Esquivar e aparar são as armas mais potentes de Blasphemous, mais que qualquer ataque normal, item encontrado, ou habilidade “salvadora” adquirida. Esquivar e aparar constituem o que Blasphemous (PC / PlayStation 4 / Xbox One / Nintendo Switch) é em si, a despeito da macabra e obtusa história que te motiva a seguir em frente, a desvendar mais sobre ela; mas, principalmente, apontam as dificuldades e preocupações de se fazer um metroidvania em 2019.
Se o meu histórico com a equipe espanhola da The Game Kitchen era para ser levado em conta, de uma coisa eu tinha certeza antes mesmo de passar da tela inicial: que eles tinham deitado e rolado com a trama escolhida. O primeiro projeto da equipe – The Last Door – demonstrou que ela tinha um toque para o macabro sem pesar a mão na temática. Blasphemous é uma expansão desse conceito, um jogo que usa diferentes fontes do catolicismo – a correlação dos costumes da Espanha (e em grande parte também do Brasil) e como nós enxergamos a religião em si, a ideia de penitência e milagre – para estabelecer um universo coerente.
A manifestação disso é um dos mundos mais bem interconectados em um metroidvania em recente memória, um que eu coloco ao lado de Hollow Knight no que diz questão a manter um véu de mistério e opressão que te empurram para longe de uma área e te convidam a explorar mais. Não cabem adjetivos suficientes para descrever ou parabenizar a atenção aos detalhes – venham ele dos personagens que habitam Cvstodia ou das estruturas que flertam com a elevação da morte para algo glorioso. Porém, a decisão de sempre manter algo “consistente” com a temática pesa no que a Game Kitchen planeja para as mecânicas, a interação com o cenário, e a própria noção de ser um metroidvania “moderno”.
Blasphemous faz parte do que se chama atualmente de “metroidvanias modernos”, subgênero consolidado em 2017 pelo já citado Hollow Knight, mas que possivelmente inclui jogos como Chasm, Minoria, Monster Boy and the Cursed Kingdom e outros tantos. Entretanto, no fim das contas, o que é um metroidvania “moderno” e o que faz parte do seu leque de “ofertas” para a jogabilidade?
O nome que é dado para esse subgênero – um que pode ser muito bem descrito como “jogos de plataforma com exploração não linear” – já atribui certos anseios e expectativas para ele; um sistema de progressão, habilidades que garantem acesso a áreas antes inacessíveis, e elementos de RPG. E é este último elemento que faz a jogabilidade de Blasphemous tão complicada de se entender.
Os desejos da comunidade e do mercado são intensos em 2019; jogos precisam ter “um pouquinho para todos”, ainda que esse pouquinho não se traduza em nada relevante. De 2007 para cá o sistema de progressão/reforço mais “prático” de se criar é um com pontos de experiência ou loot. É um ótimo incentivo para o jogador continuar a jogar, e um bom jeito de mantê-lo preso ao seu jogo. Apesar de julgar isso caso a caso, eu tendo a acreditar que “menos é mais”; que eles podem bem ser cortados sem necessariamente afetar o ritmo ou a complexidade de um jogo. Os de Blasphemous até fazem sentido de um ponto de vista temático, mas pouco contribuem para oferecer essa maior interatividade com o cenário ou os inimigos. As “Lágrimas de Redenção”, nome dado aos pontos de experiência, exprimem bem de que forma demandas como essas podem prejudicar a estrutura de Blasphemous.
Desde o seu Kickstarter em 2017, foi criada uma narrativa de que ele seria um “souls-like”. Se você quer dizer “souls-like” no sentido de um jogo que tem uma história não-linear, contada por itens e logs, com uma dificuldade elevada, no qual morrer causa alguma forma de prejuízo para o jogador, então Blasphemous é um “souls-like”; eu posso usar o mesmo termo para System Shock 2, então? Fale isso em voz alta e em minutos alguém vai querer te corrigir. Eu mesmo sei que os temas de ambos os jogos são bem diferentes, mas o reducionismo errôneo é o mesmo. Para a The Game Kitchen, essa narrativa falou muito mais alto. Blasphemous te pune ao morrer com a redução de Fervor – a sua barra de “mana”, em termos simples. A mecânica casa bem com o conceito de “morte e ressurreição” que é presente na história. Por outro lado, pouco interfere ato de jogar em si, pois as Orações, nome dado às magias do jogo, são tão situacionais que não fariam falta se fossem removidas.
