zeno Clash II” tem o foco em ser linear, “Clash: Artifacts of Chaos” deixa você voltar para áreas anteriores e navegar Zenozoik como bem entender. Este elemento é tanto uma benção quanto uma maldição.
Como disse acima, a navegação em “Clash: Artifacts of Chaos” é livre. Ele não te dá um guia, não te dá um objetivo ou sequer um mapa. A maioria das informações surgem de maneira natural com conversas entre Pseudo e o garoto ou interações com outros tantos personagens – o que faz prestar bastante atenção nas conversas algo crucial. A tradução para português do Brasil faz um trabalho competente, embora haja alguns erros em certas frases, mas nada que vá te impedir de progredir.
O maior elemento que pode te impedir de progredir é o mapa em si, que em muitos momentos é um confuso devido a muitas áreas parecerem similares. É notável que a ACE Team tinha um orçamento limitado para a produção de “Clash: Artifacts of Chaos” em comparação com seus jogos anteriores como “The Eternal Cylinder”. Uma atualização pós-lançamento trouxe novos indicadores de direção, mas grande parte do trabalho ainda vai vir do jogador.
Para mim é uma maravilha, eu não me importo em me perder ou ter que fazer a mesma rota duas ou três vezes. Até porque o jogo possui dois ciclos diferentes – dia e noite. De dia, Pseudo está em sua forma natural enquanto durante a noite ele se transforma em um boneco feito de madeira, mas tem acesso a áreas secretas. Para balancear isso a ACE Team colocou inimigos ainda mais difíceis durante a noite e caso você morra, terá que ir até o local recuperar o seu corpo ou derrotar o oponente que o eliminou.
Por falar em combate, essa é a maior diferença entre “Clash: Artifacts of Chaos” e “Zeno Clash”. Onde antes a ACE Team apostava em um combate em primeira pessoa, agora ela usa um peculiar misto de combate em terceira pessoa com situações específicas onde a câmera muda para uma visão em primeira pessoa. O resultado é…. um pouco decepcionante.
Quando o jogo está no seu auge, com você soltando combos a torto e a direito na visão em terceira pessoa, a mudança para a primeira pessoa mostra o quão limitados são os combos em comparação a “Zeno Clash” e “Zeno Clash II”. É quase que uma tentativa de não desapontar fãs de longa data e manter a essência da “franquia”.
O pior é que quando o jogo se limita ao combate em terceira pessoa, esse é de longe o melhor sistema que a ACE Team já fez até então. A quantidade de combos e diferentes estilos de combate é fantástica, a oportunidade de personalizar Pseudo sem cair nas armadilhas dos jogos atuais que dão “+5% de dano”. Quer que ele utilize uma arma? Vá em frente, ninguém te impede. Prefere se especializar no robusto sistema de parry e de esquiva? Uma decisão perfeita.
Em uma jogada de mestre, esse sistema é enraizado na própria cultura de Zenozoik. Especializar-se no combate é apenas o primeiro passo. Você também tem que se especializar em duelos que são definidos por dados – um dos elementos mais fascinantes do jogo. Se você ganhar o minigame, você pode definir que debuff causar no inimigo, seja fazê-lo usar uma cabeça de peixe como humilhação ou diminuir sua agilidade.
Eu adoro como a ACE Team consegue estabelecer esses elos entre a cultura de Zenozoik e a história contada – até por meio de lutas – em “Clash: Artifacts of Chaos”. Por exemplo, nenhum oponente seu é propriamente morto, apenas derrotado, um código de honra em Zenozoik e que muitos jogos poderiam deixar de explicar. Pode ser que alguns não deem tanta bola para tal conceito ou até ache o sistema um pouco travado em comparação a algo como “SIFU”, mas dê tempo ao tempo e você verá que o combate – ao menos em terceira pessoa – é fantástico.
“Dê tempo ao tempo”, esta, quiçá pode ser a melhor forma de descrever “Clash: Artifacts of Chaos”. Ele é impiedoso em certos momentos, inacessível quando quer ser e não segura a sua mão. A ACE Team quer que você se imerja em Zenozoik e absorve cada pedaço do cenário, sinta que cada interação é impactante e que você não é uma engrenagem em um mundo que não faz sentido, mas sim um habitante desse mundo e que sua presença é tão válida e importante quanto a de todos os outros. É um jogo único e que vale cada momento investido.
Clash: Artifacts of Chaos
Total - 8.5
8.5
A alternância entre um sistema de combate em primeira pessoa e um sistema de combate em terceira pessoa, junto com uma navegação que te dá pouca direção são os maiores empecilhos para apreciar “Clash: Artifacts of Chaos”. Mas, assim que você os supera, encontrará uma história belíssima e um mundo fantástico para explorar. Invista um pouco de tempo, tenha paciência e você vai ser recompensado e muito.