“Como vou fazer uma jogada que vale 200 mil? Por que esse maldito ‘chefão’ precisa de 500 mil só para vencê-lo?”. Eu estava cansado; era a minha 20ª partida seguida do “Balatro” (Steam / PlayStation / Nintendo Switch / Xbox).Tinha perdido a conta de quantas horas eu olhava para cartas de poker. “Só posso descartar mais algumas cartas, essa é a minha única jogada”. Eis que veio um 10 de copas com multiplicador e um valete. Foi a minha salvação e que transformou o meu flush em uma jogada de mestre que valeu 200 mil pontos. Recostei-me na cadeira e notei que a minha mão estava tremendo. É estranho pensar que 20h de jogo atrás, eu sequer sabia o que era um flush sem olhar um livro de “regras”.
Eu joguei a minha parcela de “deckbuilders com elementos roguelike e que usam regras de poker” como “Aces and adventures”, “Poker Quest” e “Zoeti”. Mas neles, as cartas de um baralho atuavam para ativar habilidades — sejam elas de ataque ou defesa. Recursos que você tinha que manejar preciosamente. Em “Balatro”, as cartas são a principal atração e não são só os seus recursos; são as combinações de poker que te fazem vencer uma partida.
De início eu não havia comprado a ideia. “Isso não faria o jogo ser… mais simples?” De certo modo, sim. Se você conhece como montar uma mão de poker, você já vai ter uma noção básica de como começar uma partida de “Balatro”. Mas saber que mão jogar, quando jogar, e quais modificadores você deve pegar é onde a verdadeira complexidade do título desenvolvido pela LocalThunk começa.
“Fácil de aprender, difícil dominar” é uma das características que predominam em alguns dos meus jogos favoritos de todos os tempos. Seja “Diablo 2”, “Jagged Alliance”, “X-COM”, “Risk of Rain” e até “Beat Saber “. “Balatro” estabelece uma base extremamente sólida e facilmente reconhecível para aí então começar a colocar camadas adicionais de complexidade à medida que você progride em uma partida.
Um desses principais componentes são os coringas, que atuam como “modificadores” de baralho. Alguns podem multiplicar o quanto cartas específicas valem — como cartas de copas valendo o dobro ou até o quádruplo do valor — ou fazer com que todas as cartas sejam contadas para a pontuação final, independente da jogada, ou mesmo aumentar a pontuação base de um naipe.
Agora imagine a seguinte jogada: Você joga dois pares (Dois diferentes pares em uma mesma mão), mas por um deles ser de copas, o valor base dele é multiplicado por dois. E se a carta em si também possuir um modificador? Cartas podem ser melhoradas para aumentar o ponto base, multiplicar o seu próprio valor ou te dar dinheiro extra, dinheiro esse que vai ser usado para comprar pacotes de cartas ou coringas.
Você então tem dois pares que valem 40 pontos multiplicados por 2 e depois multiplicados por 2,5 por conta de um dos modificadores das cartas e que também adiciona 50 pontos. Ou seja, uma jogada que seria 80 agora virou 40+50x2x2,5=450. 450 pontos em uma jogadinha que no começo eram apenas dois pares.
Aí é que entra, para mim, a jogada de mestre da LocalThunk: o uso de cartas de Tarot e planetas. Cartas de Tarot podem modificar cartas do seu baralho ou criar planetas. Planetas são usados para melhorar as jogadas de poker.
No fim de uma partida o seu baralho vai estar irreconhecível quando comparado ao começo dela. Com dezenas de multiplicadores aplicados, pares podem valer 10 vezes mais do que um Full House ou até um Straight Flush. Tudo depende da estratégia que você aplicar e da sorte de encontrar a combinação certa de cartas de tarot e coringas.
“Lucas, isso parece extremamente complicado para alguém que não tem a menor ideia de como jogar poker, por que eu iria jogar poker mas ainda mais difícil”? Boa pergunta. A realidade é que “Balatro” não é nem um pouco assustador. Eu diria até que ele é mais amigável em todas as frentes, comparado aos outros títulos que citei acima. Seu objetivo é um só: quebrar a banca por quaisquer meios possíveis.
O que o separa de outros “deckbuilders” em que gastei horas de frustração ou vitórias é a elegância da implementação dos sistemas de “Balatro”. Embora algumas cartas — mais especificamente cartas ou coringas com multiplicadores altíssimos — tenham chances de serem destruídas, o resto vai direto ao ponto.
Começar a entender como fazer sinergias e até mesmo se focar em um ou dois naipes é uma estratégia viável. O jogo sempre tem um “guia” de quais são os tipos de jogada de poker, e quantas cartas o seu deck ainda possui na atual rodada. Ele não se esconde atrás de nomes obtusos ou combinações que só aqueles mais afincos conseguirão entender. A LocalThunk tem muita confiança no design de “Balatro”, e é bem justificável.
