O meu relacionamento com a minha família é complicado — permeado por situações de abandono, discussões, brigas intermináveis. Já escrevi em outros textos sobre não ter um porto seguro e de me sentir como um estranho no ninho; situações que acredito que muitos de vocês podem ter passado ao longo da vida. Mesmo ciente de tudo que passei, cá eu estava, frente a Children of Morta (PC), que pedia para eu me conectar com uma família – uma que não é minha e uma que eu mal conhecia. A história da família Bergson.
As primeiras horas do roguelike não foram marcadas pelas dezenas de morte causadas em suas dungeons, nem pela narrativa de uma terra tomada por uma misteriosa corrupção e a queda de seus deuses – um dos pontos centrais da trama –, mas a minha dificuldade de entender o papel da família. “É assim que famílias funcionam? Onde um, apesar das diferenças, apoia e oferece conforto?”.
Kevin, um dos filhos dos Bergson, sedento por combate, levou as adagas forjadas pelo seu tio e desapareceu. Se a minha experiência prévia com situações como essas valem de algo, eu já tinha a perfeita noção que ele seria castigado e severamente punido por tal transgressão. Em parte, isso aconteceu, mas também os Bergson – guerreiros naturais – o aceitou como um deles e deu o apoio que ele, a atenção e tentou compreender as decisões por trás de sua fuga.
Uma sensação estranha tomou conta do meu corpo, como se essa projeção de aceitação era algo que nunca tinha sido propriamente sentida por mim. Se fosse eu no lugar do Kevin, as coisas teriam sido muito, mas muito piores do que qualquer frase poderia descrever. Por um breve momento o meu coração aqueceu. Queria ter tido a aceitação de Kevin na minha juventude.
Achei que a história de Kevin tinha parado por aí, mas a desenvolvedora Dead Mage tinha outros planos. Agora que podia selecioná-lo como um personagem jogável, a sua história começou a ser ainda mais aprofundada durante as minhas idas e vindas nas dungeons.
Um componente-chave de Children of Morta é interligar o aspecto familiar a exploração das dungeons; um narrador no melhor estilo Supergiant (Bastion, Transistor, Pyre) explica melhor os motivos por trás das decisões de Kevin, o que ele sente agora que faz parte dos Bergson, o medo de explorar a sua primeira caverna, calabouço ou cidades esquecidas pelo tempo. Como a vida, o caminho de Kevin não foi um linear, eventos aleatórios detalhavam mais sobre ele, sua relação com os Bergson e até mesmo outros membros da família surgiram para ajudá-lo. E assim foi com outros membros dos Bergson.
Apesar do grande foco narrativo que surge durante a exploração, Children of Morta não ignora o combate – nada disso, ele é excelentíssimo e um deleite de descobrir os seus nuances – e ainda o transforma em um pilar para criar essa conexão entre os membros da família. Podendo ser jogado em modo coop (local) ou solo – o que preferi fazer para essa análise – cada membro da família tem uma classe distinta com habilidades ativas e passivas. O que salta aos olhos é que muitas dessas passivas melhoram tanto o seu personagem quanto estabelece um vínculo com o restante da família. Jogar com John, o patriarca da família, garante uma proteção contra ataques fatais. Linda, arqueira e irmã de John, aumenta a mobilidade dos outros personagens e garante uma considerável melhoria para o dano crítico.
Mas para conhecê-los melhor e como cada um se porta fora do ambiente familiar, a Dead Mage faz uma aposta relativamente arriscada: um sistema de fadiga. Passe tempo demais em uma dungeon com o mesmo personagem e ficará cansado, forçando você a jogar com outro ou ter que lidar com uma considerável redução nos pontos de vida. Eu torci muito forte o nariz para tal mecânica – uma daquelas que pode muito bem afundar um belo jogo. Para a minha surpresa essa foi um ótimo incentivo para descobrir quais eventos podem surgir para cada personagem.
