Bard’s Tale IV (Steam / GOG) é o que eu chamo de “encenação moderna” de um dungeon crawler. Ele mantém o nome, personagens, cenários, refaz a estética e muda completamente as principais mecânicas para agradar um público mais vasto. “Pera, público mais vasto? Mas Bard’s Tale IV não deveria ser um ‘retorno à forma?’” Foi isso que eu pensei quando o vi pela primeira vez.
O erro com essas “encenações modernas” de dungeon crawlers é estimar que um gênero que está no seu período mais “de nicho” em sua história — sendo mantido por desenvolvedores independentes ou pelo cenário japonês, que traz jogos como Stranger of a Sword City e Labyrinth of Refrain — vai sair desse casulo ao abraçar primariamente a narrativa, “lore”, e personagens.
Não sei quanto a você, mas a última coisa que eu procuro em um dungeon crawler é uma história complexa. Afinal, tende a ser o mesmo arroz com feijão de sempre: um mal ressurgiu e um grupo de aventureiros deve derrotá-lo. Você salvou Skara Brae em Bard’s Tale 1, 2, 3, e fará o mesmo no quarto. E não adianta o quanto a Inxile tente — e ela tenta muito, com quests secundárias e longas linhas de diálogo que você esquece minutos depois — as coisas não vão mudar para Bard’s Tale.
Para se encaixar nesses moldes, a sequência abandona os “random encounters” para acomodar uma narrativa mais coesa, no processo também criando um cenário mais “linear”, por assim dizer. As primeiras dez horas são um longo tutorial que te situa no mundo e te ensina as principais mecânicas. Vá ali, pegue um item, recrute um personagem para sua party, agora aprenda a criar itens. Seria uma introdução bem-vinda se ela não se despedaçasse no momento em que você larga o tutorial. Usar o sistema de “fast-travel” não faz parte dele, por exemplo, mas sim de uma quest secundária que pode ser muito bem ignorada se você não prestar atenção. Para que diabos então eu gastei 10 horas quase andando em linha reta se agora o jogo me faz isso? Ora, para não alienar os fãs da franquia! Está vendo? A “complexidade” dos clássicos ainda está presente, só diferente.
Quem dera fosse assim.
Bard’s Tale IV entra nesse cabo de guerra consigo mesmo de querer agradar dois mundos e acaba prejudicando a sua própria natureza. Um dos exemplos é o sistema de save points. Espalhados pelo mapa e pelas dungeons, a teoria é forçar você a tomar decisões de quando salvar – já que alguns deles podem ser consumidos para ganho de experiência e para tornar algumas lutas mais “fáceis”. Ele tenta passar essa sensação de que vai ser doloroso, difícil, e etc. desde o começo. Mas é uma falácia que cai por terra assim que você aprende como funciona o combate.
Mas essa não é a minha birra com esse sistema; a realidade é que eu só usei um dos save points para ver como o sistema funcionava. Quanto aos outros, ou tive receio de usar, ou não vi necessidade de usar. Essa inconsistência surge de duas frentes, a primeira oriunda dos terríveis bugs que Bard’s Tale IV possui.
Mesmo com duas atualizações já disponibilizadas até a confecção dessa matéria, Bard’s Tale IV é possivelmente o jogo mais repleto de defeitos que eu joguei em muito tempo. Perdi cinco horas de progresso por conta da minha party ter ficado presa em uma pedra. Depois perdi mais duas horas porque um ataque fez o jogo se fechar. Outras quatro foram gastas para resolver uma quest, só para ver o jogo fechar quando fui conversar com o NPC para concluir a quest.
Terminar Bard’s Tale IV deixou de ser uma necessidade para produzir a análise para virar uma questão de honra. A última vez que eu perdi tamanha quantidade de progresso foi com Lost Odyssey, em 2008, e estava determinado a garantir que isso não se repetiria. Para isso usei o mais monótono sistema de todos: voltar para o ponto de save anterior (não é possível salvar duas vezes no mesmo local) depois de três batalhas ou solucionar três puzzles. Dependendo do local isso significaria passar por duas ou três longas telas de loading. Ainda assim isso não garantiu que eu não perdesse progresso, já que em um certo momento um cervo surgiu magicamente na minha frente e me impediu de progredir. Hora de reiniciar e refazer puzzles e lutar contra os mesmos inimigos.
A luta, combate, e progressão de personagem são os outros sistemas que fazem não só o sistema de saves como grande parte de Bard’s Tale IV serem insuportáveis. Lembre-se que se trata de um jogo que tentou se “vender” como “complexo e difícil” no começo. Se isso é difícil para Inxile, eu não sei mais o que é dificuldade.
Cada personagem tem os seus atributos básicos — força, inteligência, constituição — e uma árvore de habilidades com habilidades passivas e ativas; boa parte delas inúteis. Bard’s Tale IV pega um sistema a la “Diablo 3” onde a arma que você usa não limita quais tipos de ataques estão disponíveis. Um bardo pode usar habilidades de flauta ou tambor mesmo que esteja com uma harpa em mãos. Pouco importa o dano da arma, pois elas só aumentam os atributos e não causam o dano em si; o que determina o dano é a quantidade de força de cada personagem.