Como apontei, é um tema recorrente na jogabilidade de Blasphemous; as magias não servem para nada ou são situacionais, a árvore de habilidades em si não oferece nenhuma melhoria que de fato garante acesso a áreas antes inacessíveis — o que normalmente ocorre por meio de itens encontrados no mapa, e nem eles são tão importantes assim. Nem mesmo melhorar o básico (como aumentar o dano do golpe forte) altera. Por isso que esquivar e aparar são tão importantes: eles são uma porta para as mecânicas “escondidas” de Blasphemous.
Todo dano causado por um inimigo de Blasphemous gera uma perda temporária de controle do personagem – ataques leves o atordoam temporariamente, enquanto ataques pesados o jogam para longe e o deixam aberto para novas investidas do inimigo. Isso podia ser um ponto muito grande de frustração, mas não é, pois, a The Game Kitchen permite que você evite se descobrir o “timing” correto na hora de pular. Veja só que interessante, quando você é atingido por um ataque enquanto pula, o jogo só contabiliza o dano inferido pelo inimigo. Unir isso com a esquiva gera resultados inesperados. Eu podia desviar de ataques que antes pareciam impossíveis, podia navegar muito mais ágil pelo cenário e até certas lutas ficaram menos impiedosas. É o mesmo conceito aplicado ao aparar, descubra o tempo correto para aparar um ataque e você descobrirá que a maioria dos ataques – incluindo magias – podem ser aparadas. Em momento algum Blasphemous deixa isso explícito, o que parcialmente é bom já que condiz com a noção de que ele não vai segurar a sua mão — mas é algo que pode ser difícil de descobrir devido à cortina de fumaça gerada por pontos de experiência e outras superficialidades.
Agora que você está ciente dessas mecânicas, me responda: existe necessidade desses elementos de RPG? Blasphemous já quer estabelecer diálogo com uma comunidade que busca isso em um jogo. Histórias não-lineares, segredos enfurnados em cada canto possível, um alto nível de dificuldade e um combate que pode ser julgado como satisfatório. E não é que existem áreas que Blasphemous poderia ter apreciado mais atenção? O mapa, por exemplo, é mal sinalizado para um metroidvania, carece da opção de incluir notas ou ao menos marcadores para que eu sinalizasse onde ficavam certos personagens. Por sorte eu já tenho o costume de desenhar mapas, então esse processo não foi tão trabalhoso quanto eu imaginava.
Volto então para a pergunta de Blasphemous e System Shock 2: se termos como “não-linearidade”, “elementos de RPG”, “história contada por meios secundários” podem ser intercambiados entre os dois, por que continuamos a criar tantas caixinhas para jogos? Por que não deixamos eles falarem por si mesmos? Tudo bem enquadrar referências, mas isso não pode virar a principal força para definir o que é um jogo ou não. Temos mais que o suficiente disso, e o que está presente já causa danos o suficiente na hora de explorar temas complexos – sejam eles saúde mental ou o catolicismo.
E já que estamos na temática de pecados, e enquadramentos, eu vejo a necessidade de aceitação como o principal pecado da The Game Kitchen: deixar-se guiar demais pelos desejos do mercado. Blasphemous é um jogo bom, que seria muito bem capaz de se manter nas suas próprias pernas sem querer atender às necessidades do grupo “X” ou “Y”. Para cada pedaço de jogo bom, há relances de um jogo que podia ser melhor ainda. Se ele não estivesse tão preocupado em impressionar os outros, poderia impressionar a si mesmo mais.
Blasphemous
Total - 7.5
7.5
Com temáticas e estéticas admiráveis, Blasphemous carrega consigo o terrível fato de ser um metroidvania em 2019, curvando-se assim às demandas do mercado, incluindo mecânicas que são consideradas “essenciais” para ser considerado digno de atenção. O resultado é um jogo que é arrastado para baixo por conta de ser supérfluo demais em certas áreas, carecer de atenção em outras, e temer que o que ele oferece não é suficiente. Situações como essa se proliferam mais e mais, e isso me faz temer muito o futuro da indústria e a saúde dela. Pois uma hora essa conta vai chegar, e o preço a ser pago não vai ser bonito.