Muitos anos atrás, em uma entrevista de emprego me perguntaram: “O que você entende sobre cavalos?”. Meu cérebro travou, minha única resposta teria sido “Equestres?”; preferi responder com: “Não muito, mas posso aprender”. Acredito que eu e a Warcave compartilhamos dessa opinião. Ela, no caso, relacionada aos jogos de estratégia. Falo especificamente de Black Legend (Steam)
Tentando deixar para trás o “interessante porém mediano e saudosista” base builder War Party, a desenvolvedora belga decide apostar em um sistema de turnos e uma história mais “macabra” de uma cidade tomada por uma maldição.
Infelizmente este é mais um dos casos de “boa ideia, péssima execução” que continuo a presenciar na esfera de jogos de estratégia em turnos com elementos de RPGs ou SRPGs — chame-os como quiser. Quando vi seu anúncio, imaginei que a cidade amaldiçoada de Grant, o culto macabro que tomou conta da parte dela e o folclore regional seriam os pontos fortes. Que eu teria liberdade de explorar a cidade, conhecer mais dos seus habitantes e como a tal “maldição” veio a cair sobre ela. Quem dera.
Se não fosse pelo combate, Black Legend poderia ter qualquer outro estilo que a ambientação não faria a menor diferença. A Warcave sabe lá por qual motivo decidiu fazê-lo linear. De início pensei que seria por conta da trama, mas tal presunção veio por água abaixo quando notei que a história caminhava em um ritmo glacial.
Cheguei a achar que clichês como “oh não, o líder do culto é um vilão maior do que nós pensávamos” — o que, bem, se você amaldiçoa uma cidade inteira parece ser óbvio — seriam suficientes. Mas não, a maioria das quests servem para te fazer “explorar” a cidade por caminhos que no máximo oferecem uma ou duas passagens alternativas para evitar o combate, para acabar entrando em um combate mandatório no final.
O processo em si não é ruim; muitos jogos de estratégia em turnos fazem isso de propósito. Vide Disgaea, Fae Tactics, até Final Fantasy Tactics — jogos possuem uma certa linearidade e onde a maioria da história acontece fora do combate. A diferença crucial aqui é que todos os jogos citados possuem mecânicas competentes, enquanto Black Legend desaba mais uma vez.
A Warcave segue outra vez para o caminho “boa ideia mas execução mediana”. Black Legend usa um sistema de classes determinado pelo equipamento usado pelo personagem. Quinze classes que variam de franco atiradores a ladinos, alquimistas, bucaneiros, guardas, etc. Uma incrível variedade de combinações, mas cuja implementação faz com que elas percam o seu potencial.
A princípio eu gostei de poder mudar minha classe quando bem desejasse. Poderia subir diferentes classes e herdar habilidades passivas. Meu grupo inicial era formado por dois guardas, um franco atirador e dois ladinos. Destes, os guardas eram os que mais causavam dano. Como? Simples; é facílimo flanquear os inimigos e, na maioria das vezes, eles não usam qualquer oportunidade no campo de batalha para tentar flanquear as suas unidades.
Em parte isso me deixou aliviado e preocupado. Primeiro porque a maioria das lutas de Black Legend se arrastam de tão longas — e quando você muda de mapa os inimigos renascem, o que faz qualquer tipo de backtracking insuportável —, e eu podia terminá-las com mais agilidade. Segundo que, se eu estava no começo do jogo e tinha todo esse poder, o que aconteceria da metade para frente?
Mexe em classe ali, mexe em classe acolá, troca equipamento e todas as minhas unidades praticamente dissolvem os oponentes antes mesmo deles atacarem. Eu não tinha a menor intenção de “quebrar o jogo”, eu tinha colocado na dificuldade mais alta com o propósito de ver como a IA de Black Legend iria se comportar e não oferecer a oportunidade dela sequer se mover.
