Ao meu Norte estava a Espanha, sedenta pelos meus cavalos. Ao Oeste, a França e seus produtos luxuosos, com seus bônus de cultura. Em um continente distante, EUA e Rússia travavam uma guerra que já se estendia por mais de 150 turnos para ver quem dominava o petróleo e o urânio. Eu, encurralado em um canto como Canadá, só tinha uma preocupação em mente: até onde as minhas cidades, a maioria estabelecida na costa, sobreviveria à contínua desestabilização climática? Com Gathering Storm (Steam), eu senti pela primeira vez em Civilization VI que estava em uma situação de emergência.
Proclamei, desde seu lançamento em 2016, que Civilization VI é a versão mais desinteressante do game de estratégia 4X. Mesmo dentro da esfera que ele ocupa – onde 4X requerem acessibilidade e decisões impactantes para fazer uma partida se desenrolar de maneiras intuitivas e potencialmente imprevisíveis – muitas de suas decisões iam contrárias a isso (sistema de distritos pouco intuitivo, eras de Rise and Fall que não condizem com muitos estilos de jogador). Entretanto, eu sempre acreditei que existia alguma base ali que podia ser resgatada e transformada em algo positivo. Gathering Storm chega bem perto desse ponto por se focar no básico.
As mudanças climáticas e os desastres naturais rapidamente entraram na lista das “funcionalidades que eu não acreditava serem interessantes, mas que se tornaram imprescindíveis assim que experimentei jogar com elas”. São raros os jogos que tratam sobre o tema. O mais proeminente deles é provavelmente Fate of The World, cuja proposta – de um mundo em decadência – nunca ressoou tão bem quanto na atualidade. Para um game de 4X adaptar essas mecânicas, elas precisam seguir duas excelentes diretrizes: serem impactantes e simples de serem compreendidas. Gathering Storm as segue à risca. Situar minhas cidades próximas a rios com o risco de alagamento é a certeza de que, cedo ou tarde, uma estrutura sairia danificada. Vi fazendas serem destruídas, tempestades danificarem e até matarem as minhas unidades. Tudo é muito direto, impactante, imprevisível. Uma hora você está no controle e na outra não está mais.
Isso por si só é uma diferença enorme, se você levar em consideração que, por grande parte do tempo, Civilization VI é um jogo “estático” na relação jogador vs mundo. Os movimentos iniciais são (quase) sempre os mesmos, você já sabe desde o começo qual é o seu objetivo para vencer e como você planeja fazer isso. O sistema climático dá uma camada extra de impacto, sem torná-lo complicado demais.
Essas decisões de design transbordam para outras mecânicas introduzidas pela expansão, como a inclusão do sistema de “agravos” e o congresso mundial (este também presente em Civilization V: Brave New World). Ao invés de introduzir novos conceitos, eles efetivamente descomplicam ações que, desde o começo, deveriam ser facilmente interpretadas pelo jogador. Agora eu não preciso me preocupar se alguma civilização vai me denunciar perante ao mundo por algo que eu não tenho ideia que fiz; guerras surpresas causam agravos, tomar recursos que eram cobiçados pelo seu oponente, idem. Você tem noção da ação que vai realizar e quais as consequências disso. Irrite alguém o bastante e ele irá te denunciar, e possivelmente partir para a guerra.
Com Gathering Storm eu me senti mais “livre” para poder atuar dentro dos meus conformes. Quero construir do lado de um rio, de um vulcão e sei dos riscos? Tudo bem, eu sabia o que estava fazendo, e sabia que cedo ou tarde eu iria colher os frutos das minhas decisões. Fazendas alagadas, unidades perdidas por uma erupção, dano por causa de tempestades de areia.
É o contrário do sistema de “Eras” de Rise and Fall – ainda uma das mais irritantes adições de toda a franquia. Nele eu me sentia restringido a fazer apenas uma ou duas ações para não cair em uma “era das trevas”, e, por outro lado, torcer para entrar em uma “era dourada”. Particularmente terrível para aqueles que decidiam partir para o desafio de jogar com só uma cidade e se viam limitados e penalizados sem um motivo aparente. Quer buscar uma vitória religiosa? Que pena, os bônus das eras não vão te ajudar, a não ser que você faça exatamente o que o jogo te mandar.
Civilization chega ao seu ápice quando ele permite ao jogador brincar com seus sistemas, manipulá-los e desestabilizá-los. A própria partida citada no começo do texto vai entrar para a minha história com Civilization por conta da IA, que se permitiu também ser menos “linear” e “previsível”, e ironicamente tomou decisões coerentes. A Rússia, favorecida pela geração procedural do mapa, estabeleceu parte das suas cidades próximas a regiões montanhosas, criando chokepoints para unidades que se atrevessem a adentrar o seu território. Ao mesmo tempo, ela reforçou a costa com barcos e artilharia para garantir que as invasões dos EUA não ocorressem. Nunca havia visto algo assim.
