Dois anos se passaram desde que escrevi sobre Book of Demons, o action RPG que descrevi como uma alternativa para adultos extremamente ocupados com o dia-a-dia. Desde então a desenvolvedora Think Trunk expandiu, reduziu, mudou mecânicas, e lançou o jogo oficialmente em 13 de dezembro. Me reencontrei com o meu guerreiro e minha arqueira, e fiz o meu mago. Descobri que a boa notícia é que ele continua a ser uma excelente opção para quem não tem paciência com o gênero. Junto a ela vieram outras tantas más.
Desde o seu período embrionário, Book of Demons trabalha dentro de duas vertentes: ser uma homenagem para Diablo e um action RPG que possa ser apreciado por todo tipo de jogador, com ênfase em criar um ambiente mais acessível para novatos. Atributos passivos como força e destreza são deixados de lado, em favor de cartas para simbolizar magias ou equipamentos.
Olhando pelo aspecto puramente de design, é algo coerente. Cartas são uma linguagem “universal”, sejam elas usadas em tabuleiros ou no bom e velho baralho. O pecado cometido pela Thing Trunk é supor que o aprendizado só ocorre onde existe uma grande restrição ou um ambiente controlado, e jamais põe o jogador em uma situação que ele realmente necessita pensar por si mesmo.
Pegue o Diablo – a fonte de inspiração de Book of Demons – como exemplo; o primeiro encontro marcante do jogo é o Butcher, primeiro chefão e tipicamente o ponto onde um jogador pode ficar “empacado”. Até aquele momento Diablo funciona como um “tutorial”, não como os que estão presentes hoje em dia já que existe mais maleabilidade, mas ainda assim um tutorial. A primeira vez que você morre para o Butcher é um impacto. Onde foi o erro? Na construção do personagem? Equipamento? Pode ser que o seu nível não esteja alto suficiente para enfrentá-lo. Tipicamente se voltava para os andares anteriores para conseguir equipamentos melhores, subir de nível, ou adquirir um montante de gold suficiente para comprar itens dos vendedores da cidade. Butcher também está em Book of Demons, também é o primeiro chefão que você vai encontrar. Eu empaquei momentaneamente com meu guerreiro, mas ao invés de ter a oportunidade de explorar novos caminhos, estava restrito a um só.
Book of Demons usa um sistema chamado “Flexiscope”, que permite você definir quão longa vai ser uma partida. Escolha “pequeno” e você avançará pouco, mas também acabará em questão de minutos. Defina longa e o inverso acontece. Este foi o principal ponto que me chamou a atenção quando o joguei pela primeira vez, especialmente por estar em um período mais estressante da minha vida (sendo sincero, quando não estou?). Voltando ao Flexiscope hoje em dia, continuo vendo-o com uma ideia ótima e que deve ser abraçada – ao menos em parte – por mais jogos. Todavia, decisões tomadas pela Thing Trunk – como impedir de você voltar andares ao terminar uma run, ou comprar cartas – prejudicam a própria noção de flexibilidade que ele te dá.
Eu estava empacado no Butcher porque estava com uma “mão” fraca. Muitas poções que precisavam de dinheiro para serem carregadas, cartas raras que não serviam para aquele chefão, e nenhuma chance de pegar novas. De um certo ponto de vista eu mesmo me coloquei nessa situação, já que havia gastado mais bombas do que tinha. Mas por outro, se é para ser um jogo acessível, por que então já colocar uma barreira impenetrável de início? “Impenetrabilidade” ao invés de “flexibilidade” surge muito em outras temáticas e decisões tomadas pela Thing Trunk em Book of Demons. O personagem só pode andar em uma área definida do mapa, e sempre em linha reta. Teoria: facilita a compreensão de navegação. Prática: prepare-se para ficar irritado ao tentar avançar em níveis avançados, pela quantidade absurda de projéteis ou inimigos na tela.
Se fosse em outro action RPG, como um Grim Dawn da Crate Entertainment, seria uma solução “simples” para um jogador: volte para áreas anteriores, troque de arma, melhore sua habilidade pessoal de desviar de projéteis. Não tenho essa liberdade em Book of Demons.
Também não tenho liberdade de derrotar um inimigo poderoso – considerado pelo game como um mini-chefão – quando eu bem entendo. Todos eles, além de terem introduções longas e desnecessárias, usam um sistema de timer. Dê uma quantidade X de dano, e ele irá mudar da primeira “fase” de ataque para a segunda, depois a terceira. Não há como avançar ou causar dano suficiente para fazer com que outras fases ocorram, só aguardar. Isso se você não der o azar do chefão estar justamente na sua frente, e te impedir de avançar. Novamente, um action RPG tradicional teria um botão dedicado a poder andar sem necessariamente bater no inimigo.
