O que acontecerá quando te colocarem como o ser mais poderoso do universo? Implacável, indestrutível. Que sensação você vai sentir? Forte, independente, ou não vai sentir nada? As perguntas retóricas servem para demonstrar o quão forte é a minha luta para me identificar com Carrion (Steam / Xbox One / Switch).
O jogo da Phobia Game Studio te convida para ser esse monstro implacável já nos primeiros minutos. De início peguei na mão dele e fui. “Vamos nos divertir”, pensei. Foi legal no começo, até atingir a marca de 30 minutos e eu perceber que não é tão divertido assim; na realidade, é chato.
Para entender melhor de onde eu venho é preciso entender a minha noção de “poder”; a palavra em si carrega muito simbolismo. Ela pode vir de um aspecto de divindade — como aquela que você controla em Populous (1989). Quando eu jogo Populous eu sei que sou poderoso, mas sei da responsabilidade que isso acarreta; cuidar de habitantes, moldar a terra e manter harmonia. A palavra pode servir até como uma substituição para o conceito de “sobrevivência”. Rain World, game sobre um slugcat em um mundo hostil cheio de répteis prontos para te matar, me faz sentir poderoso a partir do momento em que ele me dá uma lança. “Agora eu tenho uma chance de sobreviver mais um dia”, foi uma das tantas frases que murmurei quando escrevi sobre ele em 2017.
Para que não haja lacunas, aproveito também para falar de Doom. Que, dos exemplos até dados até então, é o que mais teria chances de transpor a ideia de “poder”. Mas o poder que ele traz não vem da violência que você causa; seja no clássico ou no reboot, a violência atua mais como uma consequência do ato de você, mais uma vez, sobreviver. Você é uma pessoa contra uma horda de monstros vindo do inferno; claro que vou me sentir poderoso ao derrotar um inimigo que está me atazanando por horas. É uma questão de vida ou morte, uma decisão consciente de que eu optei por viver.
Carrion extingue isso ao te colocar em um berço de ouro; você já é poderoso, tem o seu “destino traçado”. Os primeiros cinco minutos mostram a bola gosmenta vermelha destruindo o invólucro de proteção enquanto cientistas correm desesperados, cientes do destino deles: virarem alimento. Nesta cena são apresentadas duas propostas: você é poderoso, as pessoas tem medo de você. O que você vai fazer com isso e quais as possíveis consequências? Lembrando que para mim o termo “poder” carrega um simbolismo muito forte. Pois bem, não há consequências.
Isso teria sido menos um problema se a desenvolvedora de Carrion tivesse trabalhado melhor as situações nas quais você usa esse poder para o mal. Elas são menos sobre a implicação de um poder e mais sobre solucionar mini quebra-cabeças. Um humano na sua frente? Não se preocupe, devore-o, tome controle dele para abrir uma porta ou matar outros humanos. Nem lança-chamas ou robôs, que aqui deveriam atuar para interromper a matança e gerar a noção de “poder” como gerado em Doom, são páreos para sua “invencibilidade” — a maior dificuldade vai ser encontrar um jeito de contorná-los e pegá-los de surpresa. Praticamente o equivalente de “coloque os quadrados e triângulos nos seus respectivos buracos”, muito pouco engajante.
Nessas tantas eu já clamava por alguma coisa que fosse um pouco mais elaborada. “Por favor, me deem uma situação onde eu me sinta acuado, onde eu consiga exercer os meus poderes com um pouco mais de motivo do que pura violência!”. Pedidos que não foram atendidos. É isso que você vai fazer pelas próximas três horas, tempo que eu levei para terminá-lo. Não que duração seja sinônimo de qualidade; tem muito jogo por aí com 50h que consegue me deixar desinteressado depois de duas horas, mas trinta minutos chega a ser um recorde.
Mas, tudo bem, vamos então colocar o monstro de Carrion no contexto de filmes de terror — algo que vem sido discutido desde o seu anúncio —e como ele também tenta trazer para si um pouco dessa ideia. A Phobia Studios que me perdoe, mas não funciona. Até os monstros mais asquerosos do cinema têm alguma motivação mais poderosa por trás das ações deles, e a narrativa dada na base de conta gotas não gera um pano de fundo plausível para a existência dele.
Nem mesmo a tecnologia por trás da movimentação do monstro — ou até o sistema de upgrades,como o uso de tentáculos ou se multiplicar para poder navegar pela água, e as múltiplas formas que você pode assumir — seguram a minha atenção. São novas camadas de tinta que só servem para remover ainda mais qualquer propósito que eu queria ter dentro do jogo. Eu só ia para lá e para cá como uma barata tonta para ver sangue voar pela parede. Se não fosse pela estética “sci-fi / complexo industrial / terror”, a violência e a noção de “poder” de Carrion carregaria tanto peso quanto o controverso Hatred de 2014.
Antes que pense algo de mim, eu não esperava que Carrion carregasse uma mensagem profunda ou reflexões sobre o estado da humanidade em relação a experimentos ambiciosos e altamente perigosos. Desde o trailer de anúncio estava explícito que ele era sobre destruir e ser um monstro. O que eu não esperava é que essa violência fosse tão gratuita assim.
Acredito que exista um grupo de pessoas que querem essa violência desenfreada, mas esse espaço não é para mim, ao menos não dentro do contexto de Carrion. Cada corpo estraçalhado não me trazia nenhuma sensação. Era para servir de catarse? Vingança? Contra quem exatamente? Por que eu praticaria violência para fins de violência? Cada grito ecoado pelos corredores era processado pelo meu cérebro como uma ação realizada e ponto final. A minha conclusão é que eu estava fora de sintonia com a proposta da Phobia Studios.
Depois de ver os créditos subirem eu fiquei “ok, tudo bem, foi algo que eu presenciei, aconteceu. Esqueci de jantar, o que tem para comer?”, e como o ato de esquecer do jantar, eu já tinha esquecido o que se desenrolou em Carrion.
Carrion
Total - 5
5
Muito fraco
Nem a violência desenfreada, a limitada narrativa ou a tecnologia usada pela Phobia Studios são suficientes para salvar Carrion de ser mais um jogo onde suas ações são feitas sem pensar, onde o simbolismo de “poder” é tratado como “a oportunidade de nascer em um berço de ouro”, mesmo que você seja um monstro, e nunca posto em cheque. Bem, ao menos tem bastante sangue para os fãs de gore.