O fator agravante vem do sistema de alquimia, um nome mais “luxuoso” para o que é um mini-game de combinação de cores. Habilidade “A” aplica o elemento “verde” que, ao ser combinado com o elemento “vermelho”, causa um dano extra ou envenena o oponente. A alquimia não é limitada aos alquimistas, toda classe possui alguma habilidade que envolve esta mecânica. Meus guardas já eram mais poderosos do que os tradicionais “tanks”; imagine quando eu juntei o sistema de alquimia. Se você imaginou eu destruindo até mesmo os mais poderosos dos inimigos — que tendem a ser as aparições ou monstros do folclore —, você acertou.
Eu teria deixado isso passar em branco se ao menos Black Legend me desse motivos mais concretos para continuar a jogar, mas confesso que continuei puramente para escrever este artigo. A cidade em si, por mais que tente ter uma identidade própria, só consegue isso por meio de NPCs em side quests que contam mais sobre o que aconteceu antes da maldição — um dos pontos altos do jogo. Fora isto, você está preso a uma série de prédios, ruas e becos que parecem terem sido feitos por uma máquina de criar “cidades” do que feito à mão. Pontos de interesse são escassos e áreas que dão identidade para a cidade podem ser contadas na mão. A história de Black Legend podia se passar no Séc XV ou no Séc XIX que pouca coisa iria mudar.
Se eu der o braço muito, mas muito a torcer, eu digo que ao menos a Warcave acerta na atmosfera e na sensação de desespero dos habitantes. Parte disso vem dos já citados NPCs e do incrível uso de iluminação providas pela Unreal Engine — um feito tanto técnico quanto artístico. Todavia, no dia que eu jogar jogos de estratégia ou SRPGs me preocupando se eles são bonitos ou não vai ser o dia que eu vou deixar de escrever sobre o gênero.
Black Legend está como eu no período da entrevista “Não sei, mas estou disposto a aprender”. É um jogo de estratégia repleto de exceções, mas exceções que podem ser reajustadas ou revisitadas em futuras atualizações. Acompanhando o desenvolvimento do seu jogo anterior (War Party), a desenvolvedora ao menos entregou algo competente.
A questão aqui é bem menos complexa do que aconteceu com War Party — que estava mais ligada a como as facções eram similares e a campanha desinteressante, sem contar a falta de opção de salvar durante uma missão — é sobre acertar como as classes interagem entre si e refinar o comportamento da IA.
Desde o lançamento a Warcave já lançou duas grandes atualizações para melhorar a interface, um passo significativo se eu levar em conta que às vezes era impossível compreender o que certas habilidades faziam. E, ainda assim, eu consegui “quebrar” o sistema de combate.
A pergunta que fica no ar é a que eu deixo em tantos outros textos sobre tantos outros jogos de estratégia: será que a Warcave vai atingir um ponto onde Black Legend vai sair desse lodo imenso que é a falta de balanceamento de classes e insignificância do sistema de combate e melhorias na alquimia? O histórico diz que sim, o meu coração diz que talvez.
Como não há como apostar, ao menos em 2021, no indeciso, Black Legend vai ser outro jogo que vai ficar sentado na minha biblioteca esperando uma segunda jogada quando atualizações mais significativas surgirem. Recomendo que faça ao mesmo a não ser que você tenha um grande interesse em design de jogos de estratégia / SRPGs, ou em aprender o que não se deve fazer na hora de criar um.
E quanto à entrevista de emprego? Ah, eu não consegui o emprego, e também não aprendi muito sobre cavalos. Acabei que decidi semanas depois fundar este site e cá estou escrevendo sobre jogos de estratégia. Com esperança, a Warcave vai aprender mais sobre o que deu errado em Black Legend e aplicar seus aprendizados tanto nele quanto nos seus futuros projetos.
Black Legend
Total - 5.5
5.5
Black Legend tem uma boa fundação para um SPRG graças ao seu sistema de classes determinado pelo tipo de equipamento usado. Entretanto, é desbalanceado demais até mesmo nas dificuldades mais altas e sua história não te prende o suficiente para te dar a vontade de explorar a cidade de Grant. Precisava de mais tempo, muito mais tempo no forno.