Os 450 pontos dos pares que eu dei de exemplo acima viram combinações absurdas. Houve jogadas em que quatro cartas do mesmo naipe me deram 34 mil pontos de uma só tacada. A cada “ping” que o jogo fazia apontando que o meu multiplicador aumentava eu abria um sorriso. “Essa jogada vai ser boa, ela vai ser boa, ela tem que ser boa”
Quanto mais eu começava a ter confiança na minha habilidade de criar um baralho competente, mais o jogo me “empurrava” para pular uma etapa da run para dobrar o meu dinheiro e usá-lo na loja, ou para conseguir um pacote especial de coringas. A tensão da decisão de “será que eu consigo alcançar 1600 pontos com o baralho que eu tenho e arriscar não pegar o coringa que eu quero” era palpável.
“Balatro”, como muitos jogos que envolvem poker e cartas, brincam com nossa suposta infalibilidade. “Ah, mas eu tenho certeza que a carta que eu quero vai vir” ou “O coringa que eu quero está nesse pacote”, só para quebrar a cara e perder uma run. Afinal, quando estamos no auge, nos sentimos invencíveis, mas basta um deslize para cairmos ladeira abaixo. E, caros leitores, eu caí tantas vezes que eu nem sei como não estou com machucados virtuais.
E ainda assim, minha mente falava “Você perdeu essa Lucas, mas e o que vai acontecer na próxima run? Que tal mais umazinha?”. Lá ia eu para mais uma partida de 10 minutos, vinte minutos, trinta minutos, uma hora e meia, três horas.
Eu não teria feito isso se o sistema de progressão de “Balatro” não fosse um dos meus favoritos. Meta Progressão? Esquece isso. Você libera novos decks ao completar partidas ou certos desafios, mas nenhum deck é melhor do que o outro.
Não há como melhorar, por exemplo, a quantidade de descartes que você tem em um round no início de uma partida a não ser que você escolha o deck que já venha com esse modificador. Novas cartas de tarot ou cartas especiais são liberadas ao completar certas ações como usar 75 coringas em uma única partida, mas isso não necessariamente vai garantir uma vitória. A vitória vem a muito custo na dificuldade base e as dificuldades mais altas irão requerer um conhecimento extensivo das principais cartas, coringas, cartas de tarot e planetas para sequer serem alcançadas. Como disse, fácil de aprender e de entender, mas difícil de dominar.
A comunidade, é claro, já achou desde a versão demo do jogo (que o fez explodir) várias cartas que são mais “fortes” para o início, meio e fim de uma partida. Mas isso não significa que elas irão aparecer na sua partida. Você está à mercê da aleatoriedade de “Balatro”, e eu não tenho como ficar mais contente com isso.
Por anos eu sempre me senti “preso” a terríveis e desnecessários sistemas de meta progressão. “Jogue ‘X’ horas para obter um recurso patético que vai garantir a sua vitória” não é uma proposta que me atrai. Talvez seja o meu costume de jogar roguelikes que não possuem tais métodos, ou por que eu sou um masoquista que gosta de jogos que me fazem sofrer até que a vitória seja alcançada.
Mas quando eu a alcanço, ah que felicidade. Eu sabia que a minha mão tremia não só pela tensão que foi a última rodada, mas porque as últimas duas horas de jogo tinham chegado no seu ápice. Era o “ou vai ou racha”. Seria uma vitória, ou uma queda de uma montanha que eu lutei com todas as minhas forças para subir? O meu destino estava nas mãos das cartas, um deslize e tudo poderia desmoronar… Mas não desmoronou.
Ainda sinto que apenas arranhei a superfície de “Balatro”, que ainda não encontrei todas as centenas de combinações de cartas e seus modificadores. Eu quero continuar a jogá-lo, quero desbloquear todos os baralhos, me arriscar em combinações perigosas, sentir o gosto amargo da derrota e também a sensação eletrizante da vitória.
Para alguém que não tem o menor interesse por poker, eu não consigo imaginar um jogo mais elegante e tão confiante em si mesmo em recente memória para recomendar. Deixe as cartas te levarem, abrace-as, xingue quando o coringa não vier, pule de alegria quando você atingir a pontuação necessária por 2 ou 3 pontos, mas jogue “Balatro”.
Balatro
Total - 10
10
“Balatro” é um formidável exemplo de que um jogo não precisa ter regras complexas para ser complexo, apenas apresentá-las de forma digerível. Elegante em sua apresentação e na aplicação de combinações, multiplicadores, e sinergias, é o jogo de Poker para quem não tem interesse ou intimidade com Poker. Prepare-se para uma montanha russa de emoções e não deixe essa pérola de 2024 fora da sua biblioteca.