Questionar a simplicidade de um jogo tem andado em vogue no site esses tempos. No começo do ano eu apontei como a simplicidade de Wargroove é um fator limitante do seu design. Em outros casos, a simplicidade é libertadora; de certa forma, a mesma liberdade que o gorila de Ape Out (Steam / Nintendo Swicth) busca toda vez que escapa da sua jaula.
Feito pelo trio Gabe Cuzzillo, com a trilha sonora de Matt Boch e arte por Bennett Foddy, você precisa de exatos trinta segundos para aprender a como jogar Ape Out. Um botão empurra os guardas, outro os agarra. Empurre-os contra uma parede e os os veja virarem pedaços. Use-os como escudo, e depois os arremesse contra seus comparsas. É ridiculamente simples de ser ensinado para alguém com uma certa experiência em jogos.
O que Ape Out não revela é que a aparente superficialidade abre caminho para uma interessante discussão sobre o conceito de “prática” aplicado a jogos. Prática nada mais é do que executar uma determinada ação – muitas vezes antes só teoria – até que você se sinta aclimatizado com ela ou a prove verdadeira. Porém, nos dias de hoje – mais do que nunca – temos a tendência de limitarmos a nossa visão para o início da prática, ou o resultado dela. Raramente o processo em si é levado em consideração.
Isso vale para todas as micro etapas que acontecem dentro do ato “prática”. Pegue algo do cotidiano, como varrer. A primeira varrida que você deu na vida provavelmente ficou lastimável. A segunda melhorou um bocado. Às vezes foi porque você encontrou uma maneira mais prática de limpar o seu quarto (ou a casa), percebeu que estava deixando os cantos de lado, etc. Só que, a não ser que o que está sendo posto em prática tenha uma metodologia pré-definida, as informações que absorvemos do processo em si viram como que uma “segunda natureza”. Torna-se algo tão insignificante quando você olha unicamente para o resultado final – digamos que ele dure um mês ou um ano – você mesmo não percebe que houve uma melhora gradual.
Jogos costumam pular diretamente para mostrar o resultado final da prática (uma pontuação maior, terminar a fase, etc). Nem Ape Out escapa disso com seu modo arcade, onde você deve eliminar os guardas o mais rápido possível para continuar na partida. O que ele faz de especial fica para a sua campanha, dividida em quatro “álbuns” com pouco mais de 15 minutos de duração cada – e para a maneira como a sua trilha sonora de Free Form Jazz é composta.
O objetivo de cada fase sempre é “chegue ao fim dela”, mas cada ação realizada na tela corresponde a ritmos diferentes. Ao morrer, você sempre ouve quatro batidas do bumbo e do prato. Não um ponto final para a sessão, mas uma pausa para tomar uma água, respirar e continuar. O pequeno toque da trilha cria uma atmosfera de um ensaio de estúdio, onde uma nota desafinada pede para que você refaça o processo. Pratique mais uma vez, improvise onde dá.
Ape Out quer que você controle e comande os instrumentos — os braços do seu gorila — para estabelecer a sinfonia. Uma sinfonia na qual você, à medida em que pratica, enxerga mais facilmente quais são as áreas que sofrem alteração no processo da prática e do aprendizado. Os níveis, portanto, também servem como um pano de fundo para uma jornada introspectiva de compreensão de como você interage com objetos ou produtos na sua vida.
Isso se reflete na sua estética, enraizada na própria cultura dos anos 60 / 70, onde o Free Form Jazz floresceu; um período borbulhante onde o mundo em si viu uma mudança de paradigmas, experimentação, aperfeiçoamento e prática em uma ampla gama de áreas. Dos primeiros passos da exploração espacial, aos diferentes movimentos socioculturais que se estabeleceram e moldaram futuras gerações (e ainda impactam o nosso cotidiano). As explosões de sangue atribuem a si um aspecto quase catártico da libertação do gorila; as diferentes palhetas usadas para contrastar a destruição do ordinário são sobrepostas por uma textura semelhante à de uma antiga transferência analógica para o digital, até as janelas criadas como uma impressão meio-tom.
Acredito que o melhor jeito de apreciar Ape Out é se colocando no papel do gorila. De que maneira você “toca” a sua vida? Quais são os processos que você efetua diariamente? Quais são os seus instrumentos? O que você pratica? E não me diga “nada”, pois é impossível; o ato de levantar da cama, preparar um café em si, compõem ato de praticar. Sei que é difícil pensar nisso no dia-a-dia em meio ao caos, que – com sorte – não envolve guardas armados de escopeta e lança-chamas. Mas peço, ainda sim, que pense nisso.
Apoiando-me na fantástica apresentação de Sid Meier da GDC 2012, jogos podem ser considerados uma série de decisões importantes, mas é trabalho do designer torná-las importantes. E, como todo jogo, analisar esse processo de decisões raramente é simples ou linear. De mecânicas que ficam obtusas – quebrando a suposta simplicidade – até técnicas que não necessariamente são demonstradas para o jogador (sejam esses atalhos criados pelos desenvolvedores para facilitar ou dificultar uma fase, RNG para dano, etc). Tais eventos podem até existir em Ape Out, mas a capacidade dele de virar seus olhos para a outra direção, e entregar algo tão simples e cativante, tão “puro” que a própria noção de “aprimorar” dentro de um jogo consegue ser vista, é algo impressionante.
Se algo, Ape Out demonstra ainda mais que simplicidade é uma ferramenta, não uma solução. É com ela, aliada à transparência visual e à fantástica trilha sonora “criada” pelo jogador, que é estabelecido esse espaço para autoconhecimento – tanto do que é “praticar”, como das micro etapas envolvidas no processo.
Ape Out
Total - 10
10
Um cativante game de ação top-down que, pela sua simplicidade, consegue arrancar camadas que muitas vezes ficam escondidas, e apresentar novos olhares para o que é o processo de prática, aprendizado e autoconhecimento. Tudo isso embalado por uma maravilhosa trilha de jazz.