Poderia dizer que o sistema oferece maleabilidade, mas isso só acontece se o outro lado da moeda – os inimigos – estiver munido das mesmas ferramentas que você. Pelo contrário, os inimigos caem em duas categorias: os que tem resistência física ou os que tem resistência mágica. Alguns deles podem priorizar ataque ao invés de defesa ou usarem mais magias. Agora pegue esse conjunto de regras e aplique em um RPG que pode durar até 80 horas. Na metade da história eu senti que já havia visto tudo que Bard’s Tale IV tinha para me oferecer no combate. As batalhas eram as mesmas: reduz a resistência física ou usa dano mágico, elimine os inimigos, siga adiante.
Não quer refazer um sistema do mesmo grau e complexidade de D&D? Tudo bem, não precisa, mas também não há como seguir um caminho contrário à própria franquia original, “simplificar” tudo, e achar que vai funcionar. Olhe Divinity: Original Sin 2 da Larian Studios: ele usa um sistema de resistências e fraquezas como a base do combate e ainda assim é rápido de ser compreendido. Água é fraca contra fogo, eletricidade é fraco contra água, e por aí vai. O que eu tinha para fazer em Bard’s Tale IV? Usar os mesmos golpes que usava no começo, pois o sistema não me pedia para mudar nada. Para que eu vou mudar se as regras – e consequentemente as exceções – permanecem imutáveis do começo ao fim?
Para garantir que eu não estava ficando louco quanto ao combate (ou estava, pois já havia investido 40 horas nessa altura), eu decidi refazer a minha party contratando novos mercenários. Acabei com um rogue que deixava todos os meus personagens da minha equipe ocultos, uma maga que tinha 80% de chance de recuperar pontos de magia e um fighter que eliminava qualquer inimigo com menos de 100 (!) pontos de vida. O resultado foi que, salvo os chefões, eu era capaz de matar todos os inimigos no primeiro turno. Isso sem nem investir muito tempo em procurar habilidades mais desbalanceadas, pois tenho certeza que dá para piorar.
Essa minha party podia ter sido muito bem “quebrada” pelo inimigo se ao menos um deles tivesse uma habilidade passiva especial, como “True Sight” (ver oponentes ocultos). Mas as regras de Bard’s Tale IV parecem estar escritas em pedra para a Inxile seguir à risca dessa forma. O combate de um RPG é tão interessante quanto os sistemas que o governam, mas, pelo visto, a desenvolvedora não recebeu esse memorando.
Quer saber o que realmente me fez terminar Bard’s Tale IV? Puzzles. Sim, falo sério. A minha sanidade foi salva pelos puzzles, que em sua grande maioria são inteligentíssimos (mesmo que um pouco repetitivos perto do final). E outro fator que ajudou foi a impressionante trilha sonora. Eu não imaginaria me empolgar com puzzles dentro de um RPG, mas cá estou eu empolgado com eles em 2018, o ano onde tudo está ao contrário.
Agora que reflito sobre as minhas 70 e tantas horas gastas no jogo, eu sinto um imenso vazio. Longe da sensação de saudade, tudo que me passa pela mente é “nossa, eu poderia ter gastado o meu tempo com outras coisas” – o que provavelmente é a pior coisa que se pode sentir ao completar um jogo. Não fui abraçado pela narrativa, tampouco senti que conquistei algo.
E isso porque penso que Bard’s Tale IV não devia ser sobre puzzles, ou longas horas de diálogo, ou trocentos NPCs que eu nem lembro mais quem são. Devia ser sobre o “glorioso” retorno à exploração de dungeons, a um combate atraente e multifacetado, à sensação de que você está “evoluindo” os seus personagens. Diria que isso é praticamente a base de um RPG – ao menos os RPGs que a franquia é conhecida por constituir.
De tantas “reencarnações” recentes – como Two Point Hospital e Star Control: Origins – a Inxile tinha a tarefa mais “teoricamente” trivial de todas: manter a complexidade do game original com uma nova camada de tinta que seria ainda melhor do que a superficialidade da maioria dos dungeon crawlers ou quasi-RPGs modernos. O que recebo é um RPG fraco, e um péssimo Bard’s Tale. Se você quer puzzles, recomendo algo como The Witness. Ao menos esse não fecha do nada e não usa um sistema de saves ridículo.
Bard's Tale IV
Total - 5.5
5.5
Muito longe de um “retorno à forma”, Bard’s Tale IV erroneamente abraça o “moderno”, resultando em um RPG com combate fraco e superficial, demasiadamente linear, e de quebra repleto de bugs e problemas de desempenho. Estes últimos problemas são solucionáveis com patches, mas o restante? Só com uma “Director’s Cut” como aconteceu com Wasteland 2. Recomendo evitar Skara Brae até lá.