Ao contrário de criar um ambiente de aprendizado, Book of Demons cria um ambiente predatório onde um sistema se alimenta do outro. A inflexibilidade de progressão reduz o sistema de cartas para algo também inflexível. Meu guerreiro se tornou dependente de cartas com habilidades passivas – como a possibilidade congelar inimigos com o ataque básico ao invés de usar cartas de habilidades ativas. Afinal, tanto as cartas passivas como ativas requerem mana; as passivas “reservam” uma quantidade determinada de mana” enquanto as ativas “gastam” a mana. O que você iria preferir dentro de um jogo onde não há como derrotar mini-chefões com timers que não podem ser interrompidos? Causar mais dano ou sobreviver? Pois é, sobreviver sempre vai falar mais alto.
Ainda me chamo de “sortudo” por ter encontrado cartas relativamente competentes com o guerreiro e com a ranger. Se não fossem pelas cartas passivas, ou eu teria desistido da run e começado uma nova, ou eu teria largado de vez.
A culminação desses elementos – inflexibilidade, uso de habilidades passivas em demasia e chefes com timer – resulta em um jogo com uma dificuldade artificial. Book of Demons não é difícil; ele é incômodo. Perdi mais tempo lutando com os seus sistemas, com inimigos que criavam barreiras de dificuldade falsas, do que realmente me sentindo desafiado.
Como as duas vertentes de Book of Demons, a magia de um action RPG surge para mim dentro de outras duas vertentes: flexibilidade e desafio. Flexibilidade de saber que uma nova arma, uma nova armadura ou uma nova habilidade pode mudar a forma que eu enxergo o mundo do game – seus inimigos, áreas, facções e sistemas – e o desafio de me adaptar a ela, de me adaptar a mecânicas progressivamente mais complexas e questionar as minhas próprias decisões em relação ao desenvolvimento do meu personagem.
Book of Demons é recheado de boas ideias. Na verdade, eu ainda acredito que o sistema de cartas implementado pela Thing Trunk é uma ótima solução para tornar o gênero mais acessível. Também creio que elas mereciam ter mais destaque e serem ainda mais flexíveis do que proposto pela desenvolvedora. Eu acredito que o Flexiscope é uma excelentíssima oportunidade para que desenvolvedores enxerguem que um jogo não precisa tomar “todo” o seu tempo para que você se sinta engajado com seu universo; mas que ele necessita dar mais agência ao jogador para criar a sua partida.
Assim que coloco todos os seus sistemas e decisões feitas pela Thing Trunk na balança, Book of Demons não é “menos” complexo do que outros jogos do gênero. Ele troca seis por meia dúzia, simplifica o gerenciamento e progressão de personagem em favor de mecânicas que deixam as partidas monótonas. Ainda o vejo como uma ótima opção para quem não tem tempo; para quem realmente quer jogar a conta-gotas, quem só tem tempo pela manhã ou pela tarde, ou prefere se limitar a dez ou quinze minutos por partida. Faça isto e você tem um bom passatempo em mãos. Como já apontei em outras críticas minhas, jogos pra mim não são somente um passatempo, são objetos de estudo. “No que Book of Demons realmente facilitou o aprendizado do gênero?”, eu me perguntei depois de ver os créditos subirem pela terceira vez. Resposta: em nada.
Aprendizado não se desenvolve apenas em um ambiente controlado, com regras restritas que forçam quem aprende a uma linha reta. O aprendizado ocorre quando há um desafio, um espaço, um convite. Ele ocorre em cada esquina da nossa vida; quando estamos livres, quando nos sentimos fortes o suficiente, quando somos ambiciosos o suficiente para nos darmos a capacidade de sonhar, quando olhamos para um objeto – seja ele dentro ou fora do jogo – e dizemos “eu posso fazer isso melhor”. Book of Demons olhou para Diablo e não pensou isso. É uma bela homenagem… e só.
Book of Demons
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Ao invés de simplificar o processo de aprendizagem de um action RPG, Book of Demons cria um processo inflexível e, muitas vezes, exaustivo. Algumas de suas ideias – como o uso de cartas e o Flexiscope – são fantásticas, mas o contexto em que são inseridas mitigam o impacto das poucas inovações. Como homenagem a Diablo ou passatempo em doses curtas, serve. Mas não espere mais do que isso.