Eu sofro de um dilema semanal: como ter um site de jogos se não há tempo suficiente para cobrir todo jogo interessante que sai por aí? Como decidir o que deve ou não ser jogado, o que merece ou não cobertura? Cobertura de jogos em geral é repleta de profundas lacunas – seja por motivos financeiros, desinteresse, ou pela absurda quantidade de lançamentos diários. As coisas pioram quanto mais você olha para o passado, quando jogos artísticos / experimentais da década de 80/90 são esquecidos (algo que foi coberto pela Lana Polansky em uma matéria para Rhizome), ou até mesmo shooters. Pois é, um dos estilos mais populares nas últimas décadas também sofre do mesmo problema. É devido a isso que o lançamento de algo como Blood: Fresh Supply (Steam / GOG) tem tamanha importância.
Vou cortar a ladainha de cara e te dizer que Blood: Fresh Supply não é nada mais do que uma remasterização básica da Nightive Studios, similar ao que ela fez com System Shock, Turok e Turok 2 Ex. Uma repaginada em elementos que eram necessários e / ou permitem às pessoas jogarem os games em computadores atuais, e alguns elementos visuais extras. Mas isso não é o que importa em Blood; é o peso que Blood carrega consigo, e como ele se difere totalmente de shooters do mesmo período.
Nada é mais “tradicional” na indústria do que um jogo estabelecer uma tendência e outras empresas tentarem seguir o mesmo padrão. 2018/2019 é o ano dos Battle Royales, tal como os 2010/2012 foram dos MOBAs. Nos anos 90 eram os shooters; os “clones de Doom”, como eram bem chamados. Nada mais fácil, e comum até hoje em dia, do que olhar para eles, revirar os olhos e falar “eles seguem a mesma temática. Vá ali, pegue uns cartões / chaves / sei lá o que, mate uns inimigos e complete a fase”. Não discordo; muitos deles de fato seguem essa estrutura, nada de errado com isso. Até Blood é assim. Em contrapartida, Blood parece ser um bizarro sonho coletivo que todos nós tivemos e a própria existência dele em meu computador continua sendo um total mistério.
Onde shooters começam uma fase com o armamento tradicional (uma pistola, um rifle ou depois uma espingarda), o capítulo inicial de Blood te dá uma forquilha, um sinalizador e depois uma dinamite. “Te vira para aprender”. Por si só essa decisão quebra as convenções típicas do período. Com a exceção da forquilha, o sinalizador e o dinamite são armas de projéteis ao invés de hitscan.
Para quem não conhece, armas hitscan são aquelas onde o tiro acerta onde o jogador está mirando, instantaneamente. Esse cálculo é quase imediato, ou seja, se você mirou em um inimigo, você vai acertá-lo. Inúmeros jogos fazem uso desse tipo de arma (Call of Duty, Doom, Overwatch, etc). Armas não-hitscan emulam “projéteis”, ou seja, elas criam uma entidade dentro do jogo (uma bala, uma granada, etc.) que é influenciada por elementos como disparo, distância, e até a velocidade que o projétil atravessa o mapa. Claro que para 1997 a implementação de Blood é algo moderadamente rudimentar se formos comparar com algo avançado como ArmA 3, Battlefield V, ou até PUBG. Mas a importância não fica na implementação; é na imposição da Monolith em dizer que “este não é um shooter comum, este não é o seu clone de doom, essa não é mais uma cópia de Duke Nukem 3D ou de Shadow Warrior. Esse é o nosso jogo, e você vai jogar pelas nossas regras”. E as regras de Blood são as regras de Blood.
Desenvolvido na Build Engine – a mesma de Duke Nukem 3D e Shadow Warrior – Blood tentou elevar a interatividade do período para novos patamares. Coletar chaves e afins era apenas uma parte do processo de passar de uma fase. Até os objetos mais mundanos tinham alguma serventia – nem que fosse apertar o botão de “play” em um jukebox para ouvir vozes de pessoas gritando de dor. Mesmo em 2019, quando o jogo de novo, eu fico fascinado no quanto a Monolith investiu tempo para criar esses pequenos detalhes para fomentar a macabra ambientação de Blood – o segundo pilar que o mantém ainda tão relevante.