São raros os jogos onde eu vejo sete classes que eu não só me identifico, mas que são um deleite de serem utilizadas. Um polimento excepcional para as suas habilidades passivas e ativas as tornam viáveis em qualquer tipo de situação se você estiver disposto a entender quais são as limitações e quais são as suas especialidades. Existe, é claro, uma certa curva de aprendizado, mas não é nada tão amedrontador quanto aprender a jogar com uma classe diferente como em Diablo 2.
O esforço da Dead Mage em contextualizar o ambiente familiar, dentro e fora das dungeons, é tão grande que até após ter terminado a campanha principal eu encontrei mais situações que reforçam a união da família frente ao perigo e na hora de ajudar quem precisa. A região onde a história de Children of Morta se passa é macabra — ele extrai o pior da natureza humana e não atribui a culpa unicamente a tal “corrupção” — mas também àqueles que se aproveitam dela para botar seus planos maléficos em ação.
Durante uma run eu vi um grupo de cidadãos acorrentados e forçados a escavarem em buscas de riquezas. Pode ser forçado colocar esses elementos sem entender bem o que acontece (e um dos pontos mais fracos de Children of Morta, mais sobre isso em breve). Mas também é difícil não ter uma resposta emocional, uma que determina claramente ao jogador. “Aqui estão os vilões, olha o que eles fazem com o povo subjugado”. É difícil não pegar as adagas, espadas ou arcos para defendê-los. Assim o fiz tantas vezes nas dezenas e centenas de eventos que acompanhei ao longo das mais de 20 horas de jogo.
Entretanto, o foco em demasia na família Bergson transforma alguns desses eventos como algo rotineiro. Parece que por trás das cortinas há um interessante universo, uma dinâmica peculiar em jogo, que a corrupção vai além do puro mal, mas esses questionamentos nunca vêm à tona. Uma bizarra dissonância surge: seria Morta sobre os Bergson, o mundo, ou os males da ganância? A Dead Mage aponta que é uma história de amor. Mas falar sobre amor é contar apenas uma parte da história – queria que outras vias e mais detalhes sobre o mundo onde os Bergson vive tivesse sido mais bem explorado.
Nessas horas eu também penso que é melhor faltar do que sobrar, ainda mais se esse “sobrar” resultar uma narrativa menos amarrada sobre os Bergson e a luta deles contra a corrupção, um sistema de combate menos satisfatório e uma variedade de cenários reduzida. Se algo, eu gostaria que ao menos Children of Morta tivesse abraçado um pouco mais as raízes do roguelike e oferecido um modo extra onde pudesse explorar todos os mapas de maneira contínua ao invés de depender de um sistema de fases.
São deslizes que eu deixo passar, pois sei o quão é difícil criar narrativas sobre famílias. Famílias são complicadas e tratar desse tema dentro do contexto de um jogo ainda mais – quem dirá em um action RPG. Ainda vejo adventures como um gênero melhor para esse tipo de trama, mas o resultado obtido pela Dead Mage em unir tantos conceitos que nem sempre combinam, sem se apoiar demais nos estereótipos de “bem contra o mal” e fazer tantos momentos da jornada encherem os meus olhos d’água, eu diria que é um resultado fantástico.
Como falei no começo do texto, eu não tenho um histórico familiar muito bom, e talvez nunca farei as pazes com a minha família de sangue. Children of Morta foi uma boa lembrança que nem sempre são essas as famílias que você precisa ter ao seu lado, mas sim aquelas que te apoiam, que te dão forças na hora dos desafios, que te ajudam a levantar em uma eventual derrota. Escapismo não é uma solução para os meus problemas na realidade, mas não vou negar, eu fiquei um tanto emocionado com a viagem dos Bergson, o seu amor quase incondicional e como eles tratam uns aos outros apesar das diferenças.
Children of Morta
Total - 9.5
9.5
Children of Morta é uma fascinante narrativa sobre famílias, sobre a dor que cada um deles carrega e como compreender a diferença entre eles. É igualmente macabro e emocionante, desesperador e afagador. Uma jóia rara em um mar de action RPGs / roguelikes que tendem a se focar tanto só na vitória do bem contra o mal.