Em desespero e procurando maneiras de reduzir o ritmo do aquecimento global, entrei com um pedido para que as civilizações restantes se unissem e parassem os EUA – o maior gerador de poluição pelas suas usinas de carvão e teimosia em não usar energia reutilizável. Espanha e França ficaram do meu lado, e assim uma cadeia de eventos foi disparada: quem impedisse militarmente o expansionismo dos EUA frente a Rússia ganharia bônus de diplomacia, uma maior quantidade de ouro por turno, e iria dever “favores” (uma moeda que pode ser usada no congresso mundial para aumentar a importância dos seus votos).
Surpreendentemente, a IA não ficou parada e levou suas tropas para a costa dos EUA. Tomamos duas cidades, para no fim a Rússia vencer com uma…. vitória religiosa. Quem diria que a Rússia sairia no topo porque proferiu a palavra do Islã e converteu múltiplas cidades debaixo do meu nariz? Assumo que sequer prestei atenção, pois nunca tinha visto a IA tentar vencer por qualquer modo que não fosse militar. Mesmo tendo perdido, eu estava contente; foi a primeira partida de Civilization VI sem nenhum mod instalado que me fez ter a vontade de começar outra imediatamente, na qual me senti confortável em ser “eu mesmo” e não deixar a partida de lado imediatamente.
Mas há um importantíssimo detalhe que deve ser cogitado se for jogar Gathering Storm: partidas padrão não funcionam com a expansão. Acredito que, se você está lendo esse texto, já tem algumas boas horas de Civilization, portanto o botão “jogar agora” do menu não é mais uma opção atraente, pois segue conceitos bem padrões (500 turnos, todos os tipos de vitórias, dificuldade média), e Gathering Storm requer algo fora do padrão.
Para ter uma ideia, nas partidas “padrões” que joguei, raramente fiz uso do congresso mundial, não vi o impacto do aquecimento global e eventos naturais viraram mais uma inconveniência do que algo com que se preocupar. Minha preferência fica para partidas com mais de 1000 turnos, e a intensidade dos eventos naturais elevada ao máximo.
Culpo menos Gathering Storm e mais o tecido que unifica todos os sistemas de Civilization VI. O game da Firaxis quer fazer de tudo um pouco e cada expansão adiciona mais e mais, o que é como jogar mais um livro em cima de uma pilha de livros e esperar que ela continue se equilibrando sozinha. Vide o endgame, por exemplo, que inevitavelmente vira uma guerra de atrito por causa da limitação de uma unidade por tile e da abundância de recursos que cada civilização possui. 500 turnos não são o suficiente para você ver o potencial de cada unidade, muito menos as novas adições à árvore de pesquisa de Gathering Storm, como robôs capazes de destruir cidades em um piscar de olhos. Caso veja, sequer fará a diferença. Agora, aumente a duração de uma partida e isso vai ser crucial na decisão entre uma vitória militarista ou uma derrota devastadora.
O mesmo vale para o congresso mundial, que só foi relativamente útil na minha partida, pois ela estava configurada para 1500 turnos. Eu sequer posso garantir que a IA vai se comportar da mesma maneira na sua partida como na minha; afinal, ela continua extremamente volátil, e imperfeita. E sempre vai ser, pois a dualidade de querer ser abrangente para todo tipo de jogador – dos básicos, com seus líderes facilmente identificáveis e mecânicas fáceis de entender, aos experientes, com a inclusão de distritos e agora mudanças climáticas – sempre será o maior triunfo e o maior defeito de Civilization VI. É praticamente impossível fazer com que todos esses sistemas se equilibrem, que funcionem “perfeitamente” e que agradem a gigantesca base de fãs que ele tem. E não é do interesse da Firaxis, muito menos da 2K, de reduzir o foco dele. Para isso temos outros jogos 4X (Distant Worlds Universe, Endless Legend, Star Ruler 2, Endless Space 2), e eu recomendo que os busquem.
Acredito que, mesmo torcendo o nariz para muitas das decisões trazidas pelas expansões, eu mesmo aceitei essa dualidade como parte do que faz Civilization ser Civilization. Ele não vai atingir as mesmas qualidades de mods como Vox Populi para Civilization V ou a New Dawn para Civilization IV. E está tudo bem ser assim.
É com essa clareza que vejo Gathering Storm como a melhor expansão para Civilization VI – não uma que vai te fazer se apaixonar pelo jogo base, mas que ao menos descomplica algumas decisões de Rise and Fall. Ela requer alguns ajustes na configuração? Tudo bem, ao menos não é que nem outros jogos, como Cities Skylines: Park Life, que necessitam de mods para serem meramente jogáveis. Entre tantos passos para trás, ver a Firaxis dar um para frente é motivo de muita celebração.
Civilization VI: Gathering Storm
Total - 8
8
Gathering Storm não é a “expansão das expansões”, não conserta milagrosamente os problemas inerentes do próprio design de Civilization VI – apesar de descomplicar a diplomacia. Entretanto, para aqueles dispostos a investir um tempo ajustando a configuração de uma partida, é uma ótima expansão que finalmente me trouxe de volta o prazer de jogar Civilization VI.