Quando menciono que Blood é um sonho coletivo que todos nós tivemos e ele não tem direito algum de existir, isso vem muito também de como ele representa tão bem o caldeirão de ideias que foi o desenvolvimento de jogos onde o objetivo era vendê-los para jovens e adultos nos anos 90. Foi um período onde todo desenvolvedor queria se sobressair com algo mais e mais “maluco”, “inovador”, com tecnologias “de ponta” ou com uma premissa “única”. (Se não contarmos as publicações de revistas que são difíceis de discernir entre honestidade e alguma propaganda paga, um dos eventos mais relembrados — ao menos dentro da comunidade de estratégia — foi um terrível poster de Command & Conquer onde a equipe de marketing da Virgin Interactive achou uma ótima ideia desafiar o jogador a bater a “pontuação” de ditadores ou terroristas. Uma matéria do The Independent de 1995 sobre o assunto ainda está no ar). Se algumas partes do que descrevi acima ressoam bastante com o mercado de jogos de 2019, é que na realidade pouco mudou de lá para cá — a indústria se tornou mais corporativa, mais “limpa”, mais “direto ao consumidor”, mas ainda focada em uma empresa tentar “bater” a outra em sua conquista pelo trono.
Seja 1997 ou 2019, Blood ainda assim consegue se destacar entre os competidores. Fases que começam em um trem e terminam em parque de diversões, depois te levam para um mausoléu. Inimigos que alternam entre gárgulas, aranhas, homens-peixe, adoradores de algum culto maluco armados com metralhadoras ou espingardas, aranhas, cachorros que cospem fogo. Um arsenal de armas não convencionais que vão além das mencionadas anteriormente e permitem a você usar uma lata de spray como lança chamas, ou um boneco de voodoo. Me fale um jogo com o mesmo grau de criatividade de Blood que tenha sido lançado nos últimos 20 anos? Não há, ao menos não do jeito como Blood cria uma certa “coerência” para tudo isso.
Nada desse arsenal, ou dos inimigos, é desperdiçado ou situado de uma maneira que é só para “preencher buraco”. Do sinalizador da primeira fase até o “Life Leech” – um cajado que suga a vida dos inimigos – tudo é colocado com o maior cuidado para fazer você ser ágil e ainda manter um grau elevado de tática. Aqueles que entrarem em uma sala sem pensar vão ser recebidos com uma morte quase instantânea. O jogo quer que você deixe o condicionamento que os outros shooters te acostumaram para trás, que você reflita sobre como eliminar cada tipo de inimigo, que você saiba usar o armamento certo nos momentos e nos inimigos certos. Ele alterna entre a violência extrema — ao ponto de ser satírica, como quando Caleb solta risadas maléficas enquanto explode os seus inimigos – e o macabro, como ao entrar em um Mausoléu e ouvir sussurros.
Ele investe tempo em fazer o jogador testar a sua proficiência e habilidades em shooters ao prover um arsenal que requer aprendizado e prática. Ele propositalmente te joga em fases confusas para você repensar a maneira como enxerga design de fases em um shooter. Um exemplo primordial é a segunda fase do segundo capítulo: um labirinto de arbustos repleto de inimigos. Um shooter como Quake possivelmente te daria uma espingarda e muitos medkits. Blood coloca um dinamite na sua mão, sabendo muito bem que essa arma causa dano em área e você provavelmente vai se matar dezenas de vezes até pegar o jeito e passar da fase — e ele não se importa com isso. Mais uma vez, “te vira”. Talvez essa seja a maior dificuldade de escrever sobre Blood em si. Blood não é o seu shooter tradicional; ele nunca foi, e ele nunca vai ser.
Por mais que ele tenha as convenções do gênero, ele mantém – ele resiste – e ele faz as suas próprias regras. Assim como Thief, System Shock e tantos outros jogos dos anos 90, ele engloba (ao menos no âmbito comercial) tudo o que poderia ter sido feito quando você decide quebrar uma meia dúzia de “regras” – espaço atualmente ocupado pela vasta gama de jogos independentes. Que essa nova versão traga novos olhares para ele, e que lembre outros que, às vezes, quebrar as regras é essencial para evoluir.
Blood: Fresh Supply
Total - 10
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Blood: Fresh Supply é o retorno de um dos mais fantásticos shooters dos anos 90, e uma lembrança do quão “única” aquela era foi para o desenvolvimento e o estabelecimento de certas convenções – e como essas mesmas convenções foram quebradas. Ele não é um “clone de Doom”, ele não é uma “cópia de Duke Nukem 3D”. Ele é Blood, e ele é único no que faz e no que propõe. 22 anos depois, é ainda um grande merecedor de toda atenção para quem